Psicodélico: Visões e sonhos iniciatórios entre os xamãs

quarta-feira, 29 de junho de 2011

Visões e sonhos iniciatórios entre os xamãs




Visões e sonhos iniciatórios entre os xamãs siberianos

Por: Mircea Eliade


As doenças, os sonhos e os êxtases são apenas meios de alcançar a condição de xamã. Às vezes, estas estranhas experiências não representam mais que uma "escolha" do alto e simplesmente preparam o candidato para novas revelações. Mas, em geral, as doenças, os sonhos e os êxtases são, em si, a iniciação; isto é, transformam o indivíduo profano em um técnico do sagrado.

Naturalmente, esse tipo extático de experiência é sempre, e em qualquer lugar, acompanhado de instrução teórica e prática nas mãos de velhos mestres; o que não o torna menos decisivo, pois é a experiência extática que muda radicalmente a condição religiosa da pessoa "eleita".

As experiências extáticas que determinam a vocação do futuro xamã consistem no tradicional esquema de uma cerimônia religiosa: sofrimento, morte, ressurreição. Vista por este ângulo, qualquer "vocação-doença" se ajusta ao papel de uma iniciação, pois o sofrimento que acarreta corresponde às torturas iniciatórias; o isolamento psíquico do "eleito" é a contrapartida do isolamento e da solidão ritual das cerimônias iniciatórias; a iminência da morte experimentada pelo homem doente lembra a morte simbólica representada em quase todas as cerimônias de iniciação.

O conteúdo das primeiras experiências extáticas do xamã siberiano, apesar de comparativamente rico, quase sempre inclui um ou mais dos seguintes temas: desmembramento do corpo, seguido de uma renovação dos órgãos internos e das vísceras; ascensão ao céu e diálogo com os deuses ou espíritos; descida à Região dos Mortos e conversas com os espíritos e as almas dos xamãs mortos; diversas revelações, religiosas e xamânicas (segredos da profissão). Todos temas nitidamente iniciatórios. Em alguns documentos todos estão confirmados; em outros, só um ou dois são mencionados (desmembramento do corpo, ascensão ao céu). É possível que a ausência de determinados temas iniciatórios se deva, pelo menos em parte, a informações inadequadas, já que os primeiros etnólogos em geral se contentavam com dados sumários.

Entre os povos da Sibéria e da Ásia Central, a vocação xamânica freqüentemente se manifesta em forma de doença. Às vezes, não se trata propriamente de doença, mas de uma progressiva mudança de comportamento. O candidato se torna meditabundo, busca a solidão, dorme muito, tem um ar distante, sonhos proféticos e, às vezes, ataques. Todos estes sintomas são apenas o prelúdio da nova vida que aguarda o desprevenido candidato. Acrescente-se que seu comportamento lembra os primeiros sinais de uma vocação mística, que são sempre os mesmos em todas as religiões.

Existem também doenças, ataques, sonhos e alucinações que, em pouco tempo, determinam a carreira de um xamã. Não nos cabe dizer se tais êxtases patogênicos foram, realmente, experimentados ou imaginados, ou se, mais tarde, foram pelo menos enriquecidos de motivos folclóricos, acabando por fazer parte integrante do enquadramento mitológico xamânico tradicional. O que se torna essencial é o fato de que essas experiências justificam a vocação e o poder mágico-religioso de um xamã; que elas são invocadas como a única validação possível para uma mudança radical da prática religiosa.

Por exemplo, um xamã iacuto, Sofron Zateejev, diz que, em geral, o xamã morre e passa três dias na iurta sem comer nem beber. Antigamente, o candidato se submetia três vezes à cerimônia em que era cortado em pedaços. Outro xamã tungue, Ivanov, dá maiores detalhes sobre a cerimônia. Com um gancho de ferro, os membros do candidato são retirados e desarticulados; os ossos, limpos; a carne, raspada: os fluidos do corpo, jogados fora; e os olhos arrancados das órbitas. Depois desta operação, todos os ossos são novamente unidos e presos com ferro. Segundo outro xamã, Timofei Romanov, a cerimônia do desmembramento dura de três a sete dias; durante todo este tempo, o candidato permanece como morto, mal respirando, num lugar solitário.

Diz o iacuto Gavriil Alekseev que todo xamã tem uma Mãe Ave-de-Rapina parecida com um grande pássaro de bico de ferro, garras como ganchos e uma longa cauda. Este pássaro mítico só aparece duas vezes: por ocasião do nascimento espiritual do xamã, e quando ele morre. Toma sua alma, leva-a para a Região dos Mortos; e deixa-a amadurecer num galho de pinheiro. Quando a alma atinge a maturidade, o pássaro volta à terra, retalha o corpo do candidato e distribui os pedaços entre os maus espíritos da doença e da morte. Cada espírito devora a parte do corpo que lhe coube; esse processo confere ao futuro xamã o poder de curar as doenças correspondentes. Depois de devorar o corpo todo, os maus espíritos partem. A Mãe Ave-de-Rapina repõe os ossos nos respectivos lugares e o candidato desperta como que de um profundo sono.



De acordo com o relato de outro iacuto, os maus espíritos levam a alma do futuro xarnã para a Região dos Mortos e lá a trancam numa casa durante três anos (um ano apenas para os que se tomarão Xamãs menos categorizados). Ali o xamã faz a sua iniciação. Os espíritos cortam-lhe a cabeça e a põem de lado (porque o candidado deve ver com os próprios olhos o seu desmembramento), retalham-lhe o corpo em pequenos pedaços, que distribuem pelos espíritos das diversas doenças. Só sob esta condição adquirirá o futuro xamã o poder de curar. Seus ossos são, então, recobertos com carne nova e, em certos casos, o indivíduo recebe também novo sangue.

Segundo outra crença iacuta também coligida por Ksenofontov, os xamãs nascem no Norte. Lá, cresce um abeto gigante, que abriga em seus ramos inúmeros ninhos. Os grandes xamãs ocupam os ramos mais altos, osde categoria mediana, os ramos do meio, e os menos importantes, a parte inferior da árvore. Dizem uns que a Mãe Ave-de-Rapina, que tem cabeça de águia e penas de ferro, pousa na árvore, põe os ovos e os choca; os grandes xamãs, os médios e os pequenos são chocados respectivamente em três, dois e um ano. Quando a alma sai do ovo, a Mãe-Ave confia-a a uma diaba-xamã, com um só olho, um braço e um osso. Esta embala a alma do futuro xamã num berço de ferro e o alimenta com sangue coagulado. Depois, três "demônios" negros vêm cortar-lhe o corpo em pedaços, enfiam-lhe uma lança na cabeça e atiram pedaços de sua carne em várias direções, como oferendas. Três outros "demônios" cortam-lhe a mandíbula, um pedaço para cada doença que ele, mais tarde, será chamado a curar. Se estiver faltando um dos seus ossos, um membro de sua família terá de morrer a fim de repô-lo. Às vezes, até nove parentes seus morrem.

Em todos esses exemplos vemos o tema central de uma cerimônia de iniciação: o desmembramento do corpo de neófito e a renovação dos seus órgãos; o ritual da morte, seguido da ressurreição. Podemos também observar o motivo da ave gigantesca que choca os xamãs nos ramos da árvore do mundo; tem ampla aplicação nas mitologias do norte da Ásia, especialmente na mitologia xamânica.

De acordo com os informantes iuraque-samoiedos de T. Lehtisalo, a iniciação propriamente dita começa com o candidato aprendendo a tocar tambor; é nessa ocasião que ele consegue ver os espíritos. O xamã Ganyakka disse a Lehtisalo que certa vez, quando tocava tambor, os espíritos baixaram e o cortaram em pedaços, decepando-lhe também as mãos. Durante sete dias e sete noites permaneceu inconsciente, estirado no chão. Nesse período, sua alma se encontrava no céu, circulando com o Espírito do Trovão e visitando o deus Mikkulai.

A. A Popov faz o seguinte relato a respeito de um xamã dos avam-samoiedos. Acometido de varíola, permaneceu durante três dias inconsciente e tão à beira da morte que, no terceiro dia, quase o enterraram. Sua iniciação ocorreu nesta época. Lembrava-se de ter sido levado para o meio do oceano. Lá, ouviu sua Doença (isto é, a varíola) dizer-lhe: "Do Senhor da Água receberás o dom de xamanizar. Como xamã teu nome será houttarie [mergulhador]." Em seguida, a Doença agitou as águas do mar. O candidato saiu e escalou uma montanha. Lá, encontrou uma mulher nua e começou a sugar-lhe os seios. A mulher, que provavelmente era a Senhora das Águas, disse-lhe: "Tu és meu filho; por isso é que deixo que sugues meu seio. Encontrarás muitas dificuldades e te sentirás imensamente fatigado." O marido da Senhora das Águas, o Senhor da Região dos Mortos, deu-lhe, então, dois guias, um arminho e um camundongo, para guiá-lo à Região dos Mortos. Ao chegarem a um lugar elevado, os guias lhe mostraram sete tendas com os tetos arrebentados. Entrou na primeira e encontrou os moradores da Região dos Mortos e os homens da Grande Doença (a sífilis). Estes arrancaram-lhe o coração e o jogaram numa panela. Em outras tendas, ele encontrou o Senhor da Loucura e os senhores de todos os distúrbios nervosos, assim como os xamãs perversos. Desse modo, ficou sabendo das diversas doenças que atormentam a humanidade.

Sempre precedido pelos guias, o candidato chegou, então, ao País das Mulheres Xamãs, que lhe fortificaram a garganta e a voz. Foi, em seguida, levado para as praias dos Nove Mares. No meio de um desses mares havia uma ilha, e no meio desta uma bétula ainda nova se erguia para o céu. Era a Árvore do Senhor da Terra. Junto dela cresciam nove ervas, os ancestrais de todas as plantas da terra. A Árvore estava rodeada pelos mares, e em cada um deles nadava uma espécie de ave com suas crias. O candidato visitou todos esses mares; alguns eram salgados, outros tão quentes que ele não conseguia chegar perto da praia. Depois de visitar os mares, o candidato levantou a cabeça e, no topo da árvore, viu homens de diversas nações: samoiedos, russos, dolgans, iacutos e tungues. Ouviu vozes: "Ficou decidido que terás um tambor [isto é, a caixa de um tambor] feito dos ramos desta Árvore." Ele começou a voar junto com as aves marítimas. Ao deixar a praia, o Senhor da Árvore o chamou: "Meu ramo acaba de cair; apanha-o e faze com ele um tambor que te servirá por toda a vida." O ramo tinha três forquilhas, e o Senhor da Árvore ordenou-lhe que fizesse três tambores, que deviam ser guardados por três mulheres, sendo cada tambor destinado a uma cerimônia especial: um para xamanizar as mulheres em trabalho de parto, o segundo para curar os doentes e o terceiro para descobrir os homens que se houvessem perdido na neve.

O Senhor da Árvore deu também ramos a todos os homens que se achavam no alto da árvore. Mas, surgindo no meio da árvore em forma humana até à cintura acrescentou: "Só um ramo não dou aos xamãs, pois o reservo para o resto da humanidade. Com ele, os homens poderão fazer habitações e, assim, usá-lo de acordo com as suas necessidades. Sou a Árvore que dá a vida a todos os homens." Pegando o ramo, o candidato estava pronto para continuar o vôo, quando ouviu novamente uma voz humana, desta vez revelando-lhe as virtudes medicinais das sete plantas e instruindo-o a respeito da arte de xamanizar. Porém - acrescentavam as vozes - ele devia casar-se com três mulheres (o que, aliás, ele fez, mais tarde: casou-se com três meninas órfãs que ele curara da varíola).

Depois disso, chegou a um mar sem fim; lá, encontrou árvores e sete pedras. As pedras lhe falaram, umas após as outras. A primeira tinha dentes como os do urso e uma cavidade em forma de cesta. Disse-lhe que era a pedra que sustentava a terra; com seu peso, fazia pressão sobre os campos para que eles não fossem arrebatados pelo vento. A segunda servia para fundir o ferro. Ele permaneceu com as pedras durante sete dias, aprendendo, assim, como podiam ser úteis aos homens.

Em seguida, seus dois guias, o arminho e o camundongo o levaram a uma montanha alta e arredondada. Parou diante de uma abertura e entrou. Era uma caverna luminosa, no meio da qual havia algo como uma fogueira. Viu duas mulheres nuas, cobertas de pêlo como renas. Percebeu, então, que não havia nenhuma fogueira ardendo; a luz vinha do alto, através de uma abertura. Uma das mulheres lhe disse que estava grávida e que daria à luz duas renas: uma delas seria o animal sacrificial dos dolgans e dos evenkes, e a outra, o dos tavghis. Deu-lhe ainda um pêlo, que lhe seria útil quando xamanizasse pelas renas. A outra mulher também deu à luz duas renas, símbolo dos animais que ajudariam o homem em seus trabalhos e ainda lhes forneceriam alimento. A caverna tinha duas aberturas, uma voltada para o norte, a outra para o sul; através de cada uma delas, as mulheres enviaram uma rena para servir ao povo da floresta (os dolgans e os evenkes). A segunda mulher deu-lhe também um pêlo. Quando xamanizasse, ele, mentalmente, se voltaria para aquela caverna.

O candidato chegou a um deserto e viu, a distância, uma montanha. Após três dias de viagem, alcançou-a, entrou por uma abertura, e viu-se na presença de um homem nu, que trabalhava com um fole. Sobre o fogo, havia um caldeirão "do tamanho da metade da terra". O homem nu o viu e apanhou-o com um par de tenazes. O noviço teve tempo de pensar: "Estou morto!" O homem decepou-lhe a cabeça, picou-o em pedaços e pôs tudo no caldeirão. Ferveu-lhe o corpo durante três anos. Havia também três bigornas, e o homem nu forjou-lhe a cabeça na terceira, que era onde se forjavam os melhores xamãs. Jogou, depois, a cabeça em um dos três recipientes que ali estavam, naquele que continha a água mais fria. Revelou-lhe, então, que quando chamado a curar alguém, é inútil xamanizar se a água do recipiente ritual estiver muito quente, pois o homem já está perdido; se a água estiver apenas quente, ele está doente, mas ficará curado; água gelada é indício de um homem sadio.

Em seguida, o ferreiro pescou seus ossos, que boiavam num rio, reuniu-os e cobriu-os com carne novamente. Contou-os e disse que havia três a mais; por isso o candidato tinha de adquirir três costumes xamânicos. Forjou-lhe a cabeça e ensinou-o a ler as letras que havia dentro dela. Mudou seus olhos, e é por isso que, quando ele xamanizava, não enxergava com os olhos do corpo, mas com aqueles olhos místicos. Perfurou-lhe os ouvidos para que ele pudesse entender a linguagem das plantas. O candidato viu-se, então, no topo de uma montanha, para, finalmente, despertar na iurta, no seio da família. Agora, pode cantar e xamanizar indefinidamente, sem jamais cansar-se (2).



Reproduzimos este relato por causa da sua admirável riqueza mitológica e religiosa. Se o mesmo cuidado tivesse sido observado para recolher as confissões de outros xamãs siberianos, provavelmente nenhum teria ficado reduzido à lacônica fórmula comum: o candidato permaneceu inconsciente durante determinado número de dias, sonhou que os espíritos o estavam cortando em pedaços e carregando-o para o céu, etc. É evidente que o êxtase iniciatório segue de perto certos temas paradigmáticos: o noviço encontra várias figuras divinas (a Senhora das Águas, o Senhor da Região dos Mortos, a Senhora dos Animais) antes de ser levado pelos animais, seus guias, para o centro do mundo, no cume da montanha cósmica, onde estão a árvore do mundo e o Senhor Universal; da árvore cósmica, e pela vontade expressa do próprio Senhor Universal, ele recebe a madeira para confeccionar seu tambor; seres semidemoníacos lhe ensinam a natureza de todas as doenças e as respectívas curas; finalmente, outros seres demoníacos retalham seu corpo, fervem-no e o trocam por órgãos melhores. Cada um desses elémentos do sonho iniciatório é coerente e se enquadra num sistema ritual ou simbólico muito conhecido na história das religiões. Em conjunto, representam uma variante bem concatenada do tema universal da morte e da mística ressurreiçã'o do candidato, por meio da descida à região dos mortos e subida ao céu.

O mesmo sistema de iniciação é encontrado entre outros povos da Sibéria (3). O xamã tungue Ivan Tscholko afirma que um futuro xamã deve cair doente, ter o corpo cortado em pedaços e o sangue bebido pelos maus espíritos (saargi). Estes espíritos - que, na realidade, são as almas de outros xamãs mortos, jogam sua cabeça em um caldeirão, onde ela é forjada junto com diversas peças de metal que, mais tarde, irão compor o seu costume ritual. Outro xamã tungue conta que ficou doente um ano inteiro. Durante este período, cantou, a fim de sentir-se melhor. Seus antepassados xamãs vieram iniciá-Io. Transpassaram-no com flechas até ele perder os sentidos e cair ao chão; cortaram-lhe a carne, arrancaram-lhe os ossos e os contaram; se estivesse faltando um, ele não poderia ser um xamã. Enquanto durou esta operação, ele passou um verão inteiro sem comer nem beber.

Se bem que os buriatas tenham cerimônias públicás muito complexas para consagrar os xamãs, também eles conhecem o "sonho-doença" do tipo iniciatório. Ksenofontov relata a experiência de Michail Stepanov. Diz Stepanov que antes de tomar-se um xamã, o candidato deve ficar doente por um longo período; então, as almas dos seus antepassados xamãs o rodeiam, torturam-no, batem-lhe, cortam-lhe o corpo com facas, etc. Durante esta operação, ele permanece inanimado; o rosto e as mãos ficam azuis, o coração mal consegue bater. Segundo outro xamã buriata, os espíritos ancestrais levam a alma do candidato perante a Assembléia de Saaytani, no céu, onde recebe instrução. Depois da iniciação, a carne do candidato é cozida, para que ele aprenda a arte de xamanizar. É durante essa tortura iniciatória que ele passa sete dias e sete noites como se estivesse morto. Nessa ocasião, seus parentes (com exceção das mulheres) chegam-se a ele e cantam: "Nosso xamã está voltando à vida e nos ajudará!" Enquanto seu corpo estiver sendo retalhado e cozido pelos seus ancestrais, nenhum estranho pode tocá-lo.

As mesmas experiências se observam em outros lugares. Uma mulher teleuta tornou-se xamã depois de ter tido a visão de que homens desconhecidos estavam cortando seu corpo em pedaços e cozinhando-o num recipiente. De acordo com a tradição dos xamãs altaicos, os espíritos dos ancestrais comem sua carne, bebem seu sangue, abrem-lhe o ventre. Diz o baqca Kazak Kirghiz: "Tenho cinco espíritos no céu que me cortam com quarenta facas, me transpassam com quarenta pregos", e assim por diante.

A experiência extática do desmembrarnento do corpo seguida de uma renovação dos órgãos é também conhecida dos esquimós, de algumas tribos da América do Sul e da América do Norte (como por exemplo, os araucânios, os pomo-da-costa, os menominis e outros), em Malekula, entre os papuas do Kiwai e os daiaques de Bornéu (4), e especialmente entre os australianos. Limitar-me-ei a dar alguns exemplos de sonhos extáticos, iniciatórios, dos curandeiros australianos.

Os aruntas conhecem três processos de fazer curandeiros: (1) pelos lruntarinia ou "espíritos"; (2) pelos Eruncha (isto é, os espíritos dos homens Eruncha dos míticos tempos Alchera), (3) por intermédio de outros curandeiros. No primeiro caso, o candidato vai para a entrada de uma caverna e adormece. Vem um Iruntarinia e "arremessa nele uma lança invisível, que lhe penetra no pescoço pela nuca, trespassa-lhe a língua, fazendo nela um grande orifício, e sai pela boca". A língua do candidato fica perfurada; pode-se, facilmente, enfiar o dedo mínimo. Uma segunda lança decepa-lhe a cabeça, e a vítima sucumbe. O Iruntarinia transporta-o para dentro da caverna, que dizem ser muito profunda e onde se acredita que os espíritos dos lruntarinia vivam numa luz perpétua e junto a fontes de água fria. Na caverna, o espírito arranca-lhe os órgãos internos e dá-lhe outros inteiramente novos. O candidado volta à vida, mas durante algum tempo comporta-se como alienado Os espíritos Iruntarinia - invisíveis aos outros seres humanos, exceto aos curandeiros - levam-no, então, para a aldeia dele. A etiqueta proíbe-o de exercer suas funções durante um ano; se, no decorrer desse período, o orifício da língua fechar-se, o candidato desiste, porque se acredita que suas Virtudes mágicas tenham desaparecido. Nesse ano, ele aprende com os outros curandeiros os segredos da profissão, particularmente o uso dos fragmentos de quartzo (atnongara) que os espíritos Iruntarinia colocaram no seu corpo.

O segundo processo de fazer um curandeiro é semelhante ao primeiro, com exceção de que, em vez de levar o candidato para uma caverna, os Eruncha carregam-no para baixo da terra. Finalmente, o último métoodo compreende um longo ritual em local deserto, onde o candidato, em absoluto silêncio, deve submeter-se a uma operação realizada por dois velhos curandeiros. Estes lhe esfregam o corpo com cristais de rocha até arranhar-lhe a pele, comprimem-lhe cristais de rocha no couro cabeludo, fazem um buraco debaixo de uma unha da sua mão direita, e uma incisão na língua (5).

Famoso mágico da tribo Unmatjera contou a Spencer e Gillen que

... quando fizeram dele um curandeiro, um médico muito velho chegou certo dia e arremessou-lhe algumas pedras atnongara com um lança-arpão. Algumas atingtram-lhe o peito, outras atravessaram-lhe a cabeça de uma orelha a outra, matando-o. O velho tirou-lhe, então, as entranhas, intestinos, fígado, coração, pulmões - tudo enfim - e deixou-o a noite inteira deitado no chão. Pela manhã, o velho chegou, olhou para ele, colocou mais algumas pedras atnongara dentro do seu corpo, nos braços e nas pernas, e cobriu-lhe o rosto com folhas. Em seguida, pôs-se a cantar por cima dele até que o corpo ficasse todo inchado. Deu-lhe, então, entranhas completamente novas, colocou mais uma quantidade de pedras atnongara dentro dele, e deu-lhe umas tapinhas na cabeça, o que o fez voltar a vida imediatamente. Ao despertar, não tinha a menor idéia de onde se encontrava e disse: "Acho que estou perdido." Mas, olhando ao seu redor, viu o velho curandeiro de pé ao seu lado. Disse o velho: "Não, não estás perdido. Eu te matei há muito tempo." Ilpailurkna esquecera completamente quem era e toda a sua vida pregressa. Depois de algum tempo, o velho levou-o de volta ao seu acampamento, mostrou-o a ele e disse-lhe que a mulher que ali estava era a sua lubra, pois ele a esquecera por completo. Sua volta daquele jeito e seu comportamento estranho logo mostraram aos outros nativos que ele se tornara um curandeiro.

Entre os warramungas, a iniciação é feita pelos espíritos Puntidir, que equivalem aos Iruntarinia dos aruntas. Um curandeiro disse a Spencer e Gillen que fora perseguido durante dois dias por dois espíritos que se haviam identificado como "seu pai e seu irmão". Na segunda noite, os espíritos chegaram e o mataram. "Enquanto estava caído, morto, eles o abriram e retiraram todas as suas entranhas, dando-lhe, porém, outras novas; fmalmente puseram uma pequena serpente dentro do seu corpo, o que lhe conferiu poderes de curandeiro (7)."

Entre os binbingas, acredita-se que os curandeiros são consagrados pelos espíritos Mundadji e Munkaninji (pai e filho). Um curandeiro contou como, ao entrar certo dia numa caverna, deu com o velho Mundadji, que o agarrou pelo pescoço e o matou.

Mundadji o abriu ao meio, de alto a baixo, tirou-lhe todas as entranhas e trocou-as pelas suas, que colocou no corpo de Kurkutji. Ao mesmo tempo, pôs-lhe no corpo uma quantidade de pedras sagradas. Terminada a operação, o espírito mais novo, Munkaninji, apareceu e restituiu-lhe a vida; disse-lhe que ele agora era um curandeiro, e mostrou-lhe como extrair ossos e livrar os homens de outras formas de magia perniciosa. Levou-o, então, para o céu e depois o trouxe de volta à terra, deixando-o perto do seu acampamento, onde ele ouviu os nativos chorando por ele, pois supunham que ele houvesse morrido. Durante muito tempo permaneceu num estado de relativo atordoamento, mas, pouco a pouco, se recuperou e os nativos ficaram sabendo que ele se tornara um curandeiro.

Na tribo Mara, a técnica é mais ou menos a mesma. Quem quiser ser curandeiro acende uma fogueira e queima gordura, atraindo, assim, os dois espíritos chamados Minnungarra. Estes se aproximam e incentivam o candidato, garantindo-lhe que não o matarão totalmente.

Em primeiro lugar, eles o insensibilizam, e o abrem pelo processo habitual, retiram todos os seus órgãos, que são, então, substituídos pelos de um dos espíritos. Em seguida, ele é novamente revivido e dizem-lhe que é agora um doutor; ensinam-lhe como retirar ossos dos homens e livrá-los de mágicas perniciosas, e é levado para o céu. Por fim, é trazido para a terra e depositado junto ao seu acampamento, onde é encontrado pelos amigos, que choravam por ele ... Dentre os poderes que um curandeiro mara possui está o de ser capaz de subir, durante a noite, por uma corda, invisível a olhos mortais, até ao céu, onde conversa com os seres siderais (9).




Como vimos, a semelhança entre as iniciações dos xamãs siberianos e as dos curandeiros da Austrália é muito grande. Em ambos os casos, o candidato é submetido a uma operação feita por seres sernidivinos ou por ancestrais, operação que consiste no desmembramento do corpo e na renovação dos órgãos internos e dos ossos. Em ambos os casos, essa operação se realiza num "inferno" ou inclui uma descida à Região dos Mortos. Quanto aos fragmentos de quartzo ou outros objetos mágicos que se supõe que os espíritos colocam no corpo do candidato australiano, é uma prática de muito pouca importância para os siberianos. Só de raro em raro encontramos alguma referência a pedaços de ferro postos para derreter no mesmo caldeirão em que estão a carne e os ossos do futuro xamã. Há ainda outra diferença entre as duas áreas: na Sibéria, a maioria dos xamãs é "escolhida" pelos espíritos e pelos deuses, ao passo que, na Austrália, a carreira de curandeiro parece ser o resultado de uma busca voluntária por parte do candidato, assim como de uma "eleição" espontânea feita pelos espíritos e seres divinos.

Acrescentemos ainda que os métodos de iniciação dos mágicos australianos não podem ser restringidos aos tipos citados. Embora o elemento importante de uma iniciação pareça ser o desmembramento do corpo e a substituição dos órgãos internos, existem também outros meios de consagrar um curandeiro, especialmente a experiência extática de uma ascensão ao céu, e a instrução ministrada por seres celestiais. Às vezes, a iniciação inclui o desmembramento do candidato e sua ascensão ao céu. Em outros lugares, a iniciação se realiza no transcurso de uma descida ao submundo. Todos esses tipos de iniciação são também encontrados entre os xamãs da Sibéria e da Ásia Central. Tal paralelismo entre dois grupos de técnicas místicas de povos arcaicos tão distanciados no espaço mostra o lugar que ocupa o xamanismo na história geral das religiões.


Tradução Glória Vaz



Notas


(1) Eliade, M. Le chamllnisme et les techniques archaiques de l'extase, Paris, 1951, pp. 47 ss., citando G. W. Ksenofontov.

(2) Ibid., pp. 50-53, citando A. A. Popov.

(3) Cf. ibid, pp. 55-53.

(4) Cf. ibid, pp. 62-70.

(5) Ibid., pp. 56-57, citando B. Spencer e F.J. Gillen.

(6) Spencer, B. e Gillen, F.J. The northern tribes of Central Australia, Londres, 1904, pp. 480-481.

(7) Ibid., p. 484.


(8) Ibid., pp. 487-488.

(9) Ibid., p. 488.


(Texto extraído do livro de Roger Caillois e G.E. Von Grunebaum, "O Sonho e as Sociedades Humanas" - Ed. Francisco Alves - R. de Janeiro - 1978)

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