Psicodélico: DEBATE SOBRE DESCRIMINALIZAR USO DE DROGAS AVANÇA NA ARGENTINA

terça-feira, 3 de julho de 2012

DEBATE SOBRE DESCRIMINALIZAR USO DE DROGAS AVANÇA NA ARGENTINA

Na vizinha Argentina, o debate no Legislativo sobre um modelo eficiente de combate ao narcotráfico aborda diretamente o ponto mais sensível para os críticos das medidas proibicionistas que norteiam as políticas antidrogas em quase todo o mundo: a necessidade de despenalizar o porte de drogas.
Menos ousados que a proposta uruguaia, mas ainda assim à frente das políticas mais ambíguas e conservadoras na América Latina, seis dos oito projetos de lei em matéria de drogas em debate no Legislativo argentino propõem, com pequenas diferenças, um passo em direção à despenalização do porte de entorpecentes no país. Há um no Senado, apresentado pelo kirchnerista Aníbal Fernández, que propõe uma reforma integral na política de drogas e apenas um, na Câmara, que propõe o aumento de penas.
“Alguns projetos misturam a mudança na lei penal com o acesso à saúde, o que eu considero um grave erro. A atenção ao usuário deve ser tratada pelo Ministério da Saúde, do Desenvolvimento Social, do Trabalho. É preciso separar lei penal de sistema de saúde”, defende Pablo Cymerman, da Associação Civil Intercambios, que há dez anos organiza a Conferência Nacional sobre Políticas de Drogas e, desde 2009, organizou três Conferências latino-americanas sobre o tema, na Argentina, no Brasil e no México.

Cymerman conta que há 17 anos realiza ações locais utilizando o método de redução de danos, abordagem não abstencionista ao uso de drogas, que procura permitir o consumo amenizando os efeitos negativos entre os usuários (como a distribuição de seringas, por exemplo). 

Segundo ele, salvo algumas iniciativas isoladas, esse ainda não é o parâmetro de tratamento ao usuário. “A redução de danos não é uma política de Estado”, lamenta. “Despenalizar o porte de drogas pode influenciar positivamente no tratamento em caso de uso problemático de drogas na medida em que deixa de ser um castigo e passa a ser uma opção [do usuário]. Mas também é preciso preparar o sistema de saúde para recebê-los”, adverte.

O que mudaria

A descriminalização do porte de drogas chama atenção pelo consenso, poucas vezes alcançado, entre forças políticas opositoras. Os deputados Diana Conti, da ala peronista Frente para a Vitória, a mesma da presidente Cristina Kirchner, Ricardo Gil Lavedra, líder da bancada da União Cívica Radical, e Victoria Donda, da Frente Ampla Progressista, deixaram de lado as diferenças e um dos projetos discutidos atualmente na Câmara de Deputados é resultado do consenso a partir de suas três propostas anteriores.

Com votação prevista para o mês de junho, e depois adiada, o projeto, se aprovado, inverteria a carga da prova, obrigando o Estado a levantar indícios convincentes de que a droga que o acusado carrega é para fins comerciais. Mais do que se basear em quantidades previamente estipuladas para determinar o consumo ou a venda, a polícia teria que levantar provas consistentes de que há comércio para iniciar uma causa penal contra alguém que seja surpreendido com entorpecentes.

Em 2009, a Suprema Corte da Argentina declarou por unanimidade a inconstitucionalidade da aplicação de penas a usuários, com base no artigo 19 da Constituição do país, que protege as ações privadas dos indivíduos. A reforma legislativa acompanharia a decisão da Justiça e o consumo, mesmo em via pública, só estaria penalizado em caso de que algum menor de idade fosse induzido a consumir também.

“Os dados do Judiciário indicam que atualmente 12 mil pessoas são processadas por ano por violação à lei de drogas com base no porte da substância. Em 70% dos casos fica provado que o porte era para consumo e somente em entre 1% e 3% as causas são por comércio. Uma lei absurda, baseada no porte, que obstrui o Judiciário e impede que as forças sejam direcionadas à repressão ao narcotráfico”, afirma Sebastián Basalo, diretor da Revista THC, primeira publicação argentina especializada em cultura em torno das drogas.

“Por que a polícia continua prendendo usuários? Porque isso gera estatísticas e uma aparência de que se faz algo para ‘combater o narcotráfico’. Na hora das estatísticas, todos entram como violadores da lei de drogas. Isso acontece porque na Argentina quem controla o negócio do tráfico ilegal são as forças policiais, que obviamente não estão dispostas a investigá-lo”, diz Basalo.

Com uma tiragem de 35 mil exemplares por mês, a revista – material de colecionador – tem sua sede em um discreto apartamento do pitoresco bairro portenho de Almagro e um público leitor de fazer inveja a muitos meios de comunicação impressos.

Sebastián conta que quando a publicação foi lançada houve tentativas de censura e dificuldade de distribuição no interior do país. No entanto, se orgulha de publicar conteúdo independente “com total liberdade.” “Na THC, diferente do que alguns colegas de profissão afirmam, gozamos de total liberdade para publicar o que quisermos”, diz. “Mesmo assim, é preciso pensar que um dos aspectos perversos da lei de drogas é justamente categorizar como apologia ou preconização do uso de drogas a publicação de informação sobre elas. Isso é censura.”

Cultivo legal

Outro aspecto importante do projeto de lei pluripartidário é a questão do cultivo, para o caso de usuários de maconha. Hoje, com uma denúncia e algumas fotos tiradas por algum vizinho mal intencionado, uma pessoa que cultive plantas de maconha, ainda que para fins de consumo pessoal, terá que passar por um processo judicial e provar que não tinha a intenção de vender. Com a nova lei, antes de emitir uma ordem de busca e apreensão em uma casa, a polícia tem que reunir provas de que as plantas cultivadas são para fins comerciais. Possuir sementes de maconha deixaria de ser delito, mas a venda continuaria penalizada.

A proposta de mudança na lei resolve o acesso à maconha – presentear amigos com sementes não entraria como delito –, mas deixa em aberto o problema do acesso a outras substâncias, como a cocaína, que é majoritariamente trazida de outros países e demanda um esforço maior para sua produção.

“Proibir o cultivo obriga o consumidor a ter que lidar com o traficante. Existe o mito de que a maconha é a porta de entrada para outras drogas. A verdadeira porta é a proibição. Uma pessoa que quer fumar precisa se expor ao risco de lidar com traficantes, muitas vezes em situações de violência. A maioria dos consumidores de maconha que começam a consumir outras drogas chegam a elas porque o traficante as apresenta”, afirma Sebastián. “A questão do acesso a outras substâncias está em aberto, é preciso continuar debatendo, mas a descriminalização do porte é um grande avanço”.

Cymerman conta que há dez anos, quando se realizou a primeira Conferência Nacional sobre Políticas de Drogas na Argentina, a despenalização era algo quase impensado. “Hoje a opinião pública é mais favorável e o debate avançou em todos os níveis do Estado”, afirma. 

“A mudança no rumo da Sedronar (Secretaria de Programação para a Prevenção ao Vício das Drogas e Luta contra o Narcotráfico), que até cinco meses atrás tinha uma postura conservadora, está dando passos importantes para o reconhecimento do problema e o tratamento adequado. Mas ainda acho um contracenso um organismo que trate de prevenção e de luta contra o narcotráfico ao mesmo tempo”, comenta.

Durante os preparativos para Conferência Nacional de 2012, que ocorreu em paralelo ao debate obre a despenalização na Câmara de Deputados, a Intercambios lançou uma campanha com 15 ideias para uma nova Lei de Drogas, entregues a legisladores e divulgadas através de redes sociais para o debate público. Setes das quinze ideias se relacionam com mudanças na lei penal que facilitariam o combate real ao tráfico ilegal de drogas e atenuariam penas para pequenos traficantes e para as ‘mulas’, que muitas vezes são mulheres pobres. Os outros oito pontos têm relação com o acesso à saúde e a atenção digna para usuários de drogas com problemas de adição.

“Costumavam dizer que não estávamos preparados para debater a lei de drogas. A Argentina hoje é líder em políticas de drogas na América Latina e isso só é possível porque há debate. O debate faz com que tudo avance”, conclui Basalo.

Fonte: Opera Mundi

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