Psicodélico: 2007

quarta-feira, 7 de novembro de 2007

Peyote



O peyote é uma planta nativa da América Central, cientificamente chamado de Lopophora Williansi. É um cacto, que era utilizado pelos índios do México em rituais religiosos e por eles chamado de Hikuri. O caroço da planta é chamado de botão.

Supõe-se que o peyote já era conhecido e utilizado pelos índios da América Central há pelo menos 2000 anos. Acredita-se que o uso do peyote iniciou- se na tribo Tarahumara, que vivia aonde havia o peyote. Daí o uso do peyote se espalhou, sendo usado nas tribos Cora e Huichol.
Quando os colonizadores espanhóis chegaram na América Central, o hábito de usar o peyote nos rituais religiosos já era muito comum e foi por eles denominado “artifício satânico”, já que acreditavam que evocava espíritos malignos. Além de provocar grande controvérsia, o hábito foi fortemente condenado pelo governo local e por diversos grupos religiosos.

Os primeiros registros europeus sobre o peyote foram de Frei Bernardino Sahagún, que era crônico. Esses registros foram publicados somente no século XIX e neles Frei Bernardino descrevia o uso do peyote por uma tribo chamada Chichimeca.
Os índios sofreram repressões e perseguições, já que a Igreja Católica se opunha ao uso religioso do peyote e por isso algumas tribos foram para as montanhas se esconder dos espanhóis, onde o uso do cacto se difundiu ainda mais.

No final do século XIX, devido à tentativa européia de deter o uso do peyote, muitos dos povos que cultivavam esse hábito começaram a desfigurar-se, desintegrar-se. Tendo isso em vista, um grupo de líderes de vários povos indígenas se reuniram e começaram a difundir novamente o peiotismo, que agora se adaptava às novas necessidades dos índios. Esse novo peiotismo se difundiu principalmente entre as tribos Kiowa e Comanche.

O novo peiotismo, que havia voltado com mais força do que nunca, sofreu mais uma vez repressão do governo, que se opôs sem apresentar argumentos científicos e tampouco lógicos para defender sua posição. Para não perderem totalmente sua herança cultural, os índios viram-se obrigados a organizar o peiotismo dentro de uma religião reconhecida legalmente e formaram, em 1885, a Igreja Aborígine Americana.

Utilizado em rituais, o botão era mascado ou misturado com bebidas e seus efeitos duravam de dois a três dias. Os rituais, mesmo que diferissem entre as tribos, de uma maneira geral consistiam primeiro na colheita do peyote e depois na cerimônia.


A colheita do peyote envolvia toda uma preparação e podia ser considerada a primeira parte do ritual: os índios que iam em busca do cacto deveriam participar de uma reunião na qual havia a purificação e a confissão, onde eles relatavam seus encontros sexuais e nesse momento, nenhuma demonstração de ciúmes, vergonha ou até mesmo ressentimentos deveria ser feita. Os índios viajavam grandes distâncias a pé e durante o percurso o ritual continuava, com as histórias dos ancestrais contadas pelo xamã e com o pedido de proteção para o resto da jornada.
Quando o peyote era encontrado, era então colhido e levado para a tribo, que realizava a segunda parte do ritual, a cerimônia em si, que durava a noite inteira, envolvia a ingestão em grupo do peyote, músicas, cantigas e dança. As cantigas eram preces, que pediam proteção, poder e compreensão aos deuses. A participação das mulheres nas cerimônias é permitida, porém, elas normalmente não participam nas cantigas. As crianças acima de dez anos também podem assistir ao ritual, mas não podem participar ativamente até que se tornem adultos.
O peyote era considerado um protetor espiritual, pois fazia com que os índios não sentissem medo, fome ou sede. Era utilizado como amuleto sagrado, panacéia (remédio para todos os males) e para provocar visões, que permitiam fazer profecias. Também era utilizado pelos índios para a comunicação com Deus: eles acreditavam que o peyote era um intermediário que fazia o papel de um padre, que por isso não era necessário.Para os índios, o ritual era feito por diversos motivos: para trazer prosperidade e saúde para a tribo, para pedir uma boa colheita, para festejar nascimentos ou aniversários. Também eram feitas cerimônias funerais, como na tribo Kickapoo.

O peyote também era usado pelos índios na medicina, como registrou o Dr. Francisco Hernández, que foi mandado para América Central a serviço do rei Felipe II da Espanha: “É aplicado nas juntas, e é dito que alivia as dores.” Mas, mesmo na medicina, o peyote tinha certo misticismo: acreditava-se que ele colocava o médico em contato com os maus espíritos que provocavam as doenças e assim aconteciam as curas.

Atualmente, os rituais em que o peyote é utilizado ainda são bem semelhantes aos descritos no século XVII e embora tenham características do cristianismo, conservam seus propósitos e crenças.

Hoje em dia, algumas tribos percorrem parte do caminho para a colheita do peyote de carro e outras, como a tribo Tarahumara, por exemplo, compram o peyote de povos que conservam o ritual de colheita ou simplesmente o encomendam pelo correio. Porém, ainda existem alguns povos que conservam todo o ritual da colheita do cacto.

A importância do peiotismo é tal que os índios que não participam das cerimônias religiosas são considerados excluídos da sociedade.

Formas de consumo do peyote


A parte utilizada do peyote é o caroço, mais conhecido como botão, que contém a substância ativa do peyote, a mescalina. O botão é mascado nas cerimônias ou então é misturado com bebidas e então consumido.

Efeitos fisiológicos associados ao peyote

O peyote estimula o cérebro e por isso provoca alterações de consciência que causam visões. Dilata as pupilas, provoca suor excessivo e taquicardia. Sua ingestão pode causar tanto a sensação de bem-estar, como a sensação de mal-estar, que inclui náuseas e vômitos. Não induz à dependência e não há a síndrome de abstinência.

quinta-feira, 25 de outubro de 2007

VOLUNTÁRIO NÚMERO 13 - Bodes e baratos de um visionário Brasileiro que se entupiu de Ayahuasca num hospital de Barcelona.

MARCOS DÁVILA

O 24 de setembro é feriado em Barcelona, dia da Virgem da Mercê, padroeira da cidade. O metrô está aberto durante toda a madrugada. Depois da meia-noite, alguns ratos desavisados da mudança de horário saem de seus buracos e topam com os passageiros na estação. Cada qual com a sua surpresa, homens e ratos parecem esperar o mesmo trem.

O celular toca. É um velho amigo carioca, que vive em Barcelona faz quatro anos.
- Tenho um trabalhinho pra você. Já tomou ayahuasca?

Pausa. Não é o tipo de pergunta que se espera de uma proposta de emprego. Ayahuasca é uma bebida alucinógena usada por índios sul-americanos e por alguns grupos religiosos -- o mais conhecido deles é o Santo Daime. Já havia experimentado a beberagem um ano antes, num ritual do Daime. Foram mais de oito horas de cantoria e viagens introspectivas, acompanhadas por violão e chocalhos.

- Já tomei, sim.

Ele continua. Ouço a proposta, admirado. Não se trata de rituais de xamanismo ou do Santo Daime. O trabalho é servir de voluntário numa pesquisa científica sobre os efeitos da ayahuasca no corpo humano. Coisa séria. O estudo é realizado no hospital Sant Pau, um dos mais conhecidos de Barcelona. E a paga é boa, melhor do que a de qualquer bico que já havia feito. Em um ano, não foram poucos: músico de rua, pintor de paredes, vendedor de loja de sapatos e caixa de sorveteria. Faço mentalmente a pergunta para lá de shakespeariana: “Sou um homem ou um rato?”.

- Pues, venga!

Ligo para o hospital. Um dos pesquisadores é brasileiro. Explica que para participar da pesquisa é preciso ter experiência prévia em “uso lúdico” de substâncias alucinógenas, como LSD, êxtase, cogumelos, ayahuasca e ecstasy, em pelo menos dez ocasiões. Já havia provado parte da lista e, em alguns casos, mais de dez vezes. Marcamos uma data. Devo procurar o CIM, o Centro de Investigação de Medicamentos. Conhecia bem o hospital. Além de estar a duas quadras de casa, faz parte da chamada ruta del modernismo. Fica numa das extremidades da avenida Gaudí. Na ponta oposta está a catedral da Sagrada Família, outro ícone arquitetônico da cidade. De um lado, a cura do corpo, do outro, a salvação da alma.

Não é difícil encontrar o CIM pelas ruelas do Sant Pau. Entre tantos edifícios modernistas cheios de cores e curvas, aparece no caminho um quadradão bege de dois andares. No primeiro, fica o departamento de psiquiatria. Mais um lance de escadas e chego ao Centro de Medicamentos. A recepcionista chama o pesquisador brasileiro, Rafael Guimarães dos Santos. Ele é biólogo e veio a Barcelona para desenvolver sua tese de doutorado, que tem supervisão do farmacêutico catalão Jordi Ribas. Desde 1999, Jordi coordena pesquisas a partir da administração do alucinógeno em voluntários saudáveis. O projeto, realizado pelo CIM, tem aprovação do comitê ético do hospital e da agência espanhola de medicamentos. A ayahuasca utilizada nos estudos vem do Brasil, doada por uma igreja do Santo Daime.

Para defender seu mestrado no Instituto de Psicologia da Universidade de Brasília, Rafael dos Santos já havia pesquisado os efeitos da substância em membros do Santo Daime. Ele me conta detalhes sobre a ayahuasca. A bebida é produzida a partir do cozimento de talos macerados do cipó Banisteriopsis caapi e folhas do arbusto Psychotria viridis, encontrados na floresta amazônica. Mais de setenta grupos indígenas, espalhados pelo Brasil, Colômbia, Peru, Venezuela, Bolívia e Equador, tomam ayahuasca. O uso urbano da bebida foi difundido por grupos religiosos como o Santo Daime, o mais antigo, criado nos anos 20. No Brasil, o uso religioso da ayahuasca é legitimado juridicamente desde 1986. A partir da década de 1990, aumentou o número dos cultos que usam ayahuasca, nos Estados Unidos e em vários países da Europa, como a Espanha.
A experiência é dividida em três fases. Na primeira, passo o dia inteiro no hospital, onde sou submetido a diversas avaliações, depois de tomar cápsulas sem nenhuma substância ativa (placebo). Nas fases seguintes, as cápsulas podem ser tanto de ayahuasca como de placebo. É utilizado o procedimento duplo-cego, em que o voluntário, assim como o pesquisador envolvido diretamente no estudo, não sabe o que há dentro das cápsulas.

Para saber se estou apto a ser voluntário, é preciso passar por uma entrevista com uma psicóloga, e por um exame médico que inclui eletrocardiograma e teste de HIV, o que detecta a presença do vírus da Aids. Rafael Santos me apresenta a psicóloga, Eva Grasa. Vamos a uma sala mais reservada. Nome completo: Marcos Eduardo Dávila. A surpresa de sempre. É que normalmente me apresento como Peri, o apelido que me acompanha desde os tempos do ginásio -- e que adotei como nome artístico, adicionando o Pane, da família da minha mãe. Peri Pane. Profissão: Marcos é o jornalista e Peri, músico. Não avanço no tema para não ser enquadrado em nenhum transtorno de personalidade.

A entrevista segue com perguntas como “quantos baseados já fumou na vida?”. Eva faz anotações em um caderno.

Vou falando. Conto que raramente fumo maconha. Nunca compro. Fumei tabaco por quinze anos e parei há dois. Não uso nenhum tipo de medicamento. Não gosto de tomar remédios. Faz um ano que não tomo nada, nem aspirina. Cerveja e vinho, socialmente. Sim, já me senti um pouco deprimido, quer dizer, triste. Não, nada que me impedisse de trabalhar, nem de sair de casa. Uma vez pensei que fosse morrer. Ou melhor, tive aquela breve certeza de que podemos morrer a qualquer momento. Essa sensação de fragilidade que se tem quando o avião sobrevoa o Atlântico e, mesmo estando exausto, não é possível dormir. Comecei a rever toda a minha vida, aquele “ser ou não ser” que surge ao redor dos trinta anos, e que alguns chamam de retorno de Saturno.

Meu coração acelera. É o desconforto de fazer tantas confissões por minuto. Sou normal? Eva parece satisfeita.

Me levam para conhecer o quarto onde estarei durante quase todo o tempo da experiência. Parece um pequeno estúdio de gravação de música. São dois ambientes, de três metros por dois cada, divididos por uma grande janela de vidro, como se fosse um aquário. De um lado, ficam os pesquisadores, do outro, o voluntário, sentado numa poltrona.

Passamos para os testes físicos, conduzidos por um enfermeiro numa espécie de ambulatório. É a sala principal do andar, um balcão cercado de nove camas com rodinhas e quatro banheiros sem trancas nas portas. Há também uma cozinha e um refeitório, interligado a uma sala com sofás para ver televisão, a “zona de descans”, como diz a placa em catalão. O lugar é iluminado, limpo e organizado. Com seis meses de funcionamento, é o prédio mais novo no hospital.

Recebo um formulário. Sexo? Masculino. Raça? Aí complica... Opções: negro, branco ou oriental. Tem nenhuma das anteriores? Já me confundiram com japonês. Olhos castanhos, ligeiramente puxados, e cabelo preto bem liso. Creio que herdei de antepassados indígenas do Peru. Mas também tem português no meio, italiano, espanhol. Sou, hum... Moreno? Não pode. O enfermeiro dá fim às minhas inquietações raciais.

- Põe branco.

Lá vai o branco fazer xixi no potinho. Leva o branco para tirar sangue. Bota o branco na balança. Estou um pouco abaixo do peso. Sempre fui seco de carnes e enxuto de rosto. Explico que mudei minha dieta recentemente. Sou um (quase) vegetariano. Evito comer carnes desde que li o debate filosófico A Vida dos Animais, do escritor sul-africano J.M. Coetzee, e de assistir ao documentário A Carne é Fraca, do Instituto Nina Rosa, que revela a rotina grotesca dos criadouros. Seguimos com os exames. Tiro a camisa e me deito em uma das camas.

- Tienes un latido en la panza.

Latido? Sim, a batida do coração, em espanhol. Agora essa. Ele chama outra enfermeira para conferir o meu pulso deslocado. Ela encosta o estetoscópio e ouve claramente a batida do meu coração (na barriga!). Me tranqüiliza em seguida com um “isso é comum nas pessoas magras”. Vou para casa com o coração no estômago. Dois dias depois, recebo uma chamada confirmando minha participação no estudo. Sangue bom.

Às 6 e meia da manhã desligo o despertador e inicio a lenta despedida do ninho. O inverno chegou à Catalunha. Lá fora ainda está escuro. Tenho de chegar no hospital às 7 horas, em jejum. Pego uma sacola onde separei um pijama, escova e pasta de dentes, um livro e uma revista. O livro é o que estava na cabeceira: Relatos del Viejo Antonio, apanhado de lendas e histórias indígenas mexicanas recolhidas pelo Subcomandante Marcos, líder do Exército Zapatista de Libertação Nacional.

Com a vantagem de ser vizinho do hospital, chego antes das 7h. Minha primeira tarefa é dar uma amostra de urina, para provar que não tomei nenhuma droga nos últimos quinze dias, álcool incluído. Colocam um cateter no braço esquerdo, para tirar amostras de sangue várias vezes ao dia. No peito, colam três eletrodos, ligados a um pequeno aparelho que levo preso na cintura. É o Holter, que fará registros de eletrocardiograma durante 24 horas. Passamos para a sessão de peluqueria (“cabeleireiro”), como dizem no CIM. É quando fixam 19 eletrodos na minha cabeça, com auxílio de cola e um secador de cabelos. Cada eletrodo tem um cabo colorido com um plugue na ponta.

Estréio meu novo penteado no refeitório. São 9 e meia. Tomo um café da manhã rápido e frugal: iogurte, duas torradas e geléia de pêssego, ou presunto. Peço manteiga. Não pode, todos os alimentos são previamente estudados para não reagirem com o fármaco. Rejeito as fatias de presunto por conta da minha dieta quase vegetariana.

Vamos para o aquário. Eu, a psicóloga e o pesquisador brasileiro. Os dois irão monitorar meu cérebro durante todo o dia. Depois de sentar na poltrona, os cabos coloridos da minha cabeça são plugados na “matrix”, apelido que inventei para o aparelho à minha direita, que faz a conexão com o computador, do outro lado do vidro.

É hora de tomar as pílulas. São cápsulas bicolores, azul e verde. Normalmente, a ayahuasca é servida como uma infusão densa. No estudo, eles preferiram o formato das cápsulas, para que o placebo seja mais convincente. Seria mais difícil disfarçar o forte gosto da ayahuasca em seu estado líquido. Além disso, cai para cerca de 10% a probabilidade de vômito, comum nos rituais com a bebida. Uma das principais substâncias alucinógenas presente na ayahuasca é a N-dimetiltriptamina (DMT). A quantidade de DMT distribuída nas cápsulas é proporcional ao peso do voluntário: 0,75mg de DMT/kg. No meu caso, são treze cápsulas.

No primeiro dia, não há nenhuma substância alucinógena dentro das cápsulas. Mas são treze, e odeio tomar pílulas. Elas sempre param na garganta. Engulo uma a uma, com pequenos tragos de água. Como era de se esperar, não bate nada. Só um sono violento, que vai me acompanhar durante todo o tedioso dia-placebo. Cochilo durante os registros do eletroencefalograma e, mais de uma vez, a psicóloga Eva bate no vidro do aquário para me acordar. O eletro se repete várias vezes. É muito simples. Basta ficar três minutos de olhos fechados no escuro. Enquanto isso, eles analisam minhas ondas cerebrais no computador.

Há duas provas de atenção visual. Botam um pequeno monitor na minha frente. Primeiro aparece um tabuleiro xadrez, branco e preto, com um ponto azul no centro. Os quadrados mudam de branco para preto, alternadamente. Tenho de fixar a atenção no pontinho azul por alguns segundos. A imagem é tosca, me lembra os primeiros computadores que vi na infância, com letras verdes luminosas. Apelido a prova de “Atari”.

O próximo teste tem imagens “neutras, agradáveis e muito agradáveis”, avisa Eva. É uma seqüência de fotos. Só posso piscar entre uma imagem e outra, quando a tela fica cinza por alguns segundos. Começa. Um bebê, um homem alimentando uma girafa (neutra?), uma máquina de lavar, uma lâmpada. Cena erótica de sexo oral, não é explícita, mas deve ser considerada “muito agradável”. E se eu tiver uma ereção, aparece no computador? Um astronauta, uma vaca, cogumelos, pôr-do-sol, outra mulher, com os peitos de fora. Não posso piscar. Impossível não lembrar de A Laranja Mecânica. Espero que não toquem a Nona, de Beethoven. Um martelo, um caminhão, mais mulheres peladas, flores, um casal andando a cavalo numa praia deserta. Será a cena final de Planeta dos Macacos?

De meia em meia hora, passo pelas mesmas etapas. Uma máquina, no meu lado esquerdo, mede a pressão arterial. Um enfermeiro tira minha temperatura. Há também a pupilometria, feita com uma câmera fotográfica especial, que mede o diâmetro da minha pupila. Passo o dia à base de torradas com geléia de pêssego. Faço uma refeição de verdade somente às 8 da noite. Peixe com legumes, nada mal. No refeitório, divido a mesa com voluntários de outro estudo. Um deles trouxe um playstation para passar o tempo. A televisão está ligada num desenho da Pantera Cor-de-rosa. O tema de Henry Mancini dá um tom pitoresco ao nosso jantar.

Sete dias depois, volto ao hospital. Xixi no potinho, veia aberta, Holter no peito e peluqueria. No café da manhã, abro uma exceção (da qual me arrependo mais tarde) e traço as fatias de presunto. Tenho medo de passar fome, como no dia-placebo. O voluntário número 13 está pronto. 11h. Recebo as treze cápsulas. Coloco a primeira na boca. Que girem a roleta! Xi, o gosto é bem diferente do placebo.

Espero a onda que vai me levar. Calmaria no horizonte. De meia em meia hora, devo preencher um pequeno questionário para avaliar a intensidade, entre mínimo e máximo, dos seguintes itens: “efeitos psicológicos”, “efeitos físicos”, “efeitos visuais”, “efeitos sonoros”, “estou mareado”, “gosta do fármaco?”. Nos primeiros vinte minutos, dou “mínimo” para quase tudo. Meus arrotos, no entanto, deixam claro que o acaso havia me presenteado com ayahuasca.
Devagarzinho, uma moleza sobe pela espinha. A fala fica débil. A audição parece o mais agudo dos sentidos. Conforme o corpo relaxa, é difícil encontrar uma posição confortável. Meu quadril desliza, vou afundando até quase sair da poltrona. Volto para trás. Essa seqüência de movimentos se repete várias vezes. A mente acelera, o número de sinapses entra em progressão geométrica. Apagam a luz. É hora dos três minutos de eletro. Fecho os olhos. No escuro, a viagem é outra. Surgem imagens bem definidas, como no cinema. Visualizo os monstros mecânicos do Matrix em miniatura. Eles mexem na minha cabeça. Sinto os eletrodos se movendo debaixo do meu cabelo. Começo a me sentir enjoado. Tento mudar de canal interno e esquecer o filme.

- Relaxe o maxilar.

É a voz de Eva, do outro lado do vidro. Uau, estou com as mandíbulas totalmente travadas. Como ela sabia? Finalmente, acabam os três minutos. Hora de tirar o sangue. Fico meio apreensivo. Viro o rosto e a coisa flui. Mentalizo: sai sanguinho, sai sanguinho... Mede pressão, xixi no potinho, termômetro debaixo do braço. Na minha inquietude corporal, acabo quebrando o termômetro. Trazem outro. Entra e sai de enfermeiros. Falo em português com Rafael Santos e em espanhol com os demais. Entre eles, falam catalão e espanhol, sempre baixinho, como se estivéssemos numa igreja. Todo esse latim se mistura. Parece que ligaram um efeito de eco no meu ouvido.

É a vez do Atari. Estou com medo de passar mal. Já senti vontade de vomitar. Para minha surpresa, não tenho nenhum problema com o xadrez maluco e a seqüência de imagens à la Laranja mecânica. A onda baixa. Assobio e faço barulhinhos estalando a língua no céu da boca. É como se estivesse dentro de uma gruta. O pesquisador brasileiro assume o comando das operações. Como velhos amigos, conversamos sobre rock dos anos 60. Ele curte Cream. Não paro de pensar nas capas psicodélicas do grupo inglês. Devo ser mesmo um bicho grilo anacrônico, incorrigível. Cream, essa é a palavra! Cream, fico repetindo. Enquanto papeamos, ele executa as tarefas, pressão, temperatura. Acho tudo engraçado. Ele diz que, quando toma ayahuasca, vê as coisas com uma textura plástica. É isso! Plástico, essa é a palavra! Caio na gargalhada. Ele está usando uma camiseta com uma pintura do cipó. Sua mulher que fez. Ela é arquiteta, ele me diz.

- E a sua mulher, o que faz?

Não quero entrar numa conversa burocrática, então respondo a primeira coisa que me vem à cabeça:

- Ela faz um cuscuz maravilhoso.

- É mesmo?

- Podes crer.

- Sabe, eu não gosto muito de cuscuz.

- Sério?!

- Gosto, mas não é assim... grande coisa.

Então vem a piada pronta:

- É que você nunca comeu o cuscuz da minha mulher...

E quá, quá, quá, quá! Ficamos duas horas falando sobre cuscuz. Ele gosta de comer cuscuz com geléia. Geléia, essa é a palavra! Não consigo parar de rir, as lágrimas escorrem pelos cantos dos olhos e embaçam a lente da câmera da pupilometria. Enfim, ele consegue medir o diâmetro da minha pupila. Está quase um centímetro maior. Ele mostra a foto digital na tela da câmera. É impressionante. Fecho os olhos e visualizo astronautas com roupas fluorescentes, mexendo na minha cabeça. Chego à conclusão de que somos macacos astronautas. Vejo vacas com corpo de gente, como nas propagandas de iogurte para crianças. Elas têm o corpo azul e rosa, rebolam, estão numa fábrica de produtos lácteos. Tenho vontade de mugir. Então começo, baixinho: “muuuuu”... Percebo que estou passando dos limites. O estômago começa a revirar. A ânsia de vômito vem mais forte. Há um balde ao lado do meu pé. É para isso mesmo. Sei que posso vomitar, mas a instrução é tentar segurar ao máximo, pois os pesquisadores precisam dos dados da quantidade de DMT no meu sangue.

- Rafael, estou passando mal. Acho que vou vomitar.

- Contar uma piada ajuda?

Ele conta piadas de pintinho.

- Sabe a do pintinho caipira? Pirrr.

É a primeira de uma série de piadas sem graça das mais engraçadas. Salvo pelos pintinhos.

- Sabe a do pintinho de um pé só? Foi ciscar, caiu.

Não acho graça. A piada me lembra meu primo Sacha, que anda de cadeira de rodas. Temos quase a mesma idade. Recordo da gente na infância, de como ele tinha de ficar de fora de muitas brincadeiras. As lágrimas mudam de sentido. Fico murmurando “Sacha, Sacha...”, peço perdão. Uma tristeza puxa a outra. Lembro de uma amiga que foi abandonada pelo marido. Aonde vai o amor quando acaba? Essa pergunta fica martelando, martelando, e nada de resposta. Enxugo as lágrimas e, aos poucos, me sinto melhor, num estado de serenidade, quase meditativo.
Hora da bóia. Me desplugam da “matrix”. Vou sozinho para o refeitório. Desisto do presunto. Abro o pacotinho das torradas e tento comer uma beirinha. Não consigo, falta apetite. Colocam sobre a mesa um questionário de mais de 160 perguntas, para que eu responda enquanto como. Então, uma voz anuncia a melhor surpresa do dia: “alguém veio te visitar”. É minha mulher. Ela ilumina o ambiente com seu sorriso lindo de sempre. Traz uma flor improvisada, que ela mesma fez com cartolina. Estou no céu. Conto minha dúvida sobre o fim do amor. Ela tenta me ajudar.
- Ué, quando acaba, acaba. Não vai para lugar nenhum.

Dou minhas torradas para ela, que se diverte com a batelada de perguntas que tenho para responder. É só fazer “x”, falso e verdadeiro, múltipla escolha, mas mal tenho forças para segurar a caneta. “Você se sente mais popular?” (risos), “está relaxado?”, “está feliz?”, “gostaria de ficar nesse estado para sempre?”, “tem algum tipo de alucinação?”, “vê desenhos geométricos?”, “é difícil responder este questionário?”. Sem dúvida.

Fim da hora do almoço. Devo voltar ao aquário. Minha mulher vai embora e leva meu ânimo. Sinto o cansaço de mais de quatro horas de estado alterado. Não passa... Os pesquisadores pedem mais agilidade nas respostas, estamos atrasados. O clima fica um pouco tenso. Só posso tomar a segunda dose depois de terminar o questionário. 140, 141, 142, não tem fim. Melhor assim, não tenho a menor vontade de tomar mais nada. Já estou legal. 15h. Rafael e Eva entram no aquário. Estou na última página. Tenho de tomar a segunda dose, se não a história acaba ali. Continuo ou não? Eles reafirmam que há liberdade para sair do estudo a qualquer momento sem dar nenhuma explicação. A opção é minha. Respiro fundo.

- Pues, venga!

Rafael traz mais treze cápsulas. Basta pôr a primeira na mão e meu mais novo olfato de sommelier deflagra: é ayahuasca. Levo mais tempo para engolir. Medo. Três minutos no escuro. O medo mata o amor. A pergunta não pára de martelar. Aonde vai o amor quando acaba? Lembro de uma das lendas mexicanas do livro do viejo Antonio. A história das perguntas. Um deus com duas caras que quer saber qual é a origem do mundo. Uma faz uma pergunta, e a outra responde com outra pergunta. E assim o deus começa a se movimentar. A pergunta move. Tudo fica claro. Não sei aonde vai o amor quando acaba, mas, seguramente, onde ele acaba começa o ódio. É isso, o deus de duas caras, a cobra que morde o próprio rabo. Amor e ódio. Lembro das imagens do conflito de Oaxaca, que estavam em todos os noticiários naquela semana. Minha mente se transforma num pára-raio de desgraças. Sinto uma conexão com o universo, e a coisa está mal. Bombas sobre o Líbano, negociações com o ETA. São os três minutos mais longos da minha vida.

- Me mareo, me mareo.

- Não dá para falar agora.

- Conta uma piada, pelo amor de Deus!

Silêncio. Alcanço o balde a tempo e vomito pela primeira vez. Tento me acalmar. Rafael está do meu lado. Vamos tentar o eletro de novo. Ele volta para o computador. Tudo escuro. Parece que estou afundando numa areia movediça.

- Rafael, dá a tua mão.

- O quê?

- Cara, dá a tua mão. É sério.

Ele volta, acende a luz e se agacha perto de mim. Seguro a sua mão. É um alívio poder tocar outra pessoa. O contato humano me traz de volta. Começo a chorar. Choro como uma criança perdida no supermercado. Mais vômitos. Jorra. Eles têm de esvaziar o balde três ou quatro vezes. De onde vem tanto líquido? Não comi quase nada o dia inteiro e só tomei dois copos de água. Faço um esforço para não lembrar das fatias de porco cozido do café da manhã. Meu olfato está tão aguçado que, quando tenho de preencher o questionário de mínimo e máximo (no qual avalio quase todos os efeitos no máximo), posso sentir de longe o cheiro da tinta da caneta.
Rafael faz menção de iniciar a prova de atenção visual. Olho para o monitor do “Atari”, no canto do quarto, e digo que não dá. Ele não insiste. Máquinas, elas não sossegam. Mede pressão. Escuto o barulho dos escapamentos dos carros lá fora. Tira sangue. Imagino a fumaça. Vira uma sinfonia maluca. Também somos máquinas. The Man Machine, era isso que o Kraftwerk queria nos avisar? Plástico por todos os lados, o saco de lixo, os copos de água, a embalagem das torradas, tudo é feito de plástico. Perfume. Querem nos enganar com perfume para não mexer na merda. O homem é podre. Começo a vomitar de novo.

- Me ajuda, Rafael.

- Mas o que posso fazer para te ajudar? Você sabe que a substância tem um tempo de ação, vai passar. É preciso ter paciência.

- Me ajuda.

- O que posso fazer para te ajudar?

- Chama minha mulher.

- O que é isso? Tem certeza? Esquece a pesquisa. O importante agora é você ficar bem.
Parece que vou perder a razão de tanta lucidez. Enlouqueci? Jogo a toalha. Como vou voltar para casa assim?

- Chama minha mulher.

- Pensa bem. Tem certeza?

Sobe um calor infernal. Nunca havia sentido isso antes. Minha pele queima. Lembro do apocalipse. A próxima vez que Deus destruir a terra será com fogo, minha formação cristã se mistura com imagens da destruição do World Trade Center e dos bombardeios no Iraque. Labaredas, bombeiros, corpos carbonizados. Tiro os sapatos e as meias num movimento brusco.

- Vou tirar a roupa.

- Calma, Peri. Você está num hospital, tem enfermeiras aí.

Chego a abaixar um pouco a calça, mas me dou conta de que estou cheio de cabos pelo corpo, a veia aberta.

- Acho que vou morrer.

- Vai nada. Já ligamos o ar condicionado.

Começa a esfriar. Estou esgotado. Entram muitos enfermeiros na sala. A luz da luminária fica intensa. Parece que estou dentro de uma foto feita num dia de sol, com o diafragma totalmente aberto. Tudo é vaidade. O que levamos dessa vida, afinal? Caixão não tem gaveta. Querem me transferir para uma cama no ambulatório. Tentam me levantar da poltrona, mas não consigo me mover. Então, eles puxam a poltrona daqui e dali e a transformam num tipo de cama. Está muito frio e branco. Eles não param de reclinar o assento, perguntam se estou cômodo. Não falo mais nada. Tenho aflição de perder meu corpo físico, um medo terrível da imobilidade. Paletó de madeira. Imagino que todos aqueles enfermeiros estão me velando. Busco a imagem da minha avó, que morreu quando eu era criança. A lembrança não ajuda, estou só. Nascemos e morremos sós.

Desperto do transe com um médico ao lado. Ele me dá um remédio para “acalmar o estômago”. Conversamos sobre a nossa cegueira coletiva por idéias de sucesso individual. Já posso levantar. Ele me ajuda a caminhar até uma das camas do ambulatório. 20h. Estou de volta ao que chamamos de realidade, esse “minguado fio de conhecimento que nos auxilia a conservar a vida”, como descreve Aldous Huxley em As Portas da Percepção, de 1956. No relato de sua primeira viagem de mescalina (um alucinógeno derivado do cacto peiote), o escritor inglês defende a idéia de que, normalmente, o nosso cérebro age como uma válvula redutora da torrente de informações do mundo exterior e interior. Sem essa redução, chegaríamos a um estado de onisciência. Os alucinógenos podem desativar esse filtro do ego por um tempo. Abertas as “portas da percepção”, Huxley não dá muita importância às visões desenhadas pela imaginação (no meu caso, vacas, explosões e astronautas) e se deixa levar pela sensação do que chama de “presente perpétuo criado por um apocalipse em contínua transformação”. Esse nível de percepção, no entanto, não se ajusta ao mundo prático da sobrevivência.

Adormeço no meu diminuto infinito e desperto com a voz de Rafael Santos. Falamos sobre o que aconteceu no dia e até ficamos de marcar um cuscuz. Ele diz que, durante meu “branco”, tentou falar comigo e eu não respondia. Segundo ele, posso ter passado por uma “near death experience”. Ou talvez tenha apenas dormido um pouco, cansado de tanto refluxo ¬¬-- foram 40 minutos de vômitos e lágrimas, o auge da bad trip.

Ele também me conta o significado da palavra ayahuasca. É um termo quéchua, língua falada nos altiplanos andinos, cuja etimologia é aya (alma, espírito morto) e waska (corda, trepadeira), em referência ao cipó que é usado na preparação da bebida. Poderia ser entendida como “trepadeira das almas”. Ou “trepadeira dos mortos”.

Um texto de informação ao voluntário, que recebi no primeiro dia, indicava os possíveis efeitos adversos associados ao consumo de alucinógenos. Entre eles estava el mal viaje, com “transtorno de ansiedade e possível quadro psicótico com despersonalização”. Mudanças na percepção visual, olfativa, táctil e auditiva e alterações de tempo também estavam previstos no informativo, assim como, no da ayahuasca, a probabilidade de náuseas e vômitos.

No dia seguinte, passo por uma entrevista com uma das enfermeiras e avalio, afinal, que a experiência foi positiva. Estou disposto a tomar a próxima dose, dali a duas semanas. Depois de alguns dias, recebo um e-mail do Rafael. Ele diz que minha participação no estudo foi cancelada. Como vomitei demais, não há como aproveitar minhas amostras de sangue.

Na data marcada para buscar meu cheque, conheço Jordi Ribas, o coordenador do projeto. Ele lamenta minha saída do estudo. O objetivo específico da pesquisa que participei, diz ele, é descobrir se, depois de tomar a segunda dose da ayahuasca, os efeitos são mais fortes ou mais fracos. Ou seja, se o fármaco causa ou não tolerância. Não há nenhuma pretensão em averiguar um possível uso terapêutico. Ele começou a pesquisar o alucinógeno porque estava interessado no seu mecanismo de ação no sistema nervoso central. Em 2003, defendeu a tese “Human Pharmacology of Ayahuasca” na Universidade Autônoma de Barcelona. Em um dos estudos, uma análise tomográfica mostrou que o alucinógeno ativa áreas do cérebro ligadas ao processamento de informações emocionais, como o sistema límbico. Daí se pode deduzir a presença de fortes mudanças emocionais nos voluntários. Uma diminuição das chamadas ondas lentas, delta e teta, provoca um efeito estimulante da atividade cerebral, o que aumenta a velocidade do pensamento. Segundo ele, a experiência também tem um “componente estressante”, com o aumento da liberação de cortisol. Geralmente, os efeitos duram de quatro a seis horas.

Duas horas da manhã. Um rato tenta cruzar a fronteira do apartamento de um amigo para roubar pão. Ele vive no bairro Gótico, no centro de Barcelona, e explica que há muitos deles nessa região.

- É incrível. Eles conseguem passar por debaixo da porta. É como se não tivessem esqueleto.
Ele quer ser o próximo voluntário.

Excelente Relato sobre Ayahuasca

Sábado, 11 de Novembro de 2006.

Há uma semana atrás, aproximadamente, em uma sessão de BM (balanceamento muscular – www.balanceamentomuscular.com.br ), foi “testada” a minha participação em um ritual ayahuasca. Na verdade eu somente tinha ouvido de longe este termo e ainda não associado totalmente ao que era. Mas se caiu no BM, vamos ver “qualé!”.

Eis que no fim da tarde do dia 11 eu estava chegando ao local do ritual, em Jundiaí. Uma chácara simpática, com duas áreas planas em níveis diferentes e uma casinha bem arrumadinha entre elas. Muita natureza, árvores nativas entre os belos caminhos da Serra do Japi. Muito bem recebido por todos, deixei meu colchonete, travesseiro e cobertor na lona preta esticada no chão ao lado da fogueira que separava, a céu aberto numa clareira entre as árvores, a área masculina da feminina. Algumas cadeiras e as pessoas chegando. Lendo um pouco sobre o Daime num banner e logo a tarde deu lugar a uma noite fresca e sem nuvens, iniciando uma breve palestra sobre o que seria este ritual.

Para explicar melhor:
Ayahuasca, nome de origem inca, refere-se a uma bebida sacramental produzida a partir da decocção de duas plantas nativas da floresta amazônica: um cipó Banisteriopsis Caapi e folhas de um arbusto Psychotria viridis.

É também conhecida por Yagé, Caapi, Nixi Honi Xuma, Oasca, Vegetal, Santo Daime, Kahi, Natema, Pindé, Dápa, Mihi, "O Vinho da Alma " ou "Pequena Morte", entre outros. O nome mais conhecido, Ayahuasca, é de origem quechua, e significa "Liana (Cipó) dos Espíritos".

Fonte: Wikipédia (http://pt.wikipedia.org/wiki/Ayahuasca).

A grosso modo, o Ayahuasca é um “chá” de receita indígena há milênios utilizado para a busca de um “transe onde o ser se encontra consigo”.

Bem, eu sempre tive repugnâncias relativas a religiões e outras doutrinas que impõem regras e certos símbolos manipuladores, mas confesso que nada disso encontrei neste ritual, que muito me remeteu a festas indígenas e comemorações de povos antigos.

Voltando ao ponto: Fogueira acesa, fila para receber o “presente” em copos plásticos. Estava ali servido o real Ayahuasca, cujo singular preparo segue inúmeras regras e peculiaridades de colheita, fervura, etc. Fui para o fim da fila! Receio de ingerir substâncias tóxicas após um período de tratamento alimentar rigoroso pós-pancreático. Há mais de um ano que tenho restrições alimentares a carboidratos, açúcar, álcool e muuuuuitas outras cositas. Mas estava ali por força maior e queria, como sempre, ir até o fim da história.

Ansiedade, nervosismo, receio e curiosidade misturados nas mãos entre o copo e a boca, que em goles súbitos findaram um gosto totalmente diferente de tudo o que já havia provado nesta vida. Amargo, azedo e cremoso entre sua cor de água barrenta num rio avermelhado por folhas secas. Inexplicável! Comi alguns pedaços de maçã, não porque queria mascarar o gosto na boca, mas porque achei rudeza recusa-los, servidos com tanta boa-vontade pelas mãos de um dos “padrinhos” do local. Rápida passada no banheiro (só tinha um, mas foi suficiente).

Acho que estávamos em mais ou menos 50 pessoas e mais umas dez como fiscais. Fiscais são chamados os assistentes do padrinho do ritual. O padrinho administra o chá e a cerimônia, gerenciando todos os acontecimentos, sua ordem e duração, enquanto os padrinhos o assistem e prestam auxílio a quem está em “transe”, como por exemplo, acompanham a quem precisa ir ao banheiro.

Deitei-me no colchonete e a esta altura, umas 22horas, a noite já era fria e a brisa balançava as árvores levemente. Coberto e todo “encapotado” com minhas roupas de inverno em pleno novembro no frio da serra.

Ganhamos saquinhos plásticos e alguns já começavam a vomitar. Não por causa do gosto amargo e azedo do chá, mas ouvi que ao ser transportada pela corrente sanguínea, a mistura das ervas força as toxinas do corpo para o estômago. Para alguns o vômito é a forma de limpeza, limpeza de toxinas físicas, de carne, de conservantes, de refinados e agrotóxicos, bem como toxinas mentais, de arrogância, angústia, mágoa e tristeza. Alguns eliminam as toxinas pelo intestino e, neste caso é necessário apressar-se ao banheiro. Talvez pela rigidez alimentar ou pelo “processo” de jejum prolongado que realizei em junho, não vomitei nem tive vontade de ir ao banheiro aquela noite, mas fiquei enjoado por bastante tempo.

Enfim, as estrelas com um fundo azul muito escuro, criava um clima especial junto à iluminação da fogueira e das tochas ao redor. Nenhuma luz elétrica estava acesa e a música encobria os ruídos da floresta. Música! Essa era a condutora de todo o ritual. Tocada por um aparelho de som, extraindo de um CD as faixas cuidadosamente selecionadas por entidades e padrinhos para aquela noite em especial, o som é a estrada pelo qual se guiavam nós, os desbravadores. E enquanto ao meu lado alguns se entregavam às mensagens internas e mergulhavam em seu mais íntimo interior, eu não sentia absolutamente nada. Pois é... conto pelo menos uns 40 minutos de sonolência sem que nada de extraordinário acontecesse. O som era de tambores e terreiros, umbanda e candomblé “do bem”. Nunca tive contato com esta música e cultura até então. Mas nada acontecia, e conforme o sono ia chegando, ia desistindo de ter alguma sensação diferente, já aceitando que somente aquele primeiro copo de Ayahuasca não traria nenhuma experiência nova a minha vida. E acho que o sono veio, ou cochilei por alguns segundos...

Morte.
Meu coração acelerou demais e abri os olhos, tentando me afastar das imagens que se formavam em minha mente. Mandalas, caleidoscópio de cores entre amarelo claro e rosa, girando em movimento entre uma espiral branca que me puxava para o fundo do que seria a experiência mais intensa da minha vida até hoje.

Lutei contra essa imagem, não quero morrer, quem o quer? E o sentimento era justamente este: Vou morrer, estou tendo um ataque! Alguém me ajude por favor! Por alguns instantes, pensei em chamar um dos fiscais ou padrinhos para me levar ao hospital mais próximo o mais rápido possível. Mas alguma coisa me dizia para relaxar. Uma voz interna, que não se ouve pelo aparelho auditivo, se sente e só. “Vai dar tudo certo”, eu ouvia e repetia mentalmente. “Esta é a intenção disso tudo, é assim mesmo que funciona, é para isso que você está aqui”. Tentei ao máximo acreditar nesta afirmação, mas o medo da morte era muito maior. Freneticamente tentava aquecer minhas pernas com as mãos, o corpo tremendo muito, mas não de frio, um tremor intenso em escala reduzida, muito rápido que só se sente por dentro do corpo mas não se vê de fora. Calafrios, coração na boca. Oxum, Ogum e outros nomes estranhos nas músicas densas e profundas, me carregando para o que há de mais íntimo na Terra ou de mim mesmo, as entranhas escuras, úmidas e pesadas deste planeta em terceira dimensão, matéria. Eu era arrastado para a escória do mundo, para a minha escória, dor, tristeza, mágoa. Algo muito forte e cheio de medo, sofrimento. “Me tirem daqui, comprei gato por lebre, quero sair, quero que acabe já!!! Socorrooooo”. Angústia, Aflição, muita aflição, e eu já tinha experimentado sensações parecidas a estas em “bad trips” da minha adolescência. Mas nada se igualava a isso. A garganta aperta, seu corpo se mostra frágil e delicado, retirando-se da cena para que você volte a ser o que sempre foi: parte de tudo, nada.

Enquanto a música era pesada e intensa, terreiro, macumba, igreja, santos e outros símbolos me surgiam em imagens na cabeça. Um negro com cabelos brancos e miçangas no pescoço, me dava passagem para o beco de muros beges de terra e pedra, cavernas escuras e as velhas mandalas. Um rosto sem gênero, figuras da procissão. Uma vela acendeu e revelou duas senhoras com xales negros sobre a cabeça, rezando o decoro católico e me julgando antes de cometerem uma atrocidade qualquer. Um padre sussurrava ao fundo palavras indecifráveis e eu era apenas uma criança.

É como se fosse um sonho real, você está acordado e tem noção de tudo, não perde a consciência. Você sabe exatamente onde está, o que está fazendo, o que está acontecendo ao redor... É só abrir o olho para retornar à mente lógica, racional, que a todo momento briga para manter a ordem no sistema já abalado pela dupla realidade na qual se encontra. Você praticamente tem acesso a uma dimensão paralela, o outro lado da vida terrena, mundana, onde nada é mais o que era e ao mesmo tempo, é tudo, você é tudo, é parte de tudo. Entrar em contato com você mesmo, o planeta e uma realidade paralela é algo inexplicável em palavras. Palavras? Que palavras? Elas não existem nem dentro nem fora da boca nesta hora. Eu? Que eu? Tempo? Que tempo? Não existe mais nada, ao mesmo tempo em que somos tudo. Individualidade acaba, você sente, não pensa.

A música traz a voz de um “preto veio”, mas já não sei definir se é uma voz masculina ou feminina. É forte, fala de umbanda branca, de paz e bem, mas me incomoda. É ruim, mas puro. Até agora, todas as músicas me incomodaram, religiosas. Catolicismo, o maior erro cometido por religiosidades no planeta. O sadismo dos senhores católicos, as mentiras, as manipulações, os tabus. Falsos valores e orgias. A Terra podia ser muito melhor sem esta praga. O que há de mais podre entre tantas vidas que passamos por aqui.

Alguém fala alguma coisa ao meu lado, demoro um tempo para perceber que o padrinho está à minha frente oferecendo a segunda dose (tradicional e costumeira) de Ayahuasca. Mas eu, que na verdade estou tendo visões fortes e pesadas sobre esta Terra, estou sentindo medo e sofrimento, encarando a morte em primeira estância, vou beber mais um copo dessa coisa maluca? Não mesmo! Recusei. Me arrependi depois, mas nada acontece por acaso e assim tinha que ser. Alguns chegam a beber quatro copos em rituais como este. Para mim, um bastou, mas poderia muito bem ter tomado o segundo, sei que seria muito bom.

Dói o peito, agora é impossível ficar parado. Estou comigo, dentro de mim e sinto seres à minha volta. Não os seres que consigo observar ao abrir os olhos, em volta da fogueira e nos colchonetes encostados ao meu, mas seres sem corpo, muitos deles. Sinto-os ao meu redor, juntos num círculo de proteção, me guiando para esses locais onde estou chegando. Meu peito dói fisicamente e ao mesmo tempo que o medo vai diminuindo, começo a entender melhor as “visões”.

Dentro do que “somos”, sou e são todos UM. A morte vence e me mostra um outro lado de tudo. Minhas costas doem como meu peito. _”Isso é normal? Vou morrer mesmo?”
Morri.

E fui levado pela trilha e pelo ar, sem pesos físicos, tudo deixado para trás, tudo meeesmo. Daqui nada foi comigo, nem meu corpo, nem meus sonhos, nada.

O silêncio se estende longamente, sem tempo, pois tudo é eterno e fugaz. A vida é ilusão dentro do todo que nos abraça e mostra mais uma porção de outras possibilidades aleatórias entre os planos. Voltei a abrir os olhos e vi uma estrela mais brilhante no céu iluminado por tantos pontos alvos. Senti saudade.

_ Índios. A vida natural. Me vi entre tribos, uma criança indígena, feliz e vivendo livremente entre a tribo unida. Riso, festas, sou um guerreiro da floresta, sei tudo e sinto, vivo a vida de índio. Esta, para mim, foi uma cena de regressão, como se eu realmente tivesse me lembrado de estar lá, assim como me lembrava que estive numa festa bacana há alguns anos. E tentei desafiar a imagem, sabendo que algo havia acontecido à “parede” de uma das casas à frente.
Sentado junto a um amigo índio, bebemos, alguma coisa, a fogueira ao centro de uma enorme clareira de terra batida, um círculo formado por pedras brancas. Estamos sentados num meio tronco de árvore pintado com desenhos geométricos parecidos aos que estão em nossa pele. Vermelhos e pretos, os traços diagonais que vêm desde os cabelos são adornos para a celebração. Reconheci mais tarde, o meu amigo índio era minha mãe num encontro entre as inúmeras visitas a este denso, pesado, porém belo planeta. Olhei para a casa de “sapê” à frente. Sapê? Fibras finas de árvores trançadas que se juntam na ponta. Passa-se entre o “bambu” (ou madeira fina e um pouco flexível) e junta-se com mais dessas fibras longas para trançar as paredes da casa. Ali havia um buraco, alguém tinha feito um buraco no sapê, e eu sabia disso antes de ir até lá perto ver. Impressões que me impressionam. E o buraco era ótimo, pois tínhamos um desafio à frente: consertar o buraco, e os desafios são chances de nos tornarmos melhores, de aprendermos algo. Ninguém naquela tribo reclamou a formação daquele buraco, mesmo que todos soubessem quem fosse o responsável. Viver é deixar-se levar pela vida, aceitar os desafios, correr os riscos e buscar os sentimentos bons o máximo possível. Daqui não se leva nada, nada mesmo, portanto, siga a vida, desprenda-se dos bens materiais, seja humano e entre em contato com o planeta, a natureza e os outros humanos ao seu lado.

O intenso frio dá lugar a um calor muito forte que vem das minhas mãos e atravessa meu corpo até aquecer o próprio chão. Alguém me cobriu com mais um edredom, senti muita gratidão e fiquei ainda mais feliz. Juntando minhas mãos senti uma energia muito forte, um poder de cura, um calor que limpa. Talvez seja uma forma de utilizar esta energia tão forte, curando a mim mesmo e aos outros na força das mãos.

Céu de azul escuro, amigos, uma felicidade simples me envolve e já não sinto mais medo, meu corpo responde aos estímulos da música sem parar, mas agora estou deitado, batendo os pés como um tambor, relaxando e aproveitando os ensinamentos que esta experiência me traz. Me guio pela música que agora é indígena, frases em línguas antigas, vozes serenas, homens, mulheres, Apaches, Xavantes, Xingu... Eu estava lá, e é aqui mesmo. Seja qual for a etnia dessas tribos, o ensinamento me veio como um só. Somos, ao final de tudo, um só.

Índio não tem espelho, ele vê no outro como está. Se outro está bem, estamos todos, se outro está doente, estamos todos... Índio não julga, índio vive, segue a natureza e sente a vida, inteira como ela deve ser. Ou não...

A música agora é tensa, grave. Um tambor, um instrumento de sopro e um de cordas, grave. Me traz muito medo, fico assustado e decido investigar os motivos. Me vejo criança índio, dentro de uma oca construída de barro, muitos “amiguinhos” ao meu lado só ouvindo a história de monstro que o ancião está contando. Ele levanta os braços, fica enorme, fala de uma sombra com olhos de fogo que surge da floresta e conversa com os índios podendo até mata-los! Eu olho para meu amiguinho ao lado, tremo de medo. O medo é tanto que saem gargalhadas e berros, curtindo a história como se fosse boa, pois medo, alegria, tristeza e felicidade são sentimentos interligados, precisam ser sentidos sem julgamento. O ancião ri e continua a história de medo, no tom grave de sua voz, que se mistura com a música e vai se desfazendo enquanto outros jovens adultos dão risadas fora daquela oca.

Alguém se levanta ao meu lado. Abro os olhos para ver o que é e observo um fiscal acompanhando um rapaz, provavelmente, até o banheiro. Eles dão um passo em minha frente. Volto a viajar internamente e estou mais uma vez entre os índios, dançando de dia, com mulheres e crianças, todos envolvidos na música cantada e tocada de forma rústica e natural, adorando o céu, a terra, as frutas, os animais, as flores... enfim, sendo essa a função humana, integrar os elementos nesta biblioteca viva que é o planeta. Passo dias lá, aprendo com os índios lembrando que sou um deles. Abro os olhos, o fiscal e o rapaz dão um segundo passo em direção ao banheiro, ainda em minha frente. O tempo já não existe mais fora desta dimensão.
Penso na minha família... Estou mais livre agora, ainda sou guiado e sinto que muitas energias estão ao meu redor, mas posso ir onde quero, visitar os infinitos quartos do meu ser inter-dimensional.

A velha enrugada e feia se aproxima. Sinto receio, angústia, repugnância. Ela vem chegando e posso observar suas rugas profundas, os olhos embaçados e esbranquiçados, apresentando um aspecto despido de qualquer beleza. Ela põe a mão sobre mim e está envolta de uma luz leve, branca com borda azulada. Eu a sinto, posso toca-la, beijo sua mão, pois a beleza agora é fato. A mesma velha, as mesmas rugas, a beleza não está aí. Proteção, amparo, segurança. Ela estava lá de verdade, no astral e não dentro de mim. Estou em contato com o que há de mais natural e puro, e sinto que desde o começo, quando as mandalas apareceram, tudo teve o mesmo sentido, a mesma beleza. O bem e o mal, interagindo como se fosse a mesma coisa e por fim o é.
Tudo é o mesmo, um só.

Voltei à família, minha mãe, vi meus irmãos e os abracei muito forte por serem tão parte de mim, por sermos tão próximos e nos deixarmos distanciar por fatos impensados, por sentimentos que se distanciam do perdão, da compreensão e do amor que nos acolhe a todo instante. Amor, uma palavra que, com toda certeza, tem um significado totalmente diferente hoje. Amor por tudo e todos, como o amor que sinto por mim e, sendo assim, por tudo. Imenso, básico, puro, e pleno. Inexplicável.

Meu pai. Tantas diferenças, tantas ofensas e provocações um para o outro. Sutis, mas marcadas em nosso íntimo como uma dor de um amigo que se foi, a perda de um companheiro confidente. Senti meu pai ali, ao meu lado, junto comigo neste ritual que me afeta e afeta a todos por conseqüência. Toquei meu pai e pedi perdão. Neste momento a emoção era tão intensa que chorei. Lembrei de sentimentos que há muito não faziam parte da minha vida, lembrei que minha função aqui, minha missão, é levar amor em pulsos, em mensagens, em música e palavras a todos os cantos. Sentir isso é algo gigantesco que me coloca novamente no rumo certo deste desafio que é ser vivo e seguir para trazer a luz a este sistema já anestesiado e arrasado pelas trevas. Trevas de sentimento, trevas de atitude e julgamento. Somos todos um e, assim, precisamos nos curar, precisamos tomar atitudes nobres e sentir os bons sentimentos, emanar o amor pelo todo, pois assim estaremos curando, amando e salvando a nós mesmos.
No final, tudo é amor, tudo é lindo e tudo é nada. Nada é material como vemos aqui, não temos posse sobre nada, a busca é interior.

Voltei à minha família e suguei com a boca as sujeiras e as emoções congeladas nas paredes da minha casa. Soprei ao céu para transforma-las em chuva de estrelas. Elas brilharam como fogos e sumiram, voltando à terra em sua verdadeira essência de intenção. Busquei meus outros irmãos, irmãos de vida, a minha banda, meu maior projeto para conseguir transmitir as mensagens e vibrações positivas desta minha missão. Abracei cada um deles e nos vi como um, construindo uma ponte de sentimentos bons e iluminados rumo aos nossos sonhos. Minhas intenções agora são outras, são as originais e verdadeiras. Me vejo conquistando o sucesso na emanação de bons fluidos estampados nas nossas músicas, letras e performances de palco. Ainda é possível mudar o mundo.

Sinto uma viagem para dentro, sonhando acordado, sentindo tudo intensamente, sem me desligar em nenhum momento da consciência. Eu sempre soube onde estava, mesmo sendo guiado pelas forças da Terra, a mesma força que nos une todos a este planeta vivo, que sente, vibra e se expressa de diversas maneiras.

Fui atrás de todos. Procurei cada um e senti amor por todos. Busquei toda minha família e amigos ou filhos de amigos. Fiz meu melhor, curando em mim seus problemas, vendo-os livres de toda confusão que o ego, a mente lógica, insiste em trazer e nos manipular, mostrando fatores muito maiores e complexos.

E me lembrei do início, enquanto a música era tensa, agora é uma paz, um mantra. O medo e a dor, a fuga, a luta para se manter vivo, a troca por uma realidade menos material, menos pesada e densa, muito forte, triste e enorme.

Visitei as tribos, das Américas à África, mulheres vestidas de peças únicas, dos seios até os joelhos, vermelho e amarelo desbotado, a terra subindo pelos pisares no ritmo dos tambores. Fui a lugares onde já estive, vivendo de modo diferente em outras histórias, outros tempos. Juntei todos os que fui, ao mesmo tempo em que são você e todos os outros. Perdoei.

Muita informação, muita mesmo. 5 horas, aproximadamente, de trabalho interior, para mim e para o mundo, vivendo dias inteiros enquanto percorria vias inalcançáveis anteriormente. Audição e visão distorcidas mas muito ampliadas, sente-se a vibração de tudo e participa-se de todos os eventos ao mesmo tempo. Bom, tempo não existe, agora está provado para mim.
Da mesma forma que se vai a coordenação para levantar-se rápido, andar e falar, aumenta-se a percepção de tudo ao redor.

Vejo os lobos... Seguindo a mudança da tribo, amigos distantes que nos admiram. A neve não é tão fria e me vejo sentado no alto de uma pedra, sobre a copa de pinheiros e árvores altas. Giro uma corda que mantém em sua extremidade um artefato de madeira ou pedra. Danço e abro os braços, sentindo meu nariz maior, meus cabelos negros, minha pele parda. Sou um índio dançando, não, sou meu pai... o índio que senti era meu pai. Olhei para as estrelas. Eu vim de lá. Está valendo muito “a pena”. Não vejo a hora de voltar, são tantas e tantas vidas, seqüências de uma história que se iniciou há tanto tempo atrás. Ao mesmo que tempo que dá saudades para voltar ao céu, já dá saudade de tudo aqui, dessa coisa linda e misteriosa que é a vida na Terra.
Vim das estrelas, virei índio: _Bem vindo à Terra.

Talvez seja assim com todos quando chegaram aqui pela primeira vez. Conhecemos a essência de tudo aqui, sendo índios e, conforme as novas espécies eram criadas, fomos moldando nossas histórias de modo diferente. Criamos nossas revoluções, nossos erros e nossas civilizações. Construímos tudo o que existe hoje e estamos à beira de outro chacoalhão, onde mais uma vez decidiremos o que será disso tudo aqui daqui pra frente. Podemos voltar a ser índios com ou sem opção de salvar o que escrevemos.

Levanto-me do colchonete, já apto a caminhar devagar sem cair. Tropeço um pouco, mas reaprendo a andar em alguns instante. Alguns se juntam ao redor da fogueira, dançamos sem regras, livres para interpretar as reações do corpo que seguia à música como se fosse de praxe. Os passos vinham naturalmente como se já conhecesse aquele ritmo, aquela dança, aquele ritual. Dançamos por uma vida mais real, pelo amor à tudo.

Me aqueci junto à fogueira até as estrelas vagarosamente darem lugar ao Sol tímido e lindo de uma manhã de domingo que, seguindo o chavão, seria o primeiro dia do resto de minha vida. Sou outra pessoa!

Tudo é tão claro e simples. Tudo está aqui, na nossa frente, distante dos olhos mas muito próximo dos sentimentos. Esta mistura de duas plantas mágicas me permitiu ver o que podemos alcançar a qualquer momento.

A morte é uma mudança, uma passagem. Quando ela chegar, se você assim decidir, nada mais restará, nada perdura, exceto o amor e as aventuras que você experimentou. Mais uma vez: daqui nada se leva.

Busque o que há dentro de você, seja e viva o que é você. Busque a felicidade e saiba que ela está nas coisas simples, no amor, na compreensão, no deixe ser, deixe viver.
E, de vez em quando, olhe para os índios.

Voltei para casa e já não era mais a mesma, com toda certeza, pois eu já não era mais o mesmo. A estrada segue, mas acho que peguei um atalho mais bonito.

Ivan Volpe
23/11/2006

segunda-feira, 22 de outubro de 2007

JUREMA PRETA - O BÁSICO

JUREMA PRETA - O BÁSICO
Jurema Preta em Estação Seca
Sinônimos populares: calumbi, jurema braba; tepezcohuite (México)
Nome botânico: Mimosa tenuiflora (Willd.) Poir.
Sinônimos botânicos: Mimosa hostilis (Mart.) Benth.; Mimosa limana Rizzini; Acacia tenuiflora Willd.
Família: Leguminosae
Subfamília: Mimosoideae
Significado dos nomes populares: De jú-r-ema, que significa espinheiro suculento.
Jurema Preta - Madeira

Descrição da planta: Árvore com cerca de 5-7 m de altura, com acúleos esparsos. Caule ereto ou levemente inclinado, casca de cor castanha muito escura, às vezes acinzentada, grosseira, rugosa, fendida longitudinalmente, entrecasca vermelho-escura. Ramificação abundante e, em indivíduos normais, de crescimento sem perturbação, acima da meia-altura. Ramos castanho-avermelhados, esparsamente aculeados.

Folhas compostas, alternas, bipinadas, com 4-7 pares de pinas de 2-4 cm de comprimento. Cada pina contém 15-33 pares de foliolos brilhantes, de 5-6 mm de comprimento.

Flores alvas muito pequenas, dispostas em espigas isoladas, de 4-8 cm de comprimento.

O fruto é uma vagem pequena, tardiamente deiscente, de 2,5 a 5 cm de comprimento, de casca muito fina e quebradiça quando maduro. Contém 4-6 sementes pequenas (3-4 mm), ovais, achatadas, de cor castanho-claro.

A madeira tem alburno castanho-avermelhado-escuro e cerne amarelado, é muito pesada (densidade 1,12 g/cm3), de textura média, grã direita, de alta resistência mecânica e grande durabilidade natural. A planta tem raiz pivotante e também raízes superficiais, embora menos do que outras plantas da caatinga.

Jurema Preta - Inflorecências e Folhas

Como reconhecer a planta: Folíolos minúsculos, casca escura, cheiro das flores característico. Mantém a folhagem, embora em densidade reduzida, durante muitos meses da estação seca.

Jurema Preta - Frutos e Folhas


Ocorrência e amplitude ecológica: Piauí, Ceará, Rio Grande do Norte, Paraíba, Pernambuco,Alagoas, Sergipe e Bahia, na caatinga e no carrasco. Ocorre também no México.
Informações ecológicas: Planta decídua, heliófita, seletiva higrófita, pioneira, característica da caatinga, onde é bastante comum, porém com dispersão descontínua e irregular ao longo de sua área de distribuição. Ocorre preferencialmente em formações secundárias de várzeas com bom teor de umidade, de solos profundos, alcalinos e de boa fertilidade, onde chega a crescer vigorosamente. Mas viceja em terrenos diversos, inclusive nas áreas onde os solos foram decapitados, restando apenas o subsolo, em terrenos erodidos ou onde houve serviço de terraplanagem, e também em solos pedregosos ou secos.
Agüenta encharcamento periódico. As raízes têm uma alta capacidade de penetração nos terrenos compactos. A jurema-preta tem um grande potencial como planta regeneradora de solos erodidos. É uma espécie indicadora de uma sucessão secundária progressiva ou de recuperação e sua tendência ao longo do processo é de redução da densidade. No início da sucessão forma matas quase puras. Os folíolos caem e se refazem continuamente cobrindo o solo com um tênue manto que logo se decompõe formando ligeiras camadas de húmus. Além disso, ela participa na recuperação do teor de nitrogênio no solo. Dessa maneira, ela prepara o solo para o aparecimento de outras plantas mais exigentes, como, por exemplo, pau­d'árco, aroeira, cumaru, angico, juazeiro, mofumbo, etc. Espécie muito importante para a alimentação das abelhas durante muitos meses, na época seca e de transição seca-chuvosa. Produz anualmente grande quantidade de sementes viáveis.

Jurema Preta - Casca do Tronco

Fenologia: Perde uma parte da folhagem durante a estação seca, rebrotando logo com as primeiras chuvas. Floresce durante um longo período do ano, predominando, entretanto, nos meses de setembro a janeiro. Os frutos amadurecem principalmente em fevereiro-abril. O florescimento não ocorre maciçamente, nem suas flores persistem em demasia. As árvores florescem seqüenciadamente, uma após as outras, fornecendo néctar e pólen numa constância de espaço e tempo muito benéficos às abelhas. Na rebrota de indivíduos rebaixados, pode-se observar a persistência da folhagem, embora em densidade diminuída, durante a maior parte da estação seca.
Propagação: Por sementes e brotação do toco.
Obtenção de sementes: Colher os frutos diretamente das plantas quando iniciarem a abertura espontânea. Em seguida, deixá-los ao sol para completar a abertura e liberação das sementes.
Cultivo de mudas: Colocar as sementes para germinação logo após a colheita em canteiros a pleno sol contendo substrato arenoso. Escarificar as sementes para melhorar sua germinabilidade. A emergência ocorre em 2-4 semanas e a taxa de germinação geralmente é alta com sementes escarificadas.
Plantio: A planta é muito rústica, por isso o plantio é fácil, podendo também ser semeada diretamente nas covas ou a lanço em áreas preparadas. O desenvolvimento das plantas no campo é rápido, podendo alcançar 4 a 5 m de altura dentro de cinco anos. Não há notícias de pragas ou doenças, mas deve ser protegida contra o excesso de pastagem por gado bovino e, principalmente, caprino e ovino, especialmente em plantios visando a recuperação do solo.
Utilidades:
  • Madeira: muito resistente, empregada para obras externas, como
    mourões, estacas e pontes, para pequenas construções, rodas, peças de resistência, móveis rústicos. Fornece excelente lenha e carvão de alto valor energético.
  • Medicina caseira: o pó da casca é muito eficiente em tratamentos de queimaduras, acne, defeitos da pele e esfoladelas causadas por pressão. Tem efeito antimicrobiano, analgésico, regenerador de células, febrífugo e adstringente peitoral. As folhas são usadas com as mesmas finalidades.
  • PSICOATIVIDADE : A casca da raiz tem efeitos psicoativos. O principal ingrediente ativo nesta parte da planta é N,N-DMT, e há também uma pequena quantidade de beta-carbolinas (De acordo com Raetsch, 2005). Algumas fontes indicam a presença de 5-MeO-DMT.
  • Veterinária popular: o efeito cicatrizante serve também nos animais domésticos e a planta é usada em lavagens contra parasitas.
  • Restauração florestal: planta pioneira e rústica, é especialmente indicada para a recuperação do solo, combater a erosão e para a primeira fase de restauração florestal de áreas degradadas. Pode ser usada para restauração florestal de matas ciliares.
  • Sistemas agrotlorestais: sendo a jurema-preta uma forrageira palatável para todos os animais domésticos, ela é indicada para a composição de pastos arbóreos, onde oferece forragem verde durante muito tempo na estação seca, podendo esse período ser estendido rebaixando a planta. Os galhos espinhentos servem para construção de cercas de ramo. Por manter boa parte da folhagem durante a estação seca, a jurema-preta tem um importante papel de sombreamento para animais e para o solo.
  • Abelhas: espécie muito importante para fornecimento de néctar e pólen para as abelhas, especialmente durante o período seco.
  • Forragem: as folhas e vagens são procuradas pelo gado bovino, caprino e ovino. É uma das plantas da caatinga que primeiro se revestem de verde logo depois das primeiras chuvas.
  • Aplicações industriais: usada em produtos cosméticos nos EUA, Itália e Alemanha, em loções para o couro cabeludo, sabonete, xampu e condicionador. A casca é empregada para curtir couros.

Importância cultural: "Muitos grupos indígenas do semi-árido pernambucano consideram a jurema preta (Mimosa tenuiflora (Willd.) Poir.) uma planta sagrada, cercada de profundo respeito e de todo um cerimonial, com as populações dessa planta tendendo a ser protegidas." Das raizes, os índios preparavam uma bebida chamada ajucá ou vinho de jurema, usada por ocasião das cerimônias dos pajés. Uma bebida usada pelos caboclos, na foz do Rio São Francisco, chamada de jurubari, também usava a jurema, junto com a imburana-de-cheiro, pau-ferro e mel, tudo dissolvido na cachaça. As flores e ramas da jurema também são usadas em banhos lustrais ou de defesa, usados nos candomblés. O pó da casca era usado pelos Maias desde o século 10, em lesões cutâneas, como antiséptico natural. Foi "redescoberta" pelas instituições de saúde do México, que pesquisaram suas propriedades e a utilizavam com sucesso para tratar queimaduras em pessoas, depois de catástrofes nos anos de 1984 e 1985. A jurema-preta, árvore enraizada na cultura dos índios e dos habitantes atuais da região do Nordeste, poderá passar a ser uma espécie essencial para a restauração florestal de áreas muito devastadas, para recuperar o mais rápido possível o solo e ajudar o crescimento de outras plantas, inclusive madeiras nobres. Em áreas menos degradadas, ela pode ser utilizada, em manejo sustentável, como fonte de madeira, lenha e carvão, forragem, alimento apícola e remédio. Com a expansão do mercado de produtos naturais, também na área de produtos de limpeza e cosméticos, a jurema-preta pode servir como fornecedora de matéria-prima para tais produtos, criando uma renda adicional, na época de entressafra, para os habitantes do sertão.

Alguns Links :

Video:
Série "Êxtase, Ritos Sagrados: O Catimbó Jurema" (Rede Globo, Fantástico): http://fantastico.globo.com/Jornalismo/Fantastico/0,,AA1088692-5023-389856-0-11122005,00.html
Artigos:
http://religioes.abril.com.br/edicoes/11/primitivas/conteudo_religioes_47672.shtml
http://www.ufrn.br/sites/evi/metapesquisa/velhos/jurema.html
http://www2.ufba.br/~edigt/artigo5.html

Brugmansia, a Trombeta

por Richard Evans Schultes e Albert Hofmann (1)

Brugmansia aurea
BRUGMANSIA - família botânica das Solanaceae

Estreitamente relacionadas a Datura(2), as espécies de Brugmansia são arborescentes e se suspeita que todas são cultivadas, pois se desconhecem em estado silvestre. Todas as espécies são biologicamente muito complexas e foram usadas como alucinógenos por milênios. Brugmansia suaveolens e B. insignis provavelmente sejam de origem híbrida e existem nas zonas mais quentes da América do Sul, em especial na Amazônia ocidental, onde são empregadas sozinhas ou mescladas com outras plantas, comumente sob o nome de toé. Entretanto, a maioria das espécies são encontradas nas regiões montanhosas temperadas e úmidas, cuja altitude sobrepasse os 1830 metros. A espécie mais difundida está nos Andes e é Brugmansia aurea, com duas formas, uma de flores amarelas e outra mais comum com flores blancas. Na literatura horticultural amiúde tem sido mal identificada como Brugmansía arborea (ou Datura arborea), uma árvore menos comum.
B. aurea é um arbusto ou árvore pequena que mede até 9 metros de altura, com folhas oblongo-elípticas, amiúde finamente veludosas; o limbo mede 10-40 cm de comprimento e 5-16 de largura e nasce de um pecíolo que pode medir até 13 cm de comprido. As flores estão inclinadas, não completamente penduradas, medem 18-23 cm de comprimento e são muito aromáticas, em especial pelas manhãs. A corola tem forma de trombeta e é branca ou amarelo-ouro até a boca, sua parte basa¡ é delgada e está completamente encerrada pelo cálice; os dentículos da corola são curvos e de 4-6 cm de comprimento. O fruto é ovoide-alongado, liso, verde e variável em tamanho; permanece carnoso, nunca se torna duro ou seco. As sementes angulosas, pretas ou pardas são relativamente compridas e medem cerca de 12 x 9 mm. Ademais de seu uso como alucinógeno, todas as espécies deste gênero têm tido importantes usos como medicamento para uma ampla variedade de doenças.

Os guambianos do sul da Colômbia chamam de yas a Brugmansia vulcanicola e dizem dela: "Que prazenteiro é o perfume das flores compridas e em forma de sino do yas quando uma pessoa as cheira pela tarde [...] Mas a árvore tem um espírito em forma de águia que chega com o vento e logo desaparece [...] O espírito é tão mau, que se uma pessoa fica ao pé da árvore, esquecerá tudo [...] sentindo-se como se estivesse nas asas do espírito do yas [...] Se é uma mulher a descansar à sombra da árvore, sonhará com homens da tribo dos paez, logo, uma figura será depositada em seu ventre e nascerá seis meses depois como sementes da árvore."

As espécies de Brugmansia são nativas da América do Sul. No passado, se considerava a Brugmansia como representativa do gênero Datura. Alguns estudos recentes da biologia destas plantas mostram que devem classificar-se em gêneros distintos. A conduta das espécies - assim como sua localização - indica uma longa associação com o homem.

É possível que o uso alucinógeno de Brugmansia provenha do conhecimento de sua parente próxima Datura, conhecimento que os protoindígenas mongolóides trouxeram ao Novo Mundo a fins do Paleolítico e durante o Mesolítico. À medida que migraram para o sul, acharam outras espécies de Datura, sobretudo no México, e as aplicaram no xamanismo. Nos Andes, reconheceram a semelhança das Brugmansias com a Datura e encontraram similares suas propriedades. O referente ao uso de Brugmansia é muito antigo.

Pouco se sabe sobre o uso de Brugmansia antes da Conquista. Entretanto, há algumas referências dispersas sobre estes alucinógenos. O cientista francês La Condamine menciona seu uso entre os omaguas do rio Marañón. Os exploradores Von Humboldt e Bonpland repararam na tonga, a B. sanguinea de flores vermelhas, usada como planta sagrada dos sacerdotes no Templo do Sol em Sogamosa, Colômbia.
Brugmansia arborea, B. aurea e B. sanguinea, usualmente crescem a uma altitude de 1800 metros. As sementes são amplamente utilizadas como um aditivo da chicha(3). As folhas moídas e as flores se preparam em água quente ou fria para se tomar como chá. As folhas podem mesclar-se com uma infusão de tabaco. Alguns índios raspan a cabeça suave e verde dos talos e a deixam de molho em água para seu uso.

A intoxicação de Brugmansia varia apesar de que sempre se caracteriza por uma fase violenta. Provavelmente não exista uma descrição tão sucinta de seus efeitos como a que deu um escritor no Peru, em 1846. O nativo "caiu em um pesado estupor, fixou seus olhos inexpressivos no chão, sua boca permaneceu convulsivamente cerrada e as fossas nasais se dilataram. Depois de uns quinze minutos seus olhos começaram a girar, brotou espuma de sua boca e todo o corpo foi presa de terríveis convulsões. Assim que passaram estes sintomas violentos, seguiu-se um sono profundo que durou várias horas; quando o sujeito se recobrou, relatou as particularidades da visita que fez a seus antepassados".
De acordo com um informe de 1589, em Tunia, entre os mulscas "quando um chefe morria, o acompanhavam à tumba sua mulher e seus escravos, os quais eram enterrados em diferentes estratos da terra [ . . .] nos quais não faltava ouro. Para que a mulher e os pobres escravos não temessem suas mortes, antes de que vissem suas horríveis tumbas os nobres lhes davam uma bebida preparada com a mistura do tabaco embriagante e das folhas da árvore que chamamos borrachera(4); desta maneira seus sentidos não percebiam o dano que logo lhes sobreviria". As espécies eram sem dúvida Brugmansia aurea e B. sanguinea.

Os jívaros dão às crianças teimosas uma bebida de B. sanguinea com milho desidratado; quando estão intoxicados são repreendidos pelos espíritos dos antepassados. Em Chocó se agregavam sementes de Brugmansia a uma chicha mágica, pois acreditavam que produzia nas crianças uma excitação durante a qual podiam descobrir ouro.
Os índios do Peru ainda chamam a Brugmansia sanguinea huaca ou huacachaca (planta da tumba), já que existe a crença de que revela tesouros enterrados antigamente em sepulturas. Nas zonas cálidas da Amazônia ocidental, Brugmansia suaveolens e B. xinsignis são utilizadas sozinhas como alucinógenos ou se mesclam com ayahuasca.

Talvez nenhuma localidade se iguala ao vale de Sibundoy nos Andes da Colômbia, no tocante ao uso de Brugmansia. Os índios inganos e kamsás usam como alucinógenos a várias especies e um bom número de cultivares locais. Os indígenas desta región, em especial os xamãs, desenvolveram um conhecimento profundo sobre os efeitos destas plantas e as cultivam para seu uso.
Estas cultivares, que são propiedade de xamãs específicos, recebem nomes nativos. As folhas do buyés (B. aurea) são usadas principalmente para curar o reumatismo; se trata de um medicamento efetivo com alta concentração de alcalóides de tropano. O blangan era empregado na antigüidade pelos cazadores: as folhas e as flores eram misturadas com a comida dos cães para que estes pudessem encontrar mais presas. A folha de amarón, em forma de língua, é apreciada por seus poderes supurantes e por seu uso no tratamento do reumatismo. A cultivar mais raro é o do salamán, cujas folhas estão estranhamente atrofiadas; se emprega no tratamento do reumatismo e como alucinógeno. Quinde e munchira são as que apresentan maiores irregularidades na forma de suas folhas; as duas se usam como alucinógenos apesar de que também no tratamento de reumatismo, como eméticos, carminativos, vermífugos e supurantes; a munchira também se emprega para curar erisipelas. Quinde é a cultivar mais amplamente difundida em Sibundoy; munchira é a mais tóxica. Os cultivares chamados dientes e ocre se usam principalmente para as dores reumáticas.

Os botânicos pensam que uma dessas assombrosas cultivares é Methysticodendron amesianum. É chamada culebra borrachera. Methysticodendro, mais potente que nenhuma outra cultivar de Brugmansia, se usa como alucinógeno e para os casos mais difíceis de adivinhação; é também um medicamento muito efetivo para as dores reumáticas ou artríticas. Por sus efeitos psicoativos, as cultivares quinde e munchira são usadas com maior freqüência. O suco que se obtém das folhas ou das flores é bebido sozinho ou em uma preparação com água ou aguardente (um destilado alcoólico do açúcar). Normalmente, em Sibundoy os xamãs são os únicos que tomam Brugmansia. A maioria dos xamãs "vêem" terríveis aparições de onças e serpentes venenosas. É possível que o uso da Brugmansia como alucinógeno esteja muito limitado devido às incômodas síndromes e aos desagradáveis efeitos que posteriormente produz.
O jívaro crê que a vida normal é uma ilusão, que os verdadeiros poderes são sobrenaturais e subjazem detrás da vida cotidiana. O xamã, com suas potentes plantas alucinógenas, pode cruzar através do mundo da maravilha etérea e aí pactuar com as forças do mal. O jovem jívaro, na idade de seis anos, deve adquirir uma alma externa, um arutam wakani, a visão produtora de alma que lhe permita comunicar-se com os antecessores. Para adquirir seu arutam o menino e seu pai realizam uma peregrinação a uma cachoeira sagrada, se banham nela, jejuam e bebem água de tabaco. Também tomam maikoa ou Brugmansia para estabelecer contato com o sobrenatural; então o arutam do moço se manifesta como onças e sucuris que penetram em seu corpo.

Com freqüência, os jívaros tomam natema ou Banisteriopsis para adquirir o arutam, já que a intoxicação é mais branda; mas se o uso de natema não tiver êxito utilizam então Brugmansia. Os jívaros afirmam que a intoxicação com maikoa pode produzir enfermidade.
As espécies de Brugmansia apesar de sua beleza ocasionam dificuldades. São plantas dos deuses, mas não como o peiote, os cogumelos e a ayahuasca que são dádivas mais agradáveis. Seus efeitos poderosos e incômodos, com períodos de violência e inclusive de enfermidade temporaria, assim como os males que seguem a sua ingestão, contribuem a situá-la em um lugar de segunda categoria. É verdade que são plantas dos deuses, mas eles nem sempre se esforçam por tornar a vida fácil, por isso deram Brugmansia ao homem para que dada a ocasião recorra a elas. A águia maligna revoluteia sobre o homem, e sua borrachera é uma dádiva perene que recorda que nem sempre é fácil ter uma audiência com os deuses.

Brugmansia arborea


Notas:
(1) Fonte: Planta de los Dioses - Plants of Gods, 1979 - Richard E. Schultes e Albert Hofmann - Fondo Cultura Económica - Mexico 1993
(2) Um artigo muito esclarecedor é "
Misha e outras Daturas", do site do Lobo do Cerrado, que além de esclarecer que o termo quechua Misha compreende todas as espécies de Brugmansia, fala das finalidades de uso da planta: 1. Terapêuticos/Adivinhatórios, usados conjuntamente com o San Pedro por especialistas chamados "Rastreadores"; 2. Fitoterápicos, aplicação de suas folhas em deslocamentos e quebra de membros; 3. Iniciáticos, ministrados o suco puro de Mishas de alto poder e selvagens, em cerimônias especiais reservadas unicamente a xamãs e a pessoas rigorosamente escolhidas; 4. Raramente as Mishas são ministradas a pacientes pela boca ou de uma outra forma que pode ser tóxica, deve haver um alto controle de sua dosagem para que não mate aquele que a ingerir; 5. Nas magias negativas, são usadas para causar "daño por boca", no qual a dosagem é calculada para causar a loucura permanente; 6. Na magia amorosa, seu suco é misturado na bebida para a vítima ficar apaixonada; 7. Para proteção da residência, elas são consideradas "guardiães" ou protetoras dos lugares. Geralmente em certas regiões, oferece-se sangue de animal para a Misha como agradecimento.
(3) "Chicha" (pronuncia-se tchitcha) é a tradicional cerveja andina feita da fermentação de brotos de milho.
(4) "Borrachera" é o termo na língua espanhola para dizer "embriaguez, ebriedade".

domingo, 16 de setembro de 2007

Entrevista com EVANDRO LINS E SILVA

Fonte :

"Legalize-se a droga"

Aos 90 anos, o advogado está assustado com a violência dos traficantes e sugere a descriminalização como única saída

MARTHA MENDONÇA, do Rio

O advogado Evandro Lins e Silva, de 90 anos, 70 deles militando nos tribunais, nunca teve medo de nadar contra a maré. Na década de 40, durante o Estado Novo, defendeu mais de 1.000 presos políticos. No período da ditadura militar, como ministro do Supremo Tribunal Federal (STF), concedeu habeas corpus que desagradaram aos militares. Em 1979, foi alvo de críticas feministas ao defender Doca Street, namorado e assassino de Ângela Diniz. Agora, diante da violência e do crime organizado que crescem no país, volta a ser polêmico ao defender a descriminalização das drogas. 'O tráfico acabaria em pouco tempo, e a violência que ele gera também', diz, espantado com os atos de terrorismo que estão acontecendo, em especial no Rio de Janeiro.

Lins e Silva continua com vida muito ativa. Há três meses, vem tendo aulas de computador. 'Meus bisnetos controlam essa máquina, não posso ficar atrás. Viver é aprender', ensina. Tem dado especial atenção à faculdade de Direito que leva seu nome, inaugurada no início do ano. 'A idéia é que os alunos não saiam só bacharéis, mas formados em cidadania.' No dia-a-dia, divide seu tempo entre o escritório no Centro do Rio e o apartamento em Copacabana, onde mora só desde a morte da esposa, Maria Luísa, em 1984. Sempre cercado de livros, concedeu entrevista a ÉPOCA.

ÉPOCA – A cidade do Rio de Janeiro viveu na semana passada mais uma noite de terror. Por que esses atos de violência dos traficantes estão se repetindo?
Evandro Lins e Silva – De fato, casos assim eram mais isolados. Meu pressentimento é de que o governo do Estado deve estar agindo com maior firmeza e o tráfico responde com demonstrações de força.

ÉPOCA – O que pode ser feito sobre as armas?
Lins e Silva – Deveriam ser proibidas a fabricação indiscriminada de armas e sua venda. Anulam-se todos os portes e parte-se do zero para voltar a liberar. Fabricação só a partir de pedido oficial, polícia, autoridades. E zero de entrada no país. O governo tem de cuidar disso. É sua função constitucional. O grande obstáculo é o enorme lobby da indústria de armas.

ÉPOCA – O senhor acredita no poder paralelo do crime organizado?
Lins e Silva – Existe um determinado poder que foge ao controle das autoridades e é localizado nas favelas: a disputa pelo comércio da droga. Com a falta de emprego e oportunidades na vida, as pessoas acabam aderindo a esse estilo de vida, se tornando parte disso, seja ativamente, seja por omissão. O traficante, por ganhar muito dinheiro, ganha o poder de corromper e cria uma teia de força muito grande.

ÉPOCA – Como combater o tráfico?
Lins e Silva – Combater à força é bobagem. O tráfico se tornou a oportunidade de emprego de muitas pessoas. É decorrente dos problemas socioeconômicos do país. Eu defendo a descriminalização das drogas.

ÉPOCA – E o que diria a nova lei?
Lins e Silva – Seriam permitidas a fabricação pelos laboratórios e a venda nas farmácias. Então se passaria a tomar conta das violações nessa venda, sendo necessário receita médica ou algum tipo de regra. Limites seriam criados. Se for feita uma venda irregular, que se puna a infração. Mas não seria mais crime. Dessa forma, a venda da droga sai da esfera marginal.

ÉPOCA – Sempre que o tema da descriminalização vem à tona, fala-se muito que o crime organizado se voltaria para outras ações, como assaltos, roubo de carros, e a violência continuaria...
Lins e Silva – Pode ser. Mas é preciso haver uma ação racional para cada área. O mais importante é focar no que realmente interessa, que é educar e dar oportunidade de emprego às pessoas. Isso, sim, reduziria todo tipo de crime. A solução, a longo prazo, é de natureza social. Mas, por ora, descriminalizar é um passo importante.

ÉPOCA – O senhor conhece muitas pessoas que concordem com isso?
Lins e Silva – Poucas. É uma solução polêmica e as pessoas gostam de discutir a questão moral que isso envolveria. Mas é um caminho muito simples e lógico. O mundo inteiro deveria seguir a mesma linha. A droga não é um problema brasileiro, é mundial. Claro que ao lado disso seria necessária uma campanha maciça no país condenando os efeitos da droga, em especial nas escolas. Mas há outras medidas importantes, como coibir o contrabando de armas.

ÉPOCA – Sempre que a violência cresce, há uma pressão da sociedade por penas maiores. Por outro lado, as cadeias estão superlotadas. Como resolver isso?
Lins e Silva – Cadeia não é solução. Nunca foi, nunca será. Presídios imensos são construídos com custo fabuloso, em vez de escolas. Manter a população carcerária é muito caro para o Estado. Tenho 70 anos de advocacia. Nunca vi alguém sair da cadeia melhor do que quando entrou. Cadeia é a coisa mais infame que já se inventou. E ainda cria uma situação de marginalização permanente. Ninguém mais dá emprego àquela pessoa quando sai, ela acaba parando no crime de novo.

ÉPOCA – Quem deve ir para a cadeia e por quanto tempo?
Lins e Silva – Sou absolutamente contra a prisão como método penal. Deve-se segregar quem for realmente perigoso, quem põe em risco a vida alheia. Hoje a concepção é tão diferente que me assombra. Não se julga um crime, se julga uma pessoa. Há que ver o motivo que levou a pessoa a cometer o crime. Se alguém mata o pai é um crime bárbaro. Mas por que foi isso? Se foi para receber a herança é uma coisa, se foi para defender a mãe das agressões do pai é outra. Há que se olhar as motivações de cada um. Veja os crimes passionais. Nunca vi passional reincidente. O ideal é que se reprima evitando a prisão de toda maneira. As penas alternativas são a saída.

ÉPOCA – O código penal está ultrapassado?
Lins e Silva – Sim, em muitos pontos. Um exemplo: o crime contra a propriedade é punido com pena mais grave que o crime contra a vida.

ÉPOCA – Deve ser porque a propriedade está sendo mais valorizada que a vida.
Lins e Silva – É sintomático. Hoje o deus é o mercado, é o dinheiro. O sistema capitalista não permite o fim da desigualdade social. Em meus 90 anos de vida, nunca vi uma perspectiva tão sombria para o mundo como agora. E olhe que testemunhei períodos de guerra e revolução. Como conceber que homens como Bill Gates tenham mais de US$ 60 bilhões? O que ele vai fazer disso? Ele vai morrer, como toda criatura, sem conseguir gastar a maior parte. Enquanto isso, milhões de pessoas passam fome no mundo. É uma distorção, me surpreende que as pessoas não se choquem com isso.

ÉPOCA – Qual foi seu melhor momento profissional?
Lins e Silva – Sempre brinco que será o próximo! Mas tenho grande orgulho de ter defendido mais de 1.000 perseguidos políticos durante o Estado Novo, que criou um órgão de triste memória, o Tribunal de Segurança Nacional. Foi um período de grande terror, eu sei o que enfrentei. Eu me afirmei aí como advogado.

ÉPOCA – E o pior momento?
Lins e Silva – Não foi uma derrota, mas as vezes em que atuei na acusação. Uma situação, em especial, me atormenta até hoje: um médico teria matado um rapaz que fazia barulho na rua. Acusei, o júri popular condenou e ele se matou na prisão. Eu estava convencido de que ele era culpado, mas e se não fosse? E me arrependo de ter acusado. E se a decisão tivesse sido mais resultado de minha eloqüência que dos indícios concretos? Penso nisso até hoje, 40 anos depois. Se um pecado cometi na profissão, foram as poucas vezes em que acusei. Das defesas não me arrependo de nenhuma.

ÉPOCA – O senhor acredita em justiça divina?
Lins e Silva – Boa parte de minha vida supus ser ateu, mas recentemente descobri que não sou. Percebo que existe algo de indefinível que se traduz na perfeição das coisas. O funcionamento do corpo humano. O fato de roçar um botão na TV e entrar uma imagem. Acho que essa perfeição das coisas se chama Deus.

ÉPOCA – Mas o mundo não é perfeito.
Lins e Silva – É verdade. Isso me lembra a frase de um pensador francês: 'Neste mundo terrível, Deus é de oposição'. Engraçado que supersticioso sempre fui. Não ando debaixo de escada, não passo sal na mesa e, para subir na tribuna, só com o pé direito. Convivi muito com crendices dos réus. Para muitos, os resultados favoráveis eram mais responsabilidade dos orixás que do advogado.

ÉPOCA – Qual é a maior vantagem de viver tantos anos?
Lins e Silva – Viver é bom. Tive pouco lazer na vida, trabalhei como o diabo. Mas meu prazer sempre foi o trabalho, então fui e sou feliz. Costumo dizer que uma vida longa é boa porque dá tempo de fazer tudo


PERFIL
Nascimento: 18 de janeiro de 1912, no Maranhão
Cargos públicos : Procurador-geral da República (1961 a 1963); chefe do Gabinete Civil (1963); ministro das Relações Exteriores de João Goulart (1963); ministro do STF (1963 a 1969)
Família : Quatro filhos, 11 netos e dois bisnetos