Extraído do Excelente blog musical :
Gravetos & Berlotas
A Planta Bandida e os Piratas: Sobre o Crime e Suas Origens
por felipedeamorim
Nas primeiras décadas do século XX, o cânhamo era uma plantação crucial da economia agrícola norte-americana. E não poderia deixar de ser. Uma das primeiras culturas a ser domesticada pelos homens, produtos feitos à base de cannabis existem há, pelos menos, uns dez milênios. Por crescer rápido, consumir pouco espaço e ser resistente às pragas, o cânhamo foi matéria-prima preferencial da humanidade durante séculos, servindo para manufaturar desde tecidos, papel e cordames, até material de construção e combustível. Junto do algodão e do milho, foi uma das plantações tradicionais da colônia norte-americana, sendo cultivado até mesmo pelo primeiro presidente dos Estados Unidos, George Washington, e pelo terceiro, Thomas Jefferson. E não era mau negócio… dotada de uma fibra particularmente versátil, fácil de se plantar e de se beneficiar, seus custos de produção significativamente mais baixos o tornavam economicamente superior às alternativas. Das velas de navios que sustentavam o comércio marítimo que serviu de base ao crescimento da colônia norte-americana, às folhas de papel onde foram publicados os ensaios Federalistas, até os tecidos usados para vestir a população da nova nação, o débito dos Estados Unidos à plantinha insuspeita era enorme, assim como o do resto do mundo. Mas os milênios de ajuda do cânhamo para a humanidade mudariam no século XX, e não por razões completamente honestas.
Além de ser usado para fazer linho, roupas, cordas de navegação, sacos, lonas, placas de fibra, isolamento térmico, papel, além de servir como ótima cultura para revitalizar terra de plantações, o cânhamo era também consumido como remédio, dada as propriedades narcóticas do seu princípio ativo… o tetrahidrocanabinol, ou THC. Extratos de Cannabis eram vendidos em farmácias, e cigarros feitos da planta eram usados liberalmente por agricultores. O consumo de THC era regulado pela necessidade de prescrição médica, e considerado um narcótico potencialmente perigoso, mas essas medidas não eram mais restritivas que as exigências atuais para consumir outras substâncias psicoativas como Prozac ou Valium. E, de forma geral, essas restrições nem eram tanto resultado de uma preocupação com a cannabis por si, mas sim com um parente próximo da planta, o ópio, esse sim visto como uma ameaça de verdade à saúde pública (para não mencionar os interesses econômicos das potências ocidentais no oriente). Leis tornando mais duras as regras para comercialização de narcóticos durante as primeiras décadas do século XX visavam restringir o uso de opiáceos, e atingiam a cannabis como efeito colateral. E de qualquer forma, o comércio de cânhamo e seus outros subprodutos continuava bem.
Mas então, entra na história o Cidadão Kane em pessoa, William Randolph Hearst. Veja bem… apesar de servir para tudo, e crescer em qualquer lugar, o cânhamo tinha UMA fraqueza… ele era meio trabalhoso de se colher. Por isso, já no século XIX, a produção de papel de cânhamo caiu em desuso, tendo sido trocada pelo processo de produção à partir de polpa de árvores e ácido sulfúrico… que, você deve imaginar, exigia menos trabalho humano, mas era extremamente mais danoso ao meio ambiente, não só pela destruição das árvores, mas também pelo lixo químico produzido no processo. Hearst, cujo império de mídia se erguia nas costas de jornais impressos (e chantagem, concussão, notícias fantasiosas e difamação de caráter, a propósito) era compreensivelmente dono tanto de plantações de árvores para polpa, quanto de moinhos de papel… e detinha significativa faixa desse mercado. Mas até ai, tudo bem. cânhamo não era usado largamente para fazer papel, e os negócios de Hearst iam bem. Até que…
Em 1916 foi criado um descascador mecânico especificamente voltado para o cânhamo, que tornava muito mais rápido e fácil o processo de extração de fibras da planta. Seu uso foi se disseminando e, na década de 30, muita gente já se perguntava se não seria mais sensato substituir o danoso e mais caro processo de produção de papel via polpa de árvores pelo processo via fibra de cannabis. Hearst não hesitou em reagir. Nunca temeroso de publicar uma matéria escandalosamente falsa para manipular a opinião pública (ele foi o primeiro homem a ser chamado de jornalista amarelo, afinal de contas), Hearst logo começou a publicar matérias em sua cadeia de jornais, demonstrando os perigos médicos e sociais advindos do consumo da “marijuana” (nada como um termo estrangeiro para botar medo na classe media xenófoba gringa). Histórias escandalosas de delinquência juvenil (quem vai proteger nossas crianças?), violência incitada pela cannabis e danos irreversíveis aos cérebros da juventude estadounidense se seguiram com constância de metrônomo. Pouco importava se os estudos médicos da época já demonstravam que os efeitos nocivos da cannabis eram mínimos, e em certos aspectos, inexistentes. Os mitos de Hearst sobre os efeitos das drogas logo tomaram o imaginário coletivo. Filmes como “Reefer Madness” (conhecido no Brasil como “A Porta da Loucura” ou o mais legal “A Erva Maldita”) retratavam os horrores daqueles que consumiam a cannabis… Em certa cena, uma pobre jovem, sobre o efeito do vegetal do mal se entrega à euforia descontrolada causada pela droga (hein?) e começa desesperadamente a tocar piano sem parar. A sociedade estava chocada. Imagine só uma multidão de jovens descontrolados, sob os efeitos da marijuana, tocando sem parar pianos? Na faculdade, por exemplo, seria impossível ouvir uma aula sequer! Isso tinha que ser detido.
Hearst tinha causado muito barulho, mas efetivas medidas especificamente contra a cannabis ainda não existiam. Isso ia mudar em 1935, com a chegada de outro peso-pesado na história… No caso o grupo corporativo DuPont, donos da patente do processo químico de transformação de árvores em polpa e que, naquele ano, tinha desenvolvido a técnica para produção de nylon, um polímero resistente, praticamente impossível de se reciclar e que produzia o venenosíssimo cianeto de hidrogênio se queimado, sendo, portanto, muito mais nocivo à saúde que cânhamo (cuja queima, conforme verificado em grupos de controle, só produz sono, larica, papo chato e uma apreciação despropositada de reggae ruim). Ainda assim, a DuPont estava decidida a usar o nylon como o tecido do futuro, substituindo de forma completa o mais barato tecido de cânhamo. Para ajudar nesse projeto, foi convocado Harry Anslinger, conhecido proibicionista e chefe do Escritório Federal de Narcóticos dos Estados Unidos e marido da sobrinha de Andrew Mellon… o Secretário do tesouro que tinha indicado Anslinger para o cargo e, ora bolas, que puta coincidência, era dono do Mellon Bank, Gulf Oil e Alcoa, alguns dos principais parceiros comerciais da DuPont.
Como o governo dos Estados Unidos tinha laços estreitos com DuPont, que era fornecedora de explosivos e munição desde a Guerra da Independência, não foi difícil utilizar a máquina pública para atender os interesses da companhia. Anslinger logo iniciou uma campanha contra a maconha. Discursos exaltados no Congresso eram seguidos por artigos em revistas detalhando a destruição causada pela erva, tudo temperado com doses generosas de sensacionalismo e racismo. Em um artigo chamado “Marijuana: Assassino da Juventude”, Anslinger contou a história de Victor Licata, que matou a família inteira à machadadas depois de fumar unzinho. O fato que Licata era um conhecido psicótico, que a polícia já tentara internar no passado, não era mencionado. Em outro artigo, Anslinger alertava sobre as garotas brancas nas universidades que, sob o efeito da erva, eram seduzidas por estudantes negros. “Resultado: gravidez”, concluiu Anslinger, alertando do perigo da marijuana que, pior que assassinatos, podia gerar mestiçagem. Finalmente, em 1937, o Congresso aprovou o Ato de Taxação de Marijuana, que efetivamente proibiu o consumo da droga no país… e, em uma inovação legislativa, proibiu também a produção e estoque de cânhamo, a planta da qual a droga era apenas um entre centenas de subprodutos. De um ponto de vista da saúde pública, isso faz tanto sentido quanto proibir mandioca porque a raiz pode ser usada para extrair cianeto.
O resultado disso tudo é a situação que encontramos hoje. Uma espécie inteira de vegetal, capaz de trazer inúmeros benefícios econômicos, é considerada ilegal na maior parte dos países ocidentais, em grande parte graças à pressão do governo dos Estados Unidos e sua política internacional de combate às drogas. Os prejuízos econômicos e sociais dessa criminalização, que podem ser vistos em qualquer cadeia pública ou morro do Brasil, em muito superam qualquer dano causado à saude pública pelo consumo de cannabis… Uma substância que, de acordo com repetidos estudos farmacológicos nos últimos cem anos, causa danos negligíveis à saúde, muito inferiores aos danos causados por substâncias legais como álcool e tabaco. A diferença é que não dá para fazer papel, tecido ou remédios baratos à partir de cana-de-açúcar. E é isso o que realmente foi proibido.
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Mas qual a razão principal de eu estar contando essa história? Por incrível que pareça, minha bandeira aqui não é a legalização da maconha, causa já melhor representada por gente muito mais inteligente, bem informada e articulada do que eu. O que eu desejava demonstrar é que, quando um governo possui laços estreitos com corporações industriais, as leis de um país tendem a deixar de representar necessidades do povo para se atenderem os interesses de empresas. O processo gradual de criminalização da maconha, com o sequestro da opinião pública, exposição de praça pública de “infratores” e, finalmente, ação política serve de caso exemplar, e hoje podemos vê-lo se repetir na batalha elos direitos de distribuição de informação que é travada na internet. Durante décadas, a violação de direitos autorais de artistas foi tolerada abertamente e medidas legais para coibir ou punir isso eram encontradas com total desinteresse do sistema jurídico e legislativo… ou até mesmo condescendência aberta. A luta do Lobão, na década de 90, para garantir controle maior dos royaltiesdevidos aos artistas só lhe rendeu a fama de louco, e isso tudo porque, até aquela época, quem violava os direitos autorais, gozando de total impunidade, eram as gravadoras e distribuidoras.
O advento da internet e os protocolos de transmissão de dados tiraram o monopólio sobre a distribuição de produtos de mídia das grandes empresas, jogando-a nas mãos da multidão anônima do mundo. E, olha só mais outra coincidência, foi somente a partir daí que as leis protegendo os direitos autorais começaram a ser aplicadas, no que é, no fim das contas, uma tentativa de criminalizar a distribuição livre de dados. A morte de Aaron Swartz, semanas atrás, é um trágico exemplo desse processo. Swartz estava encarando a possibilidade de passar 35 anos na cadeia, tudo por ter tornado disponíveis dados legais e científicos, muitos dos quais já em domínio público. Em comparação, a condenação de Thomas Bray, um anestesiologista que espancou, tentou matar e estuprou por cinco horas uma garota de 23 anos em 2012, foi de 25 anos de prisão. Na mesma toada, Kim Dotcom, fundador do Megaupload, um banco digital de arquivos, foi preso em 2012 em uma operação policial que envolveu agentes armados com rifles e submetralhadoras, e helicópteros cercando sua casa. Acusado de causar 500 milhões de dólares de dano à indústria de entretenimento ao permitir compartilhamento de arquivos com direitos autorais registrados em seu site, Dotcom foi enviado à cadeia sem direito à fiança, onde permaneceu preso por um mês e meio, até finalmente ser liberado por um juiz que reconheceu como era ostensivamente ridículo manter preso um cara que fez um site, quando assassinos capturados na mesma época já gozavam de liberdade provisória. O mais intrigante? Apesar da terrível ameaça e dano representado por Dotcom, Megaupload, Fileshare e todos seus congêneres, balanços fiscais recentes revelaram que o ano de 2012 foi o mais lucrativo da indústria de cinema de Holywood. Desconfio que se está faltando dinheiro para os pobres artistas famintos, o problema deve estar em outro lugar, e não em você e no seu torrent.
A diferença crucial é que, na época da investida contra o cânhamo, a opinião pública era uma força bestializada, vítima e prisioneira das informações manipuladas por Hearst. Hoje, os mesmos meios de comunicação que me permitem baixar música e filmes, me permite também buscar informação alternativa, muitas vezes em fontes primárias por definição mais confiáveis que qualquer reportagem. Nós temos o meio de nos conscientizarmos e nos mobilizarmos contra o processo de criminalização da distribuição de dados, rebatendo as informações falsas fornecidas pelas distribuidoras e seus órgãos vassalos como o ECAD, e fazendo pressão política e social contra casos como os de Swartz e Dotcom. Não devemos ser coniventes com as tentativas das corporações de mídia de tomarem para si o sistema legislativo, e o empregarem para garantir uma sobrevida ao seus datados modelos de negócio. O futuro não pode ser impedido, mas isso não quer dizer que aqueles que ganham dinheiro com o anacronismo não vão tentar.