Marcelo Romani Peccioli
As drogas seguem encaradas pela sociedade contemporânea como uma das piores pragas disseminadas pelos quatro cantos do globo. Todas as sociedades, em suas devidas épocas, fabricam os seus marginais, seus delinquentes, seus inimigos. Enfim, elas expelem os seus elementos anormais. Hoje em dia vemos os terroristas fundamentalistas explodindo-se por Alá, observamos os chamados “perdedores radicais”, cheios de ódio e ressentimento, disparando contra tudo e contra todos em escolas ou espaços públicos. E temos também a figura do narcoterrorista, inimigo público, disseminador de venenos para milhares de almas sedentas por algum tipo de conforto ou euforia dentro das tensões e promessas falaciosas deste admirável mundo novo!
Almas sedentas que também chamam para si os mais diversos dispositivos de controle: sanitário, policial etc. Carregam o estigma de serem os responsáveis por financiarem a guerra do tráfico; são responsabilizados pela marginalização das camadas mais pobres que enxergam na venda das drogas ilícitas uma solução para saírem de suas condições miseráveis, para também terem acesso às maravilhas apresentadas pela publicidade, um dos principais veículos de formação cultural de nossos tempos. Drogado, espécie de delinquente doente, vítima de seu próprio vício. Há poucos anos, a sociedade brasileira aplaudiu um novo tipo de herói que surgia no cinema, o Capitão Nascimento, sendo que uma maioria apoiou a cena em que o policial invade o morro em uma missão surpresa, e após os seus comandados abaterem dois traficantes, reúne o grupo que fumava um baseado e questiona todos sobre quem carregava as drogas. Um dos jovens se esquiva, dizendo-se ser apenas um estudante. Então o capitão Nascimento puxa o jovem pelos cabelos e questiona quem matou aqueles homens. Assustado, o jovem diz não ter visto, enquanto o Capitão, às tapas e berros, afirma que ele sabia quem os matara. Então o estudante diz que foram os policiais. Aos gritos e com mais bofetadas, o capitão Nascimento diz que não, que quem os matou fora o próprio estudante, pois ele financiava o tráfico. Eles tinham que subir o morro para desfazer a “merda que os maconheiros faziam”. Não me interessa discutir se o filme é fascista, realista, policial etc. Só gostaria de destacar essa cena para iniciar esse artigo porque esta alimenta exatamente o tipo de pensamento predominante da sociedade brasileira. Pensamento que se mostra no mínimo preguiçoso, porque se analisarmos, o consumo de drogas precede as universidades, a policia, as favelas e o Estado. Sem querer cair em atavismos, apenas chamo a atenção para o fato de que se tratam de experiências milenares, de cunhos festivos, místicos, religiosos, científicos, artísticos etc.
O pensamento apresentado por essa cena do filme reforça os argumentos da proibição, que para maioria já é algo normal. Dessa forma, esconde-se debaixo da poeira da história uma série de lutas, tensões sociais e conflitos gerados durante séculos. O sequestro da vontade e da saúde dos indivíduos não se deu de maneira pacífica e tampouco rápida. Tratou-se de um processo gradativo, acompanhado da criação de diversos saberes que se voltaram sobre o corpo. Oras, a experimentação com as drogas é uma experimentação do corpo. Trata-se do Estado contra os corpos. Arenas de combate.
A retomada do corpo no debate filosófico se deu principalmente através de filósofos como Espinosa e Nietzsche, através da releitura que Foucault e Deleuze fizeram de suas obras nos anos 60. Ademais, a maioria das correntes filosóficas estava imbuída em debates teológicos, racionais e universalistas, produzindo valores morais. Deleuze utiliza Espinosa para fazer uma clara distinção entre a Ética e a Moral; Espinosa combatia as demais correntes filosóficas por apresentarem valores metafísicos que se orientam contra a vida. Trata-se de uma relação de mando e obediência que jamais traz algum conhecimento, valores coercitivos e transcendentes que determinam a oposição dos valores de bem e mal. Para Espinosa, segundo Deleuze, o que existe são maneiras de ser dentre as quais cada uma corresponde a um grau de potência singular. Não se trata de avaliar um ser de acordo com a sua essência, mas com o que ele pode, de acordo com a sua potência. Para o pensador francês, uma etologia – estudos que definem os corpos, os animais ou homens pelos afetos de que são capazes. O que só é possível de descobrir através das experimentações. Vidas pautadas em uma Ética, com valores facultativos, nos quais os corpos têm encontros, que podem ser bons ou maus. Alegre seria o homem capaz de repetir e prolongar os bons encontros, enquanto triste seria aquele que não consegue se desvencilhar ou evitar a profusão de maus encontros.
Entretanto, não foram os pensamentos de Espinosa que prevaleceram na formação da cultura ocidental. Como destaca Nietzsche, o homem moderno aprisionado no Estado para fins de domesticação, é formador de uma má-consciência que o faz sentir-se culpado até ser impossível a expiação. Cria-se o homem moderno, que de acordo o filósofo alemão, é um homem manso e medíocre, doentio e exausto. Moralizado e amolecido, envergonhado de seus próprios instintos e sem sabor a vida. Homem fraco e temoroso. Completamente asséptico, é dotado de uma grande náusea que enfraquece a sua potência, levando-o a vontade de nada. Eis o último homem e seu grande conformismo.
Obviamente, acompanhando este embasamento filosófico houveram diversos dispositivos instituídos durante a emergência da “sociedade disciplinar” e da “biopolítica” descritas por Michel Foucault, visando a uma apropriação exaustiva dos corpos, que lhes retirasse o máximo de produção e os tornassem dóceis e normalizados. Logo nasceriam instâncias de controle e de saber sobre as pessoas que não se adequassem ao sistema vigente, consideradas como “anormais”. Considerando o que Michel Foucault chama de genealogia, ou seja, o acoplamento dos conhecimentos eruditos e das memórias locais, permitindo-se assim a constituição de um saber histórico das lutas e a utilização desse saber nas táticas atuais, e que legitima um poder que tem a incumbência de defender uma sociedade recheada de clivagens, então se destaca que o poder se organiza para se defender da revolta dos outros, defendendo a sua vitória e perenizando a sujeição daqueles que não se adequam. Ainda para este pensador, o sistema do direito e campo judiciário são o veículo permanente de relações de dominação. Para ele, é preciso que o direito seja examinado sob o aspecto dos procedimentos de sujeição que ele põe em prática.
Em pleno desenvolvimento da sociedade industrial, no século XIX, século no qual se destaca um grande avanço da indústria farmacológica que passou a lançar no mercado e disseminar na cultura urbana as mais variadas drogas sintetizadas em laboratórios, oriundas de plantas como a papoula ou a coca, utilizadas tanto para acalmar ou estimular os ânimos daqueles que viviam nessa nova fase industrializada da história. Filhos de operários que tomavam ópio para dormir enquanto seus país trabalhavam, operários que utilizavam cocaína para apresentar uma maior produtividade etc.
Mas eis que juntamente a esse difusão das drogas na cultura urbana, inicia-se uma cruzada farmacológica pelo mundo, capitaneada pelos E.U.A, potência de origem puritana, em franca expansão comercial e que dentro de suas fronteiras costumava ligar o comportamento desviantes dos imigrantes que não fossem de origem puritana ao uso de certas drogas. Obviamente, os burgueses de outros países também se interessaram pelos mecanismos de controle sobre os drogados que permitem um lucro econômico e utilidade política, sendo aos poucos incorporada por todos os Estados como forma de controle sobre a sociedade civil, frente ao grande número de aparatos e dispositivos criados a partir desse problema, formando-se também uma pirâmide altamente lucrativa, desde o traficante de pequenas bocas até psiquiatras, legisladores e o alto magistrado. Ao moralismo do discurso proibicionista foram-se incorporando certa fundamentação jurídica que alcançou o seu ápice em 1971, ano em que foi firmado o Convênio Internacional sobre Substâncias Psicotrópicas. De acordo com o pesquisador Antonio Escohotado, inaugurava-se uma nova forma de vigilância do Estado sobre os estados de consciência dos indivíduos, assumindo para si e por direito próprio essa supervisão em geral, sendo o uso de drogas uma exceção à regra que defende a autonomia e a vontade individual.
Talvez, voltando ao início de minha exposição, o famoso Capitão Nascimento não seja nada mais que uma peça a frente de um exercito de Brancaleone, enfrentando outro exército composto por àqueles cujo acesso às cartas do admirável mundo novo não está facilmente acessível. Guerra mantida pelo Estado e o seu discurso proibicionista, fazendo inúmeras baixas de ambos os lados, mutilações, deficiências provisórias ou permanentes, prisões arbitrárias, escutas ilegais, invasões domiciliares etc., sendo a sociedade civil observadora quase que passiva deste espetáculo cruel, pois por hora ou outra, pede mais controle, mais fiscalização e maiores punições a vendedores ou consumidores. O homem é uma ponte a ser superada…
Entretanto, se é sobre os corpos que recaem diversos tipos de controle e de saber para sujeição, também será a partir dos corpos que se manifestarão resistências, experimentos éticos e estéticos que se esquivam dos códigos gerados pelo poder vigente. Cuidados e práticas voltadas para uma relação de prazer consigo. Tudo em uma sociedade tende a escapar, a se deslocar em direção as bordas. Acompanhar esses deslocamentos, para Deleuze, é uma micropolítica. Linhas de fuga que escapam da concentricidade do Estado. Essas linhas de fuga não tem necessariamente uma valoração positiva, podem se constituir como linhas de abolição ou de morte. Então se pergunta, por que as drogas como experimento estético, como linhas de fuga? Perigos inerentes como o buraco negro da dependência, da loucura, da overdose. O uso fascista das drogas através de guerras e meios de controle autoritários. Mas há alguma possibilidade de entrar em contato com o plano de imanência, de construir para si um Corpo sem Orgãos? De liberações conquistadas de tal forma que depois se prescinda de qualquer droga? Um mergulho nos mistérios do inconsciente? Eis então uma possibilidade do corpo como obra. Arena para experimentações. Como exemplo de criação estética para si a partir destas substâncias, serão escolhidas as vidas e as obras de dois grandes escritores que marcaram a literatura das drogas do século anterior e influenciaram diversos movimentos a partir dos registros de seus experimentos com essas substâncias: O escritor inglês Aldous Huxley e o estadunidense William Burroughs.
“As portas da Percepção”, livro lançado em 1954 no qual Huxley narra a sua experiência com a mescalina teve grande reverberação pública, influenciando muitos, desde escritores e roqueiros até Timothy Leary e o posterior movimento psicodélico que explodiu nos anos 60. Não foram poucos os seus críticos, que até mesmo quiseram responsabilizar Huxley pela grande disseminação dessas substâncias a partir dos anos 60, até mesmo atribuindo-lhe a pecha de drogado. O próprio criador do LSD-25, o químico suíço Albert Hoffman sai em defesa do escritor, dizendo que tais críticas não tinham nenhum fundamento, eram feitas por pessoas que conheciam de modo supérfluo os seus escritos. Huxley era um profundo pesquisador do comportamento humano, sempre se interessando pelas drogas e os seus efeitos. Se por um lado, defendia o uso de psicodélicos para uma verdadeira revolução interna, por outro lado, nunca deixou de prevenir enfaticamente quanto aos perigos inerentes ao abuso do álcool e outras drogas, como a cocaína e a heroína, descrevendo as suas danosas consequências para o corpo e para a mente. Preocupava-lhe ainda o uso das drogas como ferramentas para o controle social e servir a interesses políticos de dominação e obediência, fato que demonstra através da droga “soma” em seu livro “Admirável Mundo Novo” (1932). Não agradava Huxley a difusão de tranquilizantes na sociedade, pois temia que se disseminassem drogas que poderiam deixar pessoas sentindo-se felizes quando normalmente se encontrariam em outro estado emocional.
O fato é que, para Huxley, o ser humano teria um impulso dentro de si, nas mais variadas culturas de distintas épocas para aquilo que chama de “autotranscedência”, como forma de superar a personalidade autoconsciente, de ultrapassar o Eu conhecido e suado, a prisão da personalidade. Por isso que para ele, desde os primórdios da humanidade, sempre se destacou o emprego de substâncias químicas capazes de produzir alterações na consciência. Encontrando em drogas psicodélicas como a mescalina, o LSD e a psilocibina portais interessantes e menos danosos para atravessar essa muralha, Huxley acreditava que através delas poderiam ser ajudadas muitas pessoas que, em sua busca sem fim pela autotranscedência, acabavam recorrendo a tantas outras drogas piores, cometendo diversos crimes e se envolvendo em muitos acidentes que poderiam então ser evitados. Experiência psicodélica, para Huxley, uma experiência visionária e mística.
Alterações nas coordenadas de espaço-tempo, micro percepções do mundo que nos cerca, uma despersonalização que possibilita a ruptura da ideia de sujeito. A possibilidade de quebra da suposta unidade de significado e significante, em que se manifesta a impossibilidade do símbolo converter-se naquilo que representa. Todas essas codificações citadas são para Deleuze os estratos – a serem quebrados –, que nos remetem ao plano de organização, ao organismo e ao juízo de Deus. A autotranscedência libera um retorno à curiosidade infantil, para que então se possa criar. Nietzsche acreditava que construir e destruir faz parte da natureza infantil, por isso as crianças estão além do bem e do mal.
Huxley viveu mais dez anos após a sua experiência com a mescalina. Nesse período, por outras vezes experimentou essa droga e outras substâncias alucinógenas, como o LSD e a psilocibina. Participou de variados congressos e conferências com especialistas a respeito do tema, sendo ele um homem das letras, e tentou sintetizar todas as suas ideias sobre modernidade, industrialismo e a autotranscedência em seu último livro, “A Ilha (1962)”. Vítima de um câncer agressivo, em seus últimos momentos, Huxley pediu a sua segunda mulher, Laura Huxley, que lhe ministrasse duas doses de cem miligramas de LSD intramuscular. Preferiu deixar a vida com a sua consciência expandida e alterada, sem anestésicos que lhe entorpecessem a mente no momento da morte. Não queria abdicar de sua “atenção”, para o “aqui e agora”, ideia que sempre recomendava aos outros e que destacou bastante em sua última obra.
Uma linha de fuga bem diferente foi tecida pelo escritor estadunidense William Burroughs. Tratou-se de um experimento que mais parece um estilhaçar de si, tangenciando sempre o próprio limite, a própria ruína. Nascido em uma família abastada, Burroughs rejeita a segurança de um futuro promissor dentro do status quo do american way of life, de qualquer carreira profissional sequencial a sua formação acadêmica, para emergir durante anos dentro de seu próprio abismo, convivendo entre traficantes e viciados, peles purulentas e rostos macilentos de quem se vicia na heroína. Estagnação dos modos, risco que sempre cerca os drogados, e que obriga Burroughs a escrever sua saída, sua fuga, em uma produção delirante. A riqueza trágica de seu percurso foi escancarada em sua obra.
Um dos orientadores da Geração Beat, Burroughs fora um viciado em heroína praticamente desde as suas primeiras experimentações até os últimos dias de sua vida, que durou 83 anos, apesar de todos os seus abusos. Entre as suas tristes histórias, o acidente com arma de fogo que matou Joan Vollmer, então sua mulher, assim como a morte de seu jovem filho, vítima de uma cirrose, que seguia os mesmos passos de escritor maldito do pai, mas o culpando por todas as mazelas de sua vida. O que Burroughs Junior viveu como drama, Burroughs pai viveu como tragédia.
Malgrado o vício e todas as suas turbulências pessoais, William Burroughs é dono de uma vasta produção literária revolucionária, sendo considerado por Norman Mailer como o último escritor estadunidense tomado pela genialidade. Ao longo de sua obra se observa uma análise demolidora dos dualismos básicos de nossa cultura, de nossa tendência em pensar em termos de oposições binárias, como mente-corpo, homem-mulher, certo-errado, natureza-cultura, realidade-ficção, eu-outro. Suas narrativas grotescas e escatológicas se colocam como aquilo que Deleuze entende por modo máquina de guerra de produzir literatura. Juntamente com seu amigo e escritor, Brion Gysin, desenvolve um método de escrita hipertextual onde questiona radicalmente o conceito de autoria. Na relação dialógica eu-tu, o sujeito descentraliza-se, sendo substituído por vozes sociais e históricas, oriundas de diversos textos que se instauram no interior de cada um. O efeito obtido é uma descontinuidade, tornando-se o texto uma zona de turbulência. A técnica, de inspiração cubista e dadaísta, consistia em cortar tiras de textos com fontes variadas para, em sequência, justapô-las com textos de sua autoria, reescrevendo o resultado. Burroughs acredita no método cut-up como uma forma de embaralhar e anular as sequências de associação produzidas pela mídia de massa. Uma vez que, para ele, esse tipo de controle assegura-se estabelecendo sequências de associação, o método possibilita que se quebrem estes laços, ao cortar estas sequências. Por trás de seus encontros com as mais diversas experiências com drogas, percebe-se o seu grande tédio frente ao crescente espírito consumista fútil e conformado, assim como a sua constante preocupação com os dispositivos de controle. Para Burroughs, o corpo é uma presa biológica disputada ferozmente pelos detentores de poder.
Seus três primeiros livros, Junky (1953), Queer (publicado somente em 1985) e Cartas do Yagé (Publicado em 1963) são praticamente compostos por cartas que trocava com o poeta Allen Ginsberg, no qual descreve o seu cotidiano como viciado, seus meios para conseguir a junkie (heroína), e os dispositivos de controle com os quais constantemente tinha que lidar. Note-se que o inaugurador dessa forma literária que descreve os experimentos com a droga, Thomas de Quincey, escritor de “Confissões de um comedor de ópio” (1822) não possuía nenhuma dificuldade para adquirir a droga em alguma farmácia, sendo considerado pelos seus pares no máximo como um elemento excêntrico. Já no século seguinte, esgueirando-se pelos cantos para conseguir a mesma substância, entretanto com muito mais impurezas, encontra-se Burroughs, tido como um marginal. Isso nos evidencia que quem fábrica o marginal é de fato a proibição, não as drogas.
A grande obra de Burroughs, “Almoço Nu” (1959), começou após o incidente em que ele matou Joan Vollmer e marcou profundamente o escritor. Experiência que desapossa o sujeito de si e do mundo que pensa dominar. Ele vê na escrita a única possibilidade de escrever a própria saída. Redigido com muitas dificuldades durante nove anos turbulentos de viagens por quatro diferentes continentes, o escritor descreve, de modo não-linear, um redemoinho de imagens e situações. Já não se preocupa mais em descrever o seu cotidiano como um sujeito viciado, mas sim em verter para fora os próprios devaneios gerados por muitas doses de diferentes drogas, em diferentes espaços. A dissolução do sujeito e a liberação de multiplicidades permitem a Burroughs criar o seu Corpo sem Órgãos. Burroughs leva ao limite a ideia de que não há literatura experimental sem vida experimental, lançando-se as próprias glórias e a própria destruição.
Apesar de toda a sua experiência e de seu vício, Burroughs não era um entusiasta das drogas que usava como Huxley fora dos psicodélicos. Discorria friamente sobre o vício, apenas descrevendo a necessidade de alimentar as células-junkies. Não se interessa em descrever problemas familiares de infância ou quaisquer outros traumas para justificar a sua escolha pela droga, respostas que tanto excitam os mais diversos psicanalistas que desejam ver o uso da droga como relacionado a uma causalidade edipiana. Burroughs construía o seu Corpo sem Órgãos e escolhia o que circular por ali, para arrebentar os estratos e talvez conquistar o inconsciente. Para Deleuze e Guattari, citando Burroughs, a construção de um Corpo sem Órgãos drogado que se abre para o frio, intensidades geladas. O Eterno Retorno Nietzschiano que diz respeito a querer eternamente algo, e querer de modo tal que se está de acordo consigo mesmo, sem culpa. Não existe valoração nesse querer. Uma vontade tão intensa que requer uma infinidade; senão que se busque outra coisa. A construção de uma prática de vida, experimentada com referência a valores éticos, diferentemente de uma vida codificada pelos valores morais vigentes em cada época. “Um junky não quer estar quentinho, quer ficar freio – bem frio – GELADO. Mas seu desejo pelo Frio é como seu desejo pela Junk – não o que DO LADO DE FORA, onde não lhe adianta nada, mas DO LADO DE DENTRO (…). assim, é a vida na Velha Casa de Gelo, por que ficar andando por aí, perdendo TEMPO?” (Burroughs em Almoço Nu, 2005, p. 254).
Uma morte pessoal que acontece e se efetua no mais duro presente, que tem como extremo horizonte a liberdade de morrer e o poder de se arriscar mortalmente. Eis a morte pessoal pela qual, de modo singular, William Burroughs arriscou-se durante a vida. Deleuze lança a pergunta sobre o porquê de não se bastar com a saúde, porque a fissura se torna desejável. Talvez, de acordo com ele, seja exatamente pelo fato de pensarmos por ela e sobre as suas bordas, sendo que tudo que foi grandioso na humanidade entra e sai por ela, em pessoas que, como Nietzsche, Artaud, Rimbaud, Verlaine, Kerouac, o próprio Burroughs e outros, estão prontas para destruírem a si mesmas. De acordo com Nietzsche, a grande Saúde em nada se relaciona com o ser saudável, pois se trata de não excluir nem mesmo a doença do campo da experimentação; “o excesso que dá ao espírito livre o perigoso privilégio de poder viver por experiência e oferecer-se à aventura: o privilégio de mestre do espírito livre”. (Nietzsche em Humano, demasiado Humano, 2005, p.10).
Talvez para Huxley, trata-se do impulso de autotranscedência, e que no caso de Burroughs, dir-se-ia que se trata de um místico em potencial desviando o seu impulso de autotranscender-se para a própria ruína através de drogas muito mais danosas. Entretanto, para o escritor estadunidense, a junky era a sua escolha de droga como agenciamento. Não teve entusiasmo pelos psicodélicos e tampouco se preocupou com a prudência em sua experiência com as drogas durante sua vida.
Aldous Huxley e William Burroughs. Duas linhas de fuga singulares, que se encaixam no que Foucault chama de Ética do cuidado de si como prática de liberdade. Uma possibilidade de liberação. Experimentar-se exige um ato de coragem e liberações. Trata-se de uma experiência singular. Não existem garantias, pode-se encontrar a morte, pode-se deparar com imensos abismos. Mas cada corpo é um corpo, cada composição, uma composição, por isso os experimentos são inimitáveis. Destaca-se o perigo que as linhas de fuga com drogas sempre tangenciarão.
O uso das drogas não cessa, sendo essas substâncias utilizadas por todas as classes sociais. O crack tem se alastrado pelo país como verdadeira praga, atingindo praticamente todos os estados. Antigamente restrita as camadas mais pobres, hoje o crack já alcançou pessoas com maior poder aquisitivo. No caminho inverso, drogas sintéticas como o LSD e o ecstasy, anteriormente restritas aos caros círculos comerciais de festas raves, podem ser compradas em favelas e periferias, vendidas juntamente com as outras drogas. A utilização de ayahuasca, permitida em rituais religiosos, tem atraído um número cada vez maior de usuários.
A proibição mantém um estado de guerra permanente, e os dois exércitos em questão – policiais e traficantes – seguem com suas baixas e fazendo vítimas dentro da sociedade civil, que em sua grande maioria clama por mais austeridade, reforçando ideais de um Estado policial. A experiência histórica da Lei Seca nos Estados Unidos, citada nessa dissertação, nos mostra os desastres gerados pela política proibicionista. Na atualidade, destacam-se inumeráveis perdas e danos oriundos dessa guerra. Entretanto, o Estado não abre mão da proibição das drogas, pois assim pode aprimorar e desenvolver novos dispositivos de controle sobre a população. A manutenção dessa política agrada também a pirâmide do tráfico, desde a sua base até o topo, visto que a proibição oferece oportunidades altamente lucrativas para a comercialização ilegal das drogas. Ambos exércitos possuem as leis proibicionistas como alicerce.
Dentro desse cenário, pessoas seguem construindo seus paraísos artificiais, buscando a própria autotranscendência ou o próprio desmoronamento, malgrado as leis proibicionistas e vigilância policial. Apesar do sequestro da vontade dos indivíduos pelo Estado, sempre haverá uma minoria indomesticável que, como os dois escritores trabalhados, não se sujeitará a essa intervenção no corpo e através de uma Ética, experimentarão um percurso singular e próprio.
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