Psicodélico: 2014

segunda-feira, 17 de fevereiro de 2014

A CARTA DE CARLOS CASTANEDA AO ETNOBOTÂNICO ROBERT GORDON WASSON, DATADA DE 6 DE SETEMBRO DE 1968 (EXCERTO):

/.../ P: Estou certo em concluir da sua narrativa que você nunca colheu cogumelos e nem mesmo sequer via uma espécie inteiramente?

Eu mesmo os colhi. Tive talvez centenas de espécies nas minhas mãos. Don Juan e eu fizemos viagens anuais para colhê-los nas montanhas do sudeste e nordeste do Valle Nacional no estado Oaxaca. Eu apaguei do meu livro todos os detalhes específicos sobre estas viagens e todos os detalhes específicos sobre o processo de colheita.
Don Juan mesmo colocou-se enfaticamente contra meu desejo de incluir estas descrições como parte do meu livro. Ele não se opôs aos detalhes específicos reveladores sobre a colheita do peiote ou da erva-do-diabo, já que acreditava que a divindade contida no peiote é um protetor, acessível portanto para todos os homens, e o poder da erva-do-diabo não era seu aliado (alidado). O poder dos cogumelos, em contrapartida, era seu aliado e como tal estava acima de tudo o mais. E isto implicava em segredo total
acerca dos processos específicos.

P: Você percebeu por si que estava lidando com cogumelo mexicano?

Não. Minha identificação botânica foi uma tentativa, e portanto terrivelmente pouco elaborada. No meu livro aparece como se fossem Psilocybe mexicanos e temo que isto seja um erro de edição. Eu deveria ter
trazido a afirmativa que eram sempre uma tentativa de classificação, uma vez que eu nunca estive completamente convicto de que fossem. As espécies em particular usadas por don Juan pareciam com os Psilocybe mexicano que eu tinha visto. Um membro do departamento de Farmacologia da UCLA
também me mostrou algumas espécies que tinha, e, baseado nisso eu concluí que estava lidando com estas espécies. Entretanto, nunca se tornaram em pó sem serem manuseados. Don Juan os colhia sempre com a mão esquerda, transferia-o para a sua mão direita e então o punha numa cabaça pequena e apertada. O cogumelo desintegraria em partículas finas, mas não em pó, uma vez que era inserido delicadamente para dentro.

P: Você sabe como os cogumelos crescem?

Nós os encontramos crescendo em troncos mortos de árvores, mas mais freqüentemente em restos decompostos de arbustos mortos.

P: Qual é a origem cultural de don Juan?

Don Juan é, ao meu ver, um homem marginal que foi forjado por várias forças exteriores à cultura Yaqui genuína. Seu nome é realmente Juan. Eu tentei achar um outro nome para usar no meu livro, mas eu não conseguia imaginá-lo com outro nome que não fosse Don Juan.
Ele não é um yaqui puro, isto é, sua mãe era uma índia Yuma, e ele nasceu no Arizona. Sua origem miscigenada parece tê-lo tornado em um marginal desde o início.
Ele viveu no Arizona nos primeiros anos de sua vida e então mudou-se para Sonora quando tinha talvez seis ou sete anos de idade. Ele viveu ali por um tempo, não estou certo se com seus dois pais ou apenas com seu pai.
Esta foi a época do grande levante Yaqui e Don Juan e sua família foram capturados pelas forças armadas mexicanas e deportados para o estado de Veracruz. Mais tarde Don Juan mudou-se para a área do “El Valle Nacional” onde viveu por cerca de trinta anos.
Eu acredito que ele mudou-se para lá com seu professor, que deve ter sido Mazateco. Até agora eu não fui capaz de determinar quem foi seu professor, nem como ele aprendeu a ser um brujo, ainda que o mero fato de eu ter que levá-lo todo ano para Oaxaca para coletar cogumelos seja um forte indício da localidade onde ele aprendeu, pelo menos acerca dos cogumelos.
Como você pode ver, me é impossível a esta altura determinar com certeza sua origem cultural, a não ser de uma maneira hipotética. Entretanto, o subtítulo do meu livro é “o caminho Yaqui do conhecimento”. Este é outro engano em que me envolvi pela falta de experiência em relação a publicações.
O Comitê Editorial da Editora da Universidade da Califórnia sugeriu, após aceitar meu manuscrito para publicação, que a palavra Yaqui deveria ser incluída no título para situar o livro etnograficamente. Eles não leram o manuscrito, mas concluíram que o que eu disse é que Don Juan era um Yaqui, o que era verdade, mas eu nunca quis dizer que Don Juan era um produto da cultura Yaqui, como parece ser o caso quando você lê o título do livro. Don Juan considerava-se um Yaqui e parecia ter laços profundos com os Yaquis
de Sonora. Entretanto, se tornou óbvio para mim agora que esses laços eramapenas uma ligação superficial.
Eu não estou bem certo se os cogumelos alucinógenos crescem ou não nas regiões áridas de Sonora e Chihuahua. Don Juan nunca procurou por eles lá, que eu saiba. Ainda que ele tenha afirmado repetidamente que uma vez que o homem aprende a comandar o poder dentro deles, os cogumelos podem crescer em quantos lugares ele queira, isto é, eles crescem por si mesmos sem sua intervenção direta.
A primeira vez na vida que eu vi os cogumelos foi em Durango. Eu pensei que nós estávamos indo olhar “honguitos”, mas nos concentramos colhendo peiote em Chihuahua. Naquele momento eu vi alguns, dez ou doze, talvez. Don Juan disse que eles eram apenas um sinal, e que não havia um número suficiente para fazer uso. Neste momento também me disse que nós tínhamos que fazer uma viagem para Oaxaca para achar o número certo de cogumelos.
Em 1964 eu mesmo achei uma espécie nas montanhas de Santa Mônica aqui em Los Angeles. Eu os levei para o laboratório da UCLA, mas por falta de cuidado eles os perderam antes de identificá-los. Era muito claro para mim que era um cogumelo da mesma espécie usada por Don Juan; naturalmente ele interpretou o evento de achá-lo um presságio de que eu estava no caminho certo da aprendizagem, mas minhas ações subseqüentes, como colhê-lo e deixá-lo com estranhos, lhe resseguraram novamente da minha extrema parvoíce.

P: Você trouxe de volta o pó, ou a mistura, do qual o pó de cogumelo era um ingrediente?

Não, entretanto tenho certeza que posso obter um pouquinho dela, talvez um punhado. Se isso for o bastante para você examiná-la no microscópio eu posso mandar-lhe no final deste ano.

P: Vai haver uma edição em Espanhol do livro?

Eu espero que a editora da Universidade da Califórnia considere esta possibilidade. Minhas anotações estão todas em espanhol. Na verdade o livro é quase uma versão em inglês do manuscrito em espanhol.

P: Don Juan dizia “un hombre de conocimiento” ou simplesmente “um hombre que sabe”?

Você me deu aqui uma informação preciosa. Para definir as condições de ser, ou o estágio de aprender a ser um “homem de conhecimento” don Juan usou os termos “hombre de conocimiento”, “hombre que sabe” e “uno que sabe”. Eu preferi o termo “homem de conhecimento” porque é mais concreto do que “aquele que sabe”.
Eu tomei parte das minhas notas em espanhol que mencionavam “o homem que sabe” e as incluí na carta. Espero que estejam legíveis. Estas folhas são uma transcrição direta de algumas notas ainda mais ilegíveis que eu tomei enquanto Don Juan falava para mim. Via de regra eu sempre reescrevo minhas notas imediatamente para não perder o frescor e o brilho das afirmações e pensamentos de Don Juan.

P: Don Juan era bilíngüe, ou era mais fluente em espanhol do que em yaqui?

Don Juan falava espanhol tão fluentemente que eu tendo a acreditar que seu domínio do espanhol é melhor do que qualquer outra linguagem que ele saiba. Mas ele também fala Yaqui, Yuma, e Mazatec. Acredito que ele também fale inglês, ou que ao menos possa entender perfeitamente, embora eu nunca o tenha visto falando.

P: Você tomou nas suas notas de campo os termos Yaqui equivalentes aos termos que ele usava?

Eu tenho alguns termos que não são espanhóis, mas são muito poucos para que seja feito um estudo sério. Nossas conversas eram realizadas apenas em espanhol e os poucos termos estrangeiros não eram todos palavras Yaqui.

P: Você disse aos seus leitores que ele pode ler e escrever em Espanhol?

Ele lê muito bem. Mas eu nunca o vi escrevendo. Por um longo período eu pensei que fosse analfabeto. Este equívoco de minha parte era resultado das nossas diferenças nas ênfases. Eu enfatizo áreas de comportamento que são completamente irrelevantes para ele, e vice-versa. Esta diferença cognitiva entre nós é o tema qee estou tentando desenvolver na biografia de Don Juan que estou escrevendo agora.
Não há muito o que dizer sobre mim. Sou nativo de São Paulo, Brasil, mas fui para a escola em Buenos Aires, Argentina, antes de vir para este país. Meu nome completo é Carlos Aranha. Seguindo a tradição latina de adicionar o último nome da mãe ao seu nome, eu me tornei Carlos A. Castaneda quando vim para os Estados Unidos. Este sobrenome pertence ao meu avô que era da Sicília. Eu não sei como era originalmente, mas ele mesmo alterou-o para Castaneda para satisfazer seus caprichos. /.../

(Tradução de Miguel Duclós, in http://www.consciencia.org/castaneda/
castaneda-carta-gordon-wasson.html)