Por Lucas Kastrup Rehen
Introdução
Este trabalho tem por objetivo apresentar os principais elementos da filosofia religiosa rastafari - nascida nas montanhas jamaicanas na década de trinta e que se expandiu por todo o mundo a partir dos anos setenta - buscando entender principalmente o lugar que a cannabis ocupa nesta prática religiosa. O ponto central é apontar para a peculiaridade do uso ritual e cotidiano da cannabis entre um grupo de rastafaris, enfatizando a multiplicidade de concepções e práticas que estão intimamente associados ao consumo desta planta.
O presente trabalho está dividido em duas partes. Na primeira elaboro um breve histórico do movimento religioso, localizando o universo simbólico que deu origem ao “rastafarianismo”. Em seguida destaco a questão da utilização da cannabis (conhecida também entre os rastafaris pelos nomes de “ganja”, “marijuana”, “erva”, “sensimilla”, etc) e proponho entender esse uso como um “fato social total” cuja lógica cultural e simbólica opera nos mais variados campos de interação e sociabilidade do grupo. Ainda nessa segunda parte, atenho-me ao fato de que é possível analisar o ethos e a visão de mundo rastafari, assim como o papel desempenhado pela cannabis, mediante duas idéias “nativas” de grande relevância etnográfica, a saber: 1- a concepção rastafari acerca da idéia de uma suposta “essência natural humana” e 2- a postura política, autodenominada pelos rastafaris como “rebelde” e que diz respeito, pelo menos a princípio, a uma forte crítica ao “pensamento Ocidental moderno”.
A metodologia utilizada foi a entrevista em profundidade e a observação participante. O material aqui analisado é fruto da pesquisa de campo realizada entre dezembro de 2003 e março de 2004 com um grupo de sete peregrinos rastafaris, nascidos na Guina Inglesa e que se encontravam de passagem pelo Brasil. Nesta ocasião eles residiam na cidade de São Paulo, ministrando cursos para construção de instrumentos musicais e artesanato, promovendo reuniões e rituais com cantos e danças, onde eventualmente consumiam a “ganja”.
Retomei o tema no segundo semestre de 2005 quando realizei novas entrevistas com o mesmo grupo de guianeses, desta vez focando abertamente na questão da cannabis - tema que não havia sido a minha principal preocupação no trabalho anterior, quando investiguei outros aspectos da cosmologia rastafari. Desde então entrei em contato com outros adeptos desse movimento, desta vez brasileiros (principalmente do Rio de Janeiro, Niterói, São Miguel Paulista, Porto Alegre e Fortaleza) com os quais conversei informalmente e pude traçar um certo panorama geral sobre a visão de mundo rastafari. Embora existam diferenças perceptíveis, percebi inúmeras semelhanças entre o rastafarianismo guianês e o brasileiro. É possível sugerir que um fenômeno de “reinvenção” e ressignificação dessa prática religiosa esteja presente em nossas terras, assim como na relação Jamaica / Guiana - tema que trabalhei anteriormente (ver Rehen 2004). Trata-se de uma religião oriunda da ilha jamaicana e que sofreu um grande movimento de expansão, sendo, portanto, desde sua origem o resultado de um amálgama multicultural.
1- Breve Histórico
O rastafarianismo teve origem na Jamaica, na década de trinta, como conseqüência de um forte movimento de consciência negra, auto-identificado como anticolonialista e que lutava contra as péssimas condições dos operários negros nas fábricas e contra certos traços políticos e sociais jamaicanos, entendidos como sendo os resquícios da escravidão. Este movimento, originalmente chamado de “garveyta”, foi liderado por Marcus Mosiah Garvey, líder sindical e descendente dos marrons - principal comunidade de escravos foragidos e que se tornou impenetrável no século XIX (White 1999).
Entre outras coisas, Marcus Garvey tinha como ideal o projeto da “repatriação”, que seria o regresso de todos os negros e afro-descendentes de volta para a África. Para esse fim construiu a linha de navegação “The Black Star Line”, mas não obteve êxito.
O movimento foi rebatizado e também estimulado com a coroação de Ras Tafari Makonnem que recebeu os títulos de Haile Selassie I (Poder da Santíssima Trindade), Majestade Imperial da Etiópia, Rei dos Reis e Senhor dos Senhores. Ras Tafari reinou na Etiópia de 1930 até 1974. Este é um país de maioria cristã copta, portanto não católica e, da mesma forma não “rastafari”, sendo reconhecida historicamente como uma das primeiras nações cristãs de todo o mundo (ver Barker 1971).
Garvey havia profetizado: “Olhem para a África, onde um rei está para ser coroado e o dia da redenção se aproxima”. A notícia da coroação do rei africano, trazendo títulos bíblicos e sendo reconhecido como o descendente da dinastia do rei Salomão - conforme postulava a Igreja Copta da Etiópia - trouxe uma renovação para a identidade da população negra e rural nas montanhas jamaicanas, que passou a louvar o imperador etíope em suas comunidades auto-sustentáveis, sendo uma resposta quase imediata para a profecia de Marcus Garvey. Para os rastafaris, Haile Selassie I é também conhecido como “Luz do Mundo”, “Cabeça do Criador” e “Cristo na Terra”.
Com o advento do estilo musical reggae, que uniu instrumentos convencionais da música pop mundial, como baixo, bateria, teclados e guitarras e os mesclou aos tambores e à estrutura rítmica e melódica dos cantos tipicamente rastafaris - processo que teve início cerca de trinta anos após a coroação de Ras Tafari- o “rastafarianismo” ganhou força, se expandiu e desde então passou a ser reinterpretado localmente por diversas comunidades espalhadas pelo mundo. Processo este, que se mantém vivo até os dias de hoje.
2- O uso da cannabis e a cosmologia rastafari
O rastafarianismo pode ser descrito brevemente como um movimento filosófico religioso que preza pela auto-subsistência de seus seguidores, enfatizando os aspectos positivos de uma vida rural, de alimentação vegetariana e consumo da cannabis, entre outras condutas identificadas por eles como possuindo uma característica essencialmente “natural”. Por outro lado, a busca pela “naturalidade” pode ser compreendida como uma forte crítica aos moldes ocidentais (racistas) de produção, consumo e distribuição da renda.
Desta forma existe um duplo motor na práxis rastafari. O primeiro diz respeito a uma cultura que prioriza o contato com a natureza e identifica sua própria tradição religiosa como sendo “natural” e, o segundo, relacionado ao paradoxo vivido pelos rastafaris com relação ao mundo moderno, tecnológico e branco, buscando alternativas para contestá-lo.
Cabe ressaltar que os próprios rastafaris não apresentam em seus discursos essa operação dicotômica e vivem de forma a perceber e explicitar unicamente a “totalidade” dos valores e práticas que eles constroem e pelos quais suas identidades estão sendo construídas. Isto é, essa abstração, que desmembra a experiência rastafari a partir de dois pontos distintos, “a idéia de natureza” e “a militância anticapitalista”, é meramente um artifício metodológico, um esforço do pesquisador para compreender e tornar compreensível o movimento rastafari.
Sabemos, por meio de inúmeras etnografias e da contribuição intelectual que as ciências sociais vem desempenhando desde a origem de suas disciplinas que a relação dos homens com a natureza varia consideravelmente - histórica e culturalmente - sendo assim não existem categorias que estejam prontas e pré-determinadas biologicamente. Há espaço para concepções variadas na comunicação do homem com o meio, consigo mesmo e com os outros homens. Noções de Bem / Mal, Sagrado / Profano, entre outras, fazem sentido dependendo do contexto cultural em que os atores sociais estão inseridos.
De maneira resumida, posso citar como exemplo os típicos cabelos compridos e embaraçados dos rastafaris, conhecidos como dreadlocks ou “madeixas que chocam” (segundo algumas traduções) e que são um belo exemplo da dualidade “Natureza / Protesto”. Por um lado, o ato de deixar os cabelos crescerem e não penteá-los é, para os rastafaris, um sinal de sua “naturalidade”, fruto de desapego material e nas palavras de um de meus informantes, o resultado de sua própria “natureza inalterada”. Por outro lado, como o próprio nome diz, são “madeixas que chocam” e os dreadlocks, olhando por essa ótica, são um signo de protesto e contestação. O desapego material simbolizado nos emaranhados dos cabelos é o mesmo desapego aos produtos industrializados e à tecnologia em geral, desapego este que corrobora com todas as práticas da visão de mundo rastafari, sinônimos de “natureza” e “protesto”.
Sendo assim, as atividades do rastafarianismo obedecem a duas ordens: 1- práticas rituais e cotidianas tidas como naturais, sendo do domínio do sagrado: canto, dança, alimentação vegetariana, consumo da cannabis, contato com a terra (plantio e colheita de alimentos) , não cortar ou pentear os cabelos, louvar a África e Ras Tafari I, etc. 2- Atividades de cunho político: uma das características mais marcantes nesse tópico é o fato de que os rastafaris, quando inseridos nas cidades, abdicam do direito ao voto. Segundo eles: “nenhum governo é legítimo”, com exceção dos reis da dinastia salomânica da Etiópia.
Sustento que todos os elementos do ethos rastafariano podem ser analisados mediante a abstração “Natureza / Protesto”. A cannabis é um objeto que encarna essas duas dimensões na medida em que ela é para os rastas um dos grandes símbolos sagrados da natureza, sendo ao mesmo tempo uma bandeira para a transformação do modelo jurídico, moral e comportamental das sociedades contemporâneas.
Uma das frases mais usadas pelos rastafaris para designar a cannabis é chamá-la de “a cura das nações” . Se o “rastafarianismo” é essencialmente um movimento religioso de protesto - desde sua origem com Marcus Garvey, que rejeitou a dominação branca - fumar a “ganja” é também protestar e rejeitar as leis de uma hegemonia colonialista, que proíbe legalmente o uso da cannabis. Esta é também uma marca simbólica de sua identidade.
Para ilustrar essa característica “revolucionária” dos rastafaris e da utilização da “ganja” não apenas como sacramento, mas como contestação, posso citar um fenômeno histórico similar, descrito por MacRae e Simões (2000). Eles mostraram que a cannabis, a partir dos anos 60, começou a ser consumida por camadas médias urbanas brasileiras e logo em seguida, com o surgimento da ditadura militar, teve seu uso – já não mais restrito às camadas baixas e marginais da sociedade – associado a um estilo de vida alternativo, sendo também um dos elementos no processo de militância ideológica por liberdade de expressão, por igualdade e justiça social. Assim como essa geração brasileira, - que lutou por uma causa antiditatorial - os adeptos do “rastafarianismo” militam contra um modelo de vida “ocidental” e utilizam a “ganja” como bandeira místico-religiosa e política.
É por esse status privilegiado da cannabis dentro da cosmologia rastafari que entendo seu uso como um “fato social total”. Esta idéia se tornará mais clara na medida em que observarmos os aspectos mais gerais de suas técnicas de uso, as interpretações e as associações - ora feitas pelos “nativos”, ora por mim - que correlacionam o consumo da cannabis com outros aspectos da vida social rastafari.
Destaco agora uma das definições de Marcel Mauss sobre o que denominou por “fato social total”: “Nesses fenômenos sociais ‘totais’, como nos propomos chamá-los, exprimem-se, de uma só vez, as mais diversas instituições: religiosas, jurídicas e morais-estas sendo políticas e familiares ao mesmo tempo -; econômicas – estas supondo formas particulares da produção e do consumo (...); sem contar os fenômenos estéticos em que resultam esses fatos e os fenômenos morfológicos que essas instituições manifestam” (Mauss 1974; p.187).
2.1- Os nomes e as formas de consumo da cannabis no universo rastafari
A crença em Jah Rastafari como “Senhor da Criação” e o uso da “ganja” foram dois dos aspectos mais constantes entre os diferentes grupos de rastafaris que conheci. Outras prescrições variam consideravelmente, alguns rastas misturam tabaco com cannabis, outros comem sal ou bebem leite, fatos estes que tradicionalmente são considerados tabu na visão de mundo rastafari.
Durante o tempo em que estive em contato com os rastafaris da Guiana, pude observar quatro formas principais de uso da cannabis: 1- a “ganja” fumada em forma de cigarros, 2- fumada em cachimbos chamados de “cálices”, 3- ingerida na forma de chá e 4-utilizada como alimento: tempero, pastas ou bolos. Usualmente é unicamente o ato de fumá-la (cigarros ou “cálice”) que vem precedido e acompanhado por orações e evocações das palavras “Jah, Rastafari, Selassie I” repetidas por todos os fiéis, conferindo assim um caráter sacramental ao ato. Nos outros casos a cannabis pode ser usada ao longo de conversas, passeios, no desenvolvimento de trabalhos artísticos e em inúmeras situações sociais. Os rastas sentem-se livres para se divertirem enquanto consomem a “ganja”, mas sentem-se bastante ofendidos quando fumam em companhia de pessoas que falam palavrões (vocabulário classificado como negativo) ou assuntos considerados “profanos”.
A noção de identidade é também importante em termos da própria cannabis em si. Como em outros discursos desse tipo, a identidade rastafari pode ser percebida como uma construção sócio-cultural. Os rastas tendem a identificar o uso da cannabis apoiados em esteriótipos, experiências pessoais e contextos específicos para a sua utilização. Uma pequena demonstração dessas múltiplas identidades dos usuários da cannabis pode ser encontrada através dos nomes conferidos a esta planta e suas conseqüentes conotações.
O grupo de meus entrevistados, rastafaris guianeses, chama a cannabis por nomes tais como “ganja” e “erva”, além de uma variedade de outras nomenclaturas que são derivadas destas duas primeiras. Através de uma observação cuidadosa em relação ao vocabulário e a prática rastafari posso afirmar que a “ganja” é o termo mais adotado e aparece como um divisor de águas, definindo o caráter sagrado da planta - “ganja” é um “sacramento religioso” que está associado a cantos e rezas rastafaris - em contraposição a essa mesma substância, cannabis, quando consumida como recreação por pessoas “não-rastas” e pode então ser chamada pelos próprios rastafaris de “maconha” ou “dagga”.
Já o termo “erva” (ou “herb”) é utilizado quando os rastafaris querem reafirmar o aspecto medicinal das supostas propriedades curativas da cannabis e esse é um aspecto que também está ligado à auto-suficiência do estilo de vida rastafari, fundamentado, entre outras coisas, na crítica ao modelo de vida moderno . Eles não acreditam na cura através da medicina ocidental e sim através da “erva” em chás ou quando fumada na forma de cigarros ou em cachimbos, consumo que deve estar associado à música e orações. Ainda sobre essa noção da “erva” como medicina, os rastas afirmam que a cannabis pode curar muitas doenças, especialmente “pressão alta, stress, glaucoma e aliviar náuseas de pacientes com câncer”.
As opções por nomenclaturas ligadas à cura ou sacramento religioso reivindicam um lugar divino e “natural” dessa planta afastando-a de uma possível interpretação pejorativa, tal como “droga”. Além disso, é através da cannabis que os rastafaris defendem uma medicina natural alternativa e contestam a medicina “ocidental”. Com uma só prática eles evocam a “natureza” e o “protesto”, alicerces do “rastafarianismo”.
Um de meus entrevistados afirmou usar apenas os termos “erva sagrada” ou “ganja” ao se referir a cannabis em seu dia-a-dia e segundo ele o nome “maconha”, assim como“dagga” trazem uma “conotação negativa afirmada por policiais, juízes e repórteres”. São palavras de um informante: “o rasta tenta manter uma postura positiva, usando nomes que transmitem positividade, como é o caso da nossa ‘erva sagrada’”.
Outro entrevistado declarou:
“Ganja é um sacramento espiritual que eleva a alma para Rastafari-I, para que possamos ver a Verdade que o altíssimo nos revela o tempo todo(...) Para concluir, nem todos que usam essa planta são rastafaris, como se sabe alguns usam sem propósito ou com má intenção. Igualmente, nem todos os rastas usam a ganja. Mas eu concordo que esse é um critério para conhecer um rasta. Para ser rasta não precisa usar, mas todos os rastas apreciam seu uso”.
Em um nível operacional, da forma como é usada, a cannabis coloca os rastafaris de uma mesma comunidade unidos em torno da “ganja”, para discutirem seus problemas em comum e procurarem as melhores soluções. A natureza altamente ritualizada da “ganja” comumente ajuda os rastafaris a afirmarem os aspectos positivos do que é “ser um rasta”, especialmente quando eles afirmam estar vivendo em um sistema político injusto e perseguidor. Neste caso, a “ganja” adquire um valor simbólico de grande peso, torna-se um elo de sociabilidade e um signo da identidade do grupo em contraposição ao “sistema Babilônia”.
2.2- Estado alterado da consciência
Discutindo sobre a idéia de “estados alterados de consciência”, um de meus informantes insistiu em afirmar que não se trata da consciência “alterada” . Em outras palavras, a “Babilônia” – termo usado para designar o modo de vida ocidental - é quem altera a pureza original e quando um rastafari fuma a “ganja” ele acredita estar restituindo o “estado mental correto” e original.
Fazendo um paralelo entre o consumo da cannabis e a forma como os rastafaris desenvolveram uma linguagem própria para conversarem entre si, podemos encontrar na palavra “apreciar” (do inglês “appreciate”) um bom exemplo do que eles entendem como sendo o estado mental “alterado” pela Babibônia - e não pela “ganja”. “Appreciate” recebe na linguagem particular dos rastafaris o nome de “appreci-love”, já que o anterior “appreciate” faz lembrar “appreci-hate” e “hate” é o oposto de “love” (“odiar” é o oposto de “amar”). Sendo assim, o sentido da palavra “apreciar” está mais próximo do significado da palavra “amar” como contraponto de “odiar” e esses artifícios para a reinvenção de uma linguagem própria obedecem à mesma lógica que supõe o “estado mental correto”, induzido pela “ganja”. A linguagem rastafari é entendida por eles como uma “linguagem correta”, que traz a forma “correta” de expressão - assim como a “ganja” traz o “estado correto da consciência” - preservando o que seria o sentido original dos termos e da mentalidade. De acordo com os rastas essas alterações na linguagem e na mentalidade foram realizadas pela Babilônia e agora estão sendo resgatadas por eles e mantidas em sua pureza original.
Uma passagem clássica do antropólogo Gilberto Velho, no livro Nobres e Anjos (1998) torna-se importante para explicitar que tipo de fenômeno propicia as interpretações que os rastas fazem sobre as modificações sofridas no campo psíquico após o efeito do consumo da cannabis. Segundo a lógica social rastafari, os efeitos da “ganja” não equivaleriam a um “estado alterado de consciência”, mas ao “estado correto e original da consciência”, sendo este um valor cultural. Para Velho:
“Certas pessoas começam a ser socializadas no uso da maconha, dentro de um grupo, com a orientação de indivíduos mais experientes que não só são capazes de transmitir técnicas, mas de interpretar as sensações físicas que os iniciantes estão sofrendo” (Velho 1998, p.79).
Para o autor, a existência de um processo bidirecional é responsável por uma dialética constante entre os efeitos psicotrópicos e a subjetividade dos indivíduos, em um processo que é ao mesmo tempo psíquico e social. Saber o que ocorre na esfera subjetiva após o consumo da cannabis, fornecendo sentido e inteligibilidade à experiência sensível é obra de um delicado processo de aprendizagem. Esta educação é transmitida a partir de categorias de pensamento específicas, que são vividas como espontâneas e naturais, tamanha é a força da instituição cultural que está o tempo todo trabalhando sobre e através dos indivíduos.
Quando um rasta fala que ao fumar alcançou seu “verdadeiro” estado de consciência, ele está operando com categorias de pensamento particular de sua realidade cultural, na qual foi socializado, isto é, onde apreendeu as técnicas de uso e de interpretação dos fenômenos que ocorrem em sua intimidade e na relação com os demais.
2.3- A “ganja” e suas “funções” sociais
Estudos mais aprofundados sobre o uso da cannabis entre os rastafaris jamaicanos podem estimular outras conclusões sobre o ethos rastafari. Sabe-se que em diversas montanhas jamaicanas apenas os homens fumam a “ganja”, restringindo mulheres e crianças para o consumo do chá. De acordo com as palavras de um entrevistado:
“o chá vai para a corrente sanguínea e de lá para o coração, representa a parcela naturalmente feminina do corpo humano, enquanto a fumaça vai para o cérebro e o cérebro é a parte masculina do corpo”.
Dessa forma os homens fumam, conversam e tomam as decisões para o desenvolvimento cotidiano de suas comunidades. Quando indaguei meu entrevistado mais uma vez sobre esse fato, tive a resposta de que algumas mulheres costumam fumar escondidas na ausência de seus maridos.
O evento descrito acima parece estimulante para várias áreas de pesquisa antropológica, pois apresenta a noção rastafari (jamaicana) do corpo e de suas “funções” e a relação bipolar que fazem entre natureza e hierarquia: “decisão-cérebro-homem / emoção-coração-mulheres e crianças”. Este exemplo aponta para a classificação “nativa” acerca dos papéis sociais entre os gêneros e de um possível desejo encubado na vontade das mulheres ascenderem socialmente, manifestando essa inclinação no ato de “fumarem escondidas”.
Esse mesmo evento fala também do consumo infantil da “ganja” - na forma de chá e junto com as mulheres - e também comprova a minha hipótese introdutória de que o uso cannabis, entre os rastafaris, não é uma realidade estática e reduzida sendo um objeto de estudo privilegiado capaz de desvendar outros aspectos desta visão de mundo.
Um estudo comparativo entre as três realidades: rastas no Brasil, na Guiana e na Jamaica, poderia mostrar o caráter de resignificação que o “rastafarianismo” permite - pela ausência de instituição religiosa rígida e/ou estatuto de normas. As alteridades que influenciam o consumo da “ganja” aqui e ali e entre os rastafaris por todo o planeta nos mostram a existência de um espaço para reinvenções locais em uma cosmologia permanentemente “em construção” (Araújo 1999).
Considerações finais
A experiência do consumo da cannabis é, neste universo de rastafaris, eivada de considerações acerca da relação entre cura, religiosidade e protesto. Como vimos, as respostas mais imediatas fornecidas pelos entrevistados giram em torno dessas proriedades da cannabis, construindo nomenclaturas e modalidades específicas para cada tipo de uso.
Outra questão que conduziu este artigo, foi a de que o uso dessa planta, assim como toda a práxis rastafari, está fundamentada em duas idéias principais: “Natureza” e “Protesto” e que ambas articulam-se na vivência rastafari - ainda que estejam subentendidas no nível do discurso “nativo” - como portas de entrada para a compreensão desse tipo de religiosidade.
* * *
O fato de uma dada coletividade utilizar um psicoativo, neste caso a cannabis, atribuindo um determinado sentido contextual e um valor cultural para seu uso, elimina a classificação do grupo como portador de comportamento desviante - considerando os valores do próprio grupo. O estudo etnográfico dos rastafaris nos revela que entre eles, o consumo dessa substância é uma das normas sociais vigentes e está longe de ser um fator patológico. Engloba todas as atividades sociais e é condição sui generis para sua perpetuação. É neste sentido que a análise aqui empreendida pretende ser uma contribuição para o estudo antropológico sobre psicoativos.
Referências bibliográficas
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