Psicodélico: Entrevista com Psicóloco Rodrigo Alencar.

segunda-feira, 2 de julho de 2012

Entrevista com Psicóloco Rodrigo Alencar.

Fonte : COLETIVO DAR
“Se você perguntar às pessoas se acreditam que o crack vai acabar, a maioria te responderá que não. Mas se você perguntar se elas gostariam que alguém implicasse todas as forças e meios possíveis para acabar com o crack no Brasil, elas irão responder que sim e que é isso que deve ser feito. O que revela que inconscientemente elas acreditam sim que o crack pode ser eliminado, caso contrário não haveria porque combatê-lo com todas as forças.”

Rodrigo Alencar é psicólogo, e acaba de defender a dissertação de mestrado Por que a guerra às drogas? Do crack na política ao crack do sujeito, pela PUC de São Paulo. Aprovado com tranquilidade, conferindo ao autor o título de mestre em Psicologia Social, o trabalho de Alencar não pode ficar restrito às estantes empoeiradas de alguma biblioteca, esperando algum que algum pesquisador lhe dê a devida atenção. Em sua busca por retirar as “teias de aranha do costume”, como escreveu Julio Cortázar a respeito da obra do poeta argentino Juan Gelman, o texto nos interroga a todo tempo se precisamos realmente fazer tudo como tradicionalmente vem sendo feito somente porque assim temos feito há muito tempo.
O que há por trás dos discursos em torno do crack? Por que esta substância tem ocupado tamanho espaço e importância no debate político brasileiro? O que uso e abuso de crack têm a dizer sobre nossa sociedade e sobre nossa incapacidade de lidar com problemas complexos de formas minimamente consequentes e respeitáveis? Quem e o que estão movendo este moinho de moer gente chamado “guerra às drogas”?
Quando se fala sobre crack, ou você o ataca ou você será acusado de negligente, testemunha Alencar. Diante disso, ou talvez exatamente por isso, a saída encontrada por este pesquisador foi ir além do senso comum, aprofundar-se, abrir a cabeça. Esperamos que esta conversa também caminhe neste sentido, porque  as aranhas do “deixa disso” nos esperam a cada esquina, e se alimentam de nossos preconceitos e de nossa preguiça em pensar o novo. Não graças a trabalhos como este, certamente.

- Pra começar, por que estudar justo o crack?
No início, meu projeto de pesquisa tinha por objeto a dimensão do desejo nos manuais de saúde pública. Queria investigar o quanto as elaborações de políticas de atenção às drogas contemplavam seus interlocutores como sujeitos desejantes. No entanto duas problemáticas me fizeram mudar o curso: a primeira é que entre a formulação de política pública, suas atas e manuais estão severamente distantes de sua aplicação, ainda que haja um esforço de práxis, a prática do serviço público sofre inúmeros atravessamentos políticos e ainda que muitas diretrizes cheguem a ser aplicadas, cada profissional busca meios para fazer as coisas do seu jeito, o que pode ser bom, mas muito distante do que se preconiza. A outra problemática é que comecei a achar este propósito um pouco cínico, eu estudei bastante alguns manuais de saúde pública na graduação e sei que não há qualquer contemplação de desejo nestes materiais, o que há é um reconhecimento da possibilidade do uso de drogas e suas variáveis sociais como fatores de vulnerabilização ou fortalecimento de prevenção, ou seja, distanciamento das drogas.
Desejar é assumir riscos e admito que isso não é nada simples de se pensar na hora de formular política pública. Visto que as políticas públicas de saúde  e seguridade social visam uma diminuição de qualquer risco que seja. Acho alguns manuais de saúde mental realmente maravilhosos, mas não há a consideração da condição inconsciente do sujeito e esta inclusão não é algo simples, mas sem dúvidas necessária. Digo isso porque esta condição inconsciente é amplamente explorada pela publicidade, principalmente a publicidade eleitoral. Então, o inconsciente é trabalhado na política institucional, mas prioritariamente na propaganda política, o que é preocupante.
Aqui, já desembocamos na escolha do crack como tema de pesquisa. As campanhas políticas em período eleitoral não operam pela racionalidade. Elas recorrem justamente aos medos e anseios mais irracionais. Foi justamente isso que me chamou na eleição de 2010. Todos os candidatos incluíram a prioridade de combate ao crack em suas promessas de gestão. Isso porque assessores e candidatos sabiam que mesmo que o crack tenha causado danos estatiscamente bem menores que o álcool, era o crack que estava na pauta dos telejornais. Também me impressionou a homogeneização do debate, não importa qual partido, qual plataforma. Todos declararam combate ao crack, esquerda e direita, mais votados e menos votados. Também fiquei muito impressionado com a exploração do drama familiar em torno do crack, candidatos faziam entrevistas com mulheres que perderam os familiares para o crack. E nisso, fica claro que a campanha está recorrendo a uma construção de uma personagem com a qual o eleitor se vincule, deposite expectativas. Essa proposta é muito próxima da publicidade do setor comercial. A ideia não é oferecer o que você quer, mas apresentar um candidato que advinhe o que você quer antes que você possa se interrogar se é isso mesmo o que quer. Por isso quando se falava de drogas, só se respondia combate ao crack, ainda que partidos que detinham menor espaço midiático falassem em legalização da cannabis. Isso pouco interessava a maior parte do eleitorado. As pessoas têm medo do crack e se um pai de família acredita que alguém pode acabar com o crack, ele se vê como um pai melhor livrando o filho dele desta possibilidade. Aí está, as campanhas ofertavam as pessoas a promessa de que o crack tenha um fim pela via do combate ao tráfico e do tratamento compulsório, ninguém se pergunta se isso é realmente possível. Essa é uma das funções do medo, convocar a uma precipitação para que este medo que está gerando desconforto não exista mais.
Se você perguntar as pessoas se acreditam que o crack vai acabar, a maioria te responderá que não. Mas se você perguntar se elas gostariam que alguém implicasse todas as forças e meios possíveis para acabar com o crack no Brasil, elas irão responder que sim e que é isso que deve ser feito. O que revela que inconscientemente elas acreditam sim que o crack pode ser eliminado, caso contrário não haveria porque combatê-lo com todas as forças. Ainda que se diga que ao menos combatendo ele diminui, a expectativa é que não se tenha de lidar com isso. Que não se vislumbre mais a possibilidade de uma pessoa querida, ou mesmo o próprio eleitor, morrer usando crack. Ou seja, que caso ele ainda exista para alguém, que ele não exista para você, sem te causar medo, nem tentação.
A psicanálise trata o medo como uma manifestação às avessas do desejo. E no caso do crack, me impressionou muito como esta pedra se converteu em insígnia do medo e consequentemente em uma arma política.
- O que sustenta a proibição das drogas ainda hoje, mesmo sendo cada vez mais evidente seu fracasso?
Acho que esta questão nos possibilita desenvolver uma continuidade da primeira resposta. Alguns pesquisadores afirmam que com a imensa produção bélica da guerra fria foi necessário o escoamento da produção de armas para algum conflito, que por sinal, serviu de um empurrãozinho para encabeçar uma guerra às drogas, combater as drogas é combater algo inerente à existência humana. Ou seja, é um combate que termina só com a extinção da própria espécie, o que pode garantir lucros que rendam até o final de nossa existência.
Para além de questões geopolíticas, Freud deixou algo valioso para explicar o funcionamento grupal. Para que um grupo funcione, ele necessita de alguns elementos imprescindíveis. Dentre eles, podemos destacar: um líder, um inimigo e um ideal no qual eu possa confiar e abrir mão de uma razão crítica. Assim, ao trabalharmos nos detalhes chegamos no seguinte: as drogas entram no lugar do inimigo, ao situarmos como substâncias perigosas mobilizamos o medo no grupo, assim podemos realizar uma operação dupla, precisamos nos unir e combater este inimigo, antes que ele acabe conosco e, principalmente, precisamos de um líder no qual confiemos e nos apoiemos ao longo deste combate. Este líder nos servirá de exemplo e nos mostrará o quanto somos mais fortes e superiores para encarar este inimigo e, mesmo que eu tenha de fazer coisas que eu não concorde (bater em usuários de drogas e moradores de rua por exemplo), isso pode dar certo no final pois eu confio neste líder e ao menos estou fazendo alguma coisa. Óbvio que estamos falando de um funcionamento de massa. Neste inimigo, projetamos todas as nossas inseguranças, e ilusoriamente, acreditamos que acabando com ele, eliminamos nossos medos e incertezas e ainda como um bônus garantimos que seremos amados e amparados por este líder.
Ainda existe uma moralidade muito forte que sustenta esta diferenciação grupal. Há aqueles que acreditam que as pessoas que usam drogas ilícitas não estejam se dando o respeito e portanto seja natural que lhe ocorram inúmeros infortúnios, isto opera de modo que aquele se vê como cidadão de bem pense que, ao contrário dos que usam drogas ilícitas, é maior merecedor do amor de seus próximos e superiores e também de que está mais seguro em não transgredir nenhuma lei. A proibição não alimenta somente a ilusão do que é proibido é mais gostoso, isso pode ser para alguns, mas para outros não transgredir é sinônimo de estar em maior segurança. Ainda que os dois movimentos sejam ilusórios, esta linha serve como recurso identificatório para se situar no mundo.
- Há alguma especificidade na forma com que o crack é tratado socialmente em relação às outras drogas?
Sim. Saiba de algo curioso, quando comecei a pesquisar o crack e comecei a apresentar críticas à forma como as campanhas apelavam ao medo e à demonização, as pessoas vinham até mim, com um tom muito preocupado e diziam “mas você não vai defender o crack né?”. Foi aí que percebi que quando se fala do crack, ou você o ataca ou você será acusado de negligente.  Eu concordo que é uma substância de péssima qualidade. Mas não me sinto obrigado a adotar ares de horror quando abordo este assunto. Isso foi muito produtivo para pesquisa, pois esta foi uma indagação que me impulsionou em aprofundar no tema.
Por que as pessoas se sentem obrigadas a serem agressivas ao falar do crack? Por que isso seria um sinônimo de responsabilidade? Simplesmente dizer que o crack mata pode ter consequências muito ruins e contrárias ao que se espera. Por que as pessoas acreditam que todos que estão vivos só se preocupem em estarem vivos daqui a um ano? Se isso fosse verdade ninguém dirigiria bêbado ou reagiria a um assalto. Isso também não significa que estas pessoas queiram morrer, apenas indica que longevidade não é uma preocupação que seja prioritária em tempo integral para muitas pessoas. Será que não podemos falar de crack sem recorrer a uma moral prescritiva? Toda essa áurea de horror em torno do crack pode suscitar consequências nefastas. O horror facilmente encobre certo fascínio, pois você só se horroriza com aquilo que toca suas convicções mais íntimas. Talvez por isso exista essa operação de conversão do usuário de crack em uma figura monstruosa, geralmente o crackeiro é assimilado como um zumbi que só se importa em fumar mais uma pedra, isso é um reducionismo que limita muito nossa visão.
O crack não é só algo proibido como outras drogas, maconha é proibida, o crack é maldito mesmo. Acho que é justamente isso que pode causar o efeito contrário do que se pretende, principalmente ao se associar crack e morte. Quem garante que não há um gosto de aventura em acreditar que se está desafiando os limites da vida a cada pipada? Ainda que tratem o crackeiro como um zumbi, as pessoas não percebem que uma imagem que pode estar sob recalque é aquela do anti-herói, esta imagem pode ser sedutora a muitos adolescentes que recém saídos da infância já estão  entediados com a figura do herói todo certinho.
Talvez seja necessário pensarmos que só se preocupar em se drogar pode ser algo muito monótono, tedioso. Assim como só se preocupar em estudar ou só se preocupar em trabalhar. Por exemplo, acho muito interessante toda a cultura e debate que existe em torno da cannabis. Mas acho um saco quando o único assunto que uma pessoa tem é maconha. O desejo opera por vias singulares e, pode ter certeza, está bem pouco presente em reproduzir clichês em um esforço de se mostrar autêntico.
Talvez por isso tenha aberto mão da pesquisa de campo, me desanima muito ir atrás de dezenas de pessoas só porque usam crack. Leio pesquisas que lançam mão deste recurso, vejo que sua existência se justifica mais como resposta política. Mas infelizmente, cito estas pesquisas mais para combater um possível preconceito no leitor do que especificamente para desenvolver algo que me interesse.
Na psicanálise tem autores que justificam tudo no Édipo, alegam que pessoas usam drogas porque o papel dos pais não tem mais o mesmo valor  ou porque a mãe não deu carinho suficiente. Isso me preocupa muito porque é uma correspondência barata ao senso comum de que tudo o que gera sofrimento é culpa dos pais. Felizmente, o volume de trabalhos com este tipo de argumentação me parece cada vez menor e há cada vez mais trabalhos criativos e interessantes sobre o tema.

- Por que você aponta a proibição como um esforço para administração das formas de gozo e instrumentalização da vida?
Acho que o pesquisador Eduardo Vargas, bem como o Henrique Carneiro, mostram bem esta instrumentalização da vida pela via da regulamentação das drogas. Devemos considerar que o processo histórico no qual ocorre a proibição se dá num momento em que a utilização de mão de obra fabril se encontrava a todo vapor. Assim, estes autores falam de como se passa a priorizar a extensão da vida ao invés da intensificação da experiência. Ainda que os modos de utilização de mão de obra estejam diversificados isso permanece até hoje. Falo de instrumentalização da vida, pois é por meio das drogas que potencializamos essa vida para render melhor no trabalho. Muitas vezes um trabalho que nos é estranho, no sentido em que Marx fala do estranhamento do trabalhador diante da mercadoria. Ele a produz por meio de seu trabalho, mas ao invés de isso ser algo que enriqueça seu mundo, acaba por embrutecê-lo e as drogas legais, entram em cheio neste embrutecimento.
Hoje, há diversas vilas operárias com problemas de alcoolismo. Boa parte dos casos, são trabalhadores que beberam diariamente ao longo da vida e com a aposentadoria a situação se agrava. Considero as drogas um recurso legítimo para lidar com o sofrimento. Acho importante que uma pessoa possa receber morfina durante um tratamento médico, assim como fazer uso recreativo de álcool ou cannabis para desfrutar de um momento. Mas o que me preocupa é recorrer às drogas para calar a mensagem que muitas vezes é emitida por um sofrimento que interroga a posição de um sujeito diante de sua vida.
Imaginemos uma secretária que seja constantemente humilhada por seu patrão. Ao chegar em casa, todos os dias, bebe algumas doses de whisky para conseguir “relaxar” e dormir para enfrentar o próximo dia de trabalho. Quantas vezes a bebida, ou o calmante não é um meio de calar essa voz que a interroga se ela realmente é obrigada a passar por isso. Ou então uma prostitua que a partir de um certo momento passa a sentir um asco insuportável em fazer programas e recorre a determinadas drogas para suportar estes momentos?  Quais outros meios ela poderia recorrer para enfrentar estes impasses? Há diversas denúncias de cortadores de cana que recebem litros pinga junto das ferramentas, para suportar a árdua jornada de trabalho. No próprio blog do coletivo DAR há algumas notícias como essas denúncias linkadas de outros meios de comunicação. No entanto é uma questão complexa, os problemas decorrentes do uso de drogas não são exclusividade de uma relação de opressão no trabalho. Ainda assim, devemos considerar sua presença maciça no protagonismo das drogas do ideal de produtividade que reina atualmente. Já imaginou a USP ou a UNICAMP sem café?
Até mesmo o charuto e a cocaína de Freud já foram alvos de polêmica. E este não hesitou em reconhecer a importância e a eficácia das drogas para nossa sociedade. Portanto, uma coisa é falarmos da utilidade das drogas para as pessoas que fazem seu uso, outra é falar do uso das pessoas que é instrumentalizado por meio das drogas. O álcool foi um dos principais recursos para amansar escravos no Brasil colonial, isso não é qualquer coisa.
Já para falarmos da administração do gozo, precisamos abordar um trabalho conceitual de Lacan. Segundo Lacan, o gozo se situa numa posição análogo ao desejo. O desejo está intimamente ligado a insatisfação, ao engano, ao desencontro, isso implica um movimento. Já o gozo está para a satisfação, o prazer, a repetição. Os dois são essenciais para se existir e certamente não há um sem outro. Até porque gozar de seu inconsciente, ou seja, repeti-lo nas mais diferentes formas é a principal via de acesso para desejar. No entanto há um trabalho que é feito pelo gozo, que é justamente de ludibriar o desejo. Assim como no exemplo citado, oferta-se um modo de gozo para que não se insista em algo. Um psicanalista chamado Conrado Ramos tem uma ótima ilustração para este trabalho no caso das drogas. A princípio uma propaganda de cerveja associa a sua marca belas mulheres, passando uma mensagem de que se você beber a cerveja desta marca, poderá possuir todas estas mulheres que são apresentadas. Entretanto, há uma outra mensagem, mais implícita que diz: olha só, nós sabemos que você não ficará com estas mulheres só por beber nossa cerveja, ainda assim, já que não pode ter essas mulheres, porque não se consolar com a nossa cerveja? Isso é administração das formas de gozo.
Se pegarmos o livro de Huxley, Admirável Mundo Novo, temos como principal ferramenta política para manutenção da organização social uma droga chamada soma. Toda frustração ou tristeza é tratada com cápsulas de soma. Acho que Huxley teceu um bom questionamento para o movimento antiproibicionista. As drogas podem ser facilmente utilizadas para o tamponamento de conflitos políticos. Não seria o fim da proibição, ainda que essencial, um objetivo muito breve e fácil de ser usurpado para fins questionáveis? Talvez o fim da proibição seja algo que deva entrar dentro de outras bandeiras políticas mais ousadas.
- E quanto à formulação do “contágio de pânico” que dizia Freud, como isso se aplica a questão do crack?
Freud, no texto Psicologia das massas e análise do eu, cita um exemplo de um conto literário onde um grupo de soldados ao se dar conta que o general perdeu a cabeça entra em pânico, isto para mostrar que a confiança estava alicerçada em uma figura de ideal. No caso do crack o jogo é mais refinado. Primeiro apresenta-se o inimigo, para depois iniciar um processo de massificação. É importante frisar, para que surja este inimigo, basta repetir com muita convicção e muitas vezes o quanto ele é perigoso e ameaçador, hoje em dia, temos diversos setores que podem repetir isso, médicos, igrejas, psicólogos…  Pautados neste trabalho, podemos afirmar que o grupo pode se unir como um enfrentamento ao medo. Seria até mais preciso dizer que este é um dos meios de se obter consentimento. Semeia-se medo, para colher clamor por ordem e segurança mais adiante.
- Você cita também a culpabilização em torno da figura do usuário de drogas. De que forma isto se articula com o que você descreve como uma percepção de “gozo a mais” para estas formas de uso?
Algumas campanhas antidrogas dizem que no começo é muito prazeroso e depois fica muito perigoso. Você já viu quando uma pessoa experimenta uma droga e fica frustrada? Diz que não deu nada, etc, etc, etc. É justamente disso que estou falando, este prazer, a princípio, é um prazer suposto. Desfrutar de uma substância envolve um aprendizado, às vezes passar por experiẽncias ruins, O Howard Becker apontou isso muito bem na sua pesquisa chamada Outsiders. Faço esta afirmação por uma leitura de que muitas pessoas odeiam usuários de drogas por achar que estes desfrutam mais da vida. É uma experiência comum na neurose atribuir vantagem ao outro. É como o xenófobo que diz que o imigrante rouba seu emprego, sua vaga no posto de saúde, seu lugar no ônibus, etc.
Este incômodo não é pelo outro ser imigrante, é pelo outro ser o outro. Se não fosse imigrante seria o negro e por aí vai… Ou seja,” o outro sempre aproveita mais as coisas do que eu”. Porém, isso não aparece dessa forma, mas em sentenças como “olha o centro de São Paulo cheio de nóia, por isso esse país não vai pra frente, ficam aí usando droga e ninguém faz nada, depois vão pegar o dinheiro do meu imposto e gastar com essa gente”, o que se está dizendo é “eu tenho que trabalhar e viver uma vida comum enquanto estes daí ficam só curtindo uma brisa, morando de graça..”. O raciocínio é esse, mesmo que o usuário de drogas viva em meio ao lixo, ele é visto como aquele que não precisa arcar com os incômodos que na maioria das vezes as pessoas arcam, como ter horários, ter responsabilidades com outras pessoas e etc. Óbvio que isso é completamente ilusório.
Quando trabalhei em um abrigo, tinham profissionais que diziam, “criança que morou na rua é mais difícil, porque na rua tem liberdade, faz o que quer, ganha dinheiro de adultos, cheira cola”. Isto é praticamente uma piada de mal gosto, mas muito presente na assistência. É uma forma de ignorar o elemento de angústia presente na cena onde o que você valoriza pode estar sendo contemplado pelo avesso.
- Por que você qualifica a droga como “produto discursivo”?
Porque droga é algo popular há praticamente dois séculos, antes tinha vinho, ópio, etc… Hoje nos referimos às drogas. Segundo um psicanalista chamado Jésus Santiago, o que hoje chamamos de drogas é produto de um desenvolvimento científico que ocorreu na era moderna. Desde os gregos temos o vício e a virtude, o phármakon como remédio ou veneno dependendo dos efeitos colaterais. No entanto, só com o desenvolvimento farmacêutico temos substâncias que supostamente resolvem praticamente todos os problemas. O discurso da ciência, trabalhado por Lacan, é caracterizado como aquele que tirou o sujeito da jogada. O xamã, ainda que recebendo espíritos, é dotado de características particulares para que exerça a cura. Na ciência, principalmente quando se trata das drogas, quem tem poder é o comprimido, muitas vezes, o médico, quando em um exercício questionável da profissão, faz o papel de burocrata de ficar emitindo papéis para que você acesse os comprimidos. Este lugar, que é ocupado pelas drogas, é um produto discursivo, fruto do sonho moderno que é viver sem sofrimento, sem oscilações de humor, sem deslizes. Isto tem sua outra face na ilegalidade, na qual toda droga é tratada como uma dose de cianureto que apresentará seus efeitos de modo retardatário. Conferimos um poder extraordinário às drogas e no entanto as usamos de qualquer jeito. A Miriam Debieux Rosa fala da toxicomania como uma produção que ocorre em um desenvolvimento histórico e hoje é cristalizada como uma identidade. Acredito que a questão passa por aí.
Charles Melman trata o toxicômano como um efeito de discurso. Acho isso interessante, é muito comum um usuário quando procura tratamento chegar com uma fala que é semelhante a scripts de telemarketing. É quase uma fala decorada, diz que faz tantos anos que só quer saber de usar, que nesse meio tempo não viu sua vida passar, que usa isso, isso e aquilo, que faz assim e assado pra conseguir, que quer parar, ficar limpo. Isto é a reprodução de um encadeamento discursivo, neste momento o sujeito está falando somente como um usuário, nada mais. Esse tipo de discurso, só diz do quanto essa identidade estereotipada na qual o reconhecem tem sido importante como referência para ocultar tantas outras coisas que ainda não se permitem serem ditas. Deve se considerar a possibilidade de que, às vezes, o sujeito em seu cálculo, pode achar melhor ser reconhecido como resto a não se perceber reconhecido de modo algum, ou se perceber reconhecido em qualquer outra posição que seja insuportável.
- O que é e como se dá a “administração do desamparo” que você aborda?
Na psicanálise trabalhamos com uma ideia de um desamparo que é constitutivo do sujeito. Quando nascemos nossa sobrevivência depende completamente do cuidado de um outro para depois articularmos maneiras de se manter, se alimentar, morar, etc… Não é possível viver sem contar com a interlocução de alguém, com sua resposta, seu olhar, sua voz. Ainda que haja alternância de presença e ausência é comum a necessidade, as vezes mais constante do que se gostaria de se sentir amparado ou mesmo correspondido em nossas decisões e ações, de que esta presença do outro nos transmita alguma segurança. Isso no âmbito político comumente acaba por ser utilizado, como no caso do combate ao crack. É absolutamente plausível um aturdimento diante de uma questão como o crack. As cenas de uso que aparecem nos lugares públicos da forma que aparecem é algo que surgiu nos últimos vinte anos, ainda que a notoriedade midiática seja mais recente.
Diante deste aturdimento é conveniente aqueles que se engajam em um projeto de poder, se precipitar nas respostas para esse problema, justificar o injustificável sob a rubrica da urgência e assim dar contornos a este aturdimento. Isso é funcional, apazigua os ânimos momentaneamente, mas cobra seu preço justamente naqueles que supostamente seriam cuidados, quando estes vivenciam justamente o contrário, um embrutecimento ainda mais forte do desamparo, que será especulado dentro destas técnicas administrativas.
- Por fim, sua pesquisa se insere num cenário alternativo ao discurso do senso comum. Você acredita que este senso comum também pauta a produção acadêmica de conhecimento? Visões como a sua, que não partem das premissas proibicionistas típicas, têm seu espaço na academia ou ainda são muito marginais em sua opinião?
Acho que existem muitas pesquisas que buscam responder este senso comum. Ainda que eu ache necessário, penso que temos de tomar muito cuidado na hora de formular uma pergunta a ser respondida numa pesquisa. Faz parte do senso comum a resposta breve e a tentativa de acomodação das transformações. E acho importante a academia operar  sobre isso, não perder canais de diálogo e fazer com que suas produções fiquem cada vez mais acessíveis, bem como sua prática. Mas sem se acomodar ao senso comum.
Durante esta pesquisa tive de sustentar um duplo desconforto. Um é o lugar da psicanálise na academia, o esforço de fazer pesquisa sem uma perspectiva que seja positivista exige uma série de cuidados no modo como você apresenta seu material. É como tentar abrir buracos em um muro ao mesmo tempo em que tentam aumentá-lo com tijolos. Outro é de sustentar uma posição que não é a majoritária, que no caso seria reforçar os perigos e o contágio do medo em relação ao crack. A posição de crítica ao que está posto na questão das drogas, é uma posição que ainda encontra pouco espaço institucional para construção de uma práxis. Estas vias se dão pela militância, que ainda que sejam cruciais, são extremamente vulneráveis para que as mudanças efetivas ocorram. Ainda são majoritárias as abordagens de metodologia policial por parte das instituições de saúde que insistem em ouvir as substâncias e calar as pessoas.
As fontes de maior financiamento acadêmico estão bem longe dos institutos de humanas, e nos institutos de saúde ocupam departamentos muito seletos. Há uma condição marginal, não tem como negar. Penso que ainda precisamos encontrar meios de fortalecer a crítica, sem nos prendermos a redutos narcísicos que nos aprisionem a uma falsa dignidade desta condição.

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