Antes de mais nada, é preciso deixar claro que não lidamos aqui com problemas matemáticos, para os quais existe uma resposta insofismavelmente certa. Como ocorre com a maioria das questões sociológicas, a adequação da resposta depende de uma definição prévia dos objetivos. Assim, se estabelecemos como meta criar uma sociedade livre de drogas, a proibição se impõe como uma necessidade. Se o propósito é preservar ao máximo as liberdades individuais, aí a proscrição se torna uma abjeta usurpação de direitos. O passo inicial para um debate produtivo, portanto, seria fixar alvos realistas e factíveis. É aqui que conservadores e liberais começam a desentender-se. Para os primeiros, a ênfase deve recair sobre a pureza do tecido social, sem espaço para ambiguidades. Para os últimos, a prioridade são as prerrogativas do indivíduo, e os limites para a legítima regulação são dados pelo risco de dano à coletividade. Antes de continuar, vale aqui um alerta. Também eu sou prisioneiro de minhas convicções e intuições morais, de modo que não consigo romper inteiramente as amarras ditadas pela minha visão de mundo liberal. Prometo, porém, que vou expor da forma mais honesta que posso os argumentos dos quais discordo.
Assim, já dando a primeira bordoada nos conservadores, creio que a linha proibicionista, que vem vigorando mais ou menos desde os anos 10 do século passado, peca por irrealismo. Convenhamos que o balanço da guerra às drogas não é muito animador. Várias décadas de repressão direta e indireta ao narcotráfico não fizeram mais do que assegurar a estabilidade do consumo de produtos ilícitos. Outras contas apontam ligeira redução ou pequeno aumento da população de usuários.
A grande verdade é que não existe solução para o problema da dependência química. O mundo não é um paraíso idílico; ao contrário, é um lugar cheio de perigos, que incluem várias centenas de substâncias psicoativas pelas quais nossos cérebros têm uma fraqueza muitas vezes fatal. Não está no poder de nenhuma lei modificar essa realidade bioquímica. Pelo menos com o atual nível de tecnologia médica, só o que a sociedade pode fazer é tentar modular as repercussões desse indesejável pendor humano.
E o meu receio é o de que o paradigma proibicionista mais acrescenta do que subtrai dificuldades. A principal delas é que se trata de um contrassenso econômico. Investimos alguns bilhões de dólares por ano na repressão, cujo principal efeito é elevar o preço da droga, ampliando as margens de lucro e, assim, o poder dos traficantes de aliciar autoridades e corromper o Estado. Na América Central, os cartéis de drogas já ameaçam a estabilidade política das democracias locais. Como se não bastasse, na outra ponta ainda gastamos mais alguns bilhões em tratamento médico para os dependentes (aí também incluídos os usuários crônicos de tabaco e álcool).
O pressuposto é o de que, sem a proibição e a repressão, a prevalência do uso de drogas ilícitas seria significativamente maior. É difícil discordar --e este é o argumento forte dos conservadores. A oferta mais livre de substâncias viciantes tende a aumentar o número de pessoas que as experimentam e, por conseguinte, a fração dos que desenvolvem dependência química. O tamanho preciso dessa encrenca, entretanto, permanece uma incógnita. Como nenhum país experimentou ainda a legalização, ninguém tem a menor ideia de quanto a prevalência aumentaria.
Há aqui duas "escolas" de pensamento. Para os que tendem a reforçar o aspecto bioquímico do fenômeno, não há limite para o vício. Se submetermos uma dada população de ratos a um regime de ingestão forçada de cocaína ou álcool, teremos, ao cabo de poucas semanas de uso contínuo, 100% de dependentes, que experimentarão tolerância, "craving", síndrome de abstinência na retirada e demais sintomas clássicos.
Só que nem o mais entusiasta proponente da legalização está sugerindo adicionar LSD aos reservatórios de água. Há uma grande diferença entre permitir e obrigar. E, ao longo de centenas de milhares de anos, ocorreram inúmeros experimentos naturais de exposição de humanos a drogas. Até onde se sabe, por mais abundante que fosse a oferta, foi sempre uma minoria da população a que teve problemas mais sérios de dependência. Há quem sustente que, em condições "naturais" (isto é, sem um cientista para atochar cachaça e pó nas pobres cobaias), o vício resulta de uma interação entre as propriedades bioquímicas das substâncias e a personalidade do indivíduo que as utiliza. Nesse caso, a legalização não implicaria necessariamente uma explosão apocalíptica no número de viciados. As pessoas com propensão mais acentuada para a dependência já "militam", seja no mercado legal, como alcoólatras, seja no ilegal, ou mesmo misturando um pouco de tudo. O incentivo ao consumo proporcionado pela legalização atingiria mais a população não tão afeita à dependência.
Há aqui um "caveat". A exemplo do que ocorreu com o álcool quando descobrimos o processo de destilação no século 12, inovações químicas têm tornado as drogas ilícitas bem mais poderosas do que eram no passado. Assim como o alcoolismo se tornou um problema mais grave com o advento do uísque, da vodca, da cachaça e de todas as bebidas destiladas, as novas variedades de maconha e as drogas sintéticas podem estar driblando os mecanismos naturais de defesa que o cérebro tem contra o vício. Embora nós não os conheçamos bem, eles existem. Acho que estamos há algumas décadas focando o elemento errado. A pergunta-chave não é por que as pessoas se viciam, mas sim por que a maioria dos humanos não sucumbe às drogas. Mesmo a mais prevalente delas, o tabaco, nunca escravizou muito mais do que um terço da população adulta de um país.
E é o próprio tabaco que nos ensina que é possível obter avanços sem recorrer à polícia. Em 1989, 32% dos brasileiros com 15 anos ou mais eram fumantes. Em 2008, a prevalência havia caído para 17,2%. O país já contava então com mais ex-fumantes do que fumantes. Não é impossível que níveis semelhantes de pressão social e boa informação científica produzam resultados parecidos para outras drogas.
É claro que, para uma estratégia de legalização parar em pé, ela precisa observar certas precondições da racionalidade econômica que nem sempre são colocadas abertamente. Em primeiro lugar, é preciso que seja uma política ampla, que abranja todas as drogas e não apenas as preferidas pelos filhos da classe média influente. O "statu quo" não muda se liberarmos a maconha, mas mantivermos a cocaína e a heroína proibidas. Os traficantes continuariam operando e obtendo lucros astronômicos, com os quais se infiltram nas estruturas do Estado e geram violência.
É necessário ainda que as substâncias sejam efetivamente legalizadas e não apenas toleradas. Isso implica a criação de empresas que explorem a atividade, a abertura de pontos de venda e o recolhimento de tributos. Eu, de minha parte, fundaria a Narcobrás. Aqui, as ineficiências típicas do setor estatal se transformariam em virtude pública.
Ao contrário do que afirmou o editorial da Folha, não acho que só se possa avançar se houver apoio internacional. Em princípio, não haveria problema nenhum se o Brasil abraçasse o paradigma da legalização sozinho (é só um exemplo; não há a menor chance de sermos os primeiros a fazê-lo). Precisaria apenas tomar o cuidado de não tentar conquistar novos mercados no exterior e de retirar-se dos tratados proibicionistas que já assinou. É claro que ouviríamos alguns protestos, mas eles seriam "para constar". É pouco provável que os EUA ou qualquer outro país ficasse tão incomodado com a medida que decidisse nos declarar guerra ou deixasse de comprar nossos produtos.
Também discordo do editorial quando sugere que se comece permitindo o consumo (e, por extensão, a produção) no contexto de rituais religiosos. Podem chamar-me de antiquado, mas sou daqueles que ainda acredita no ideal republicano, segundo o qual crenças exóticas não bastam para produzir direitos especiais. Ou bem as regras do direito penal valem para todos, ou para ninguém. No mais, como já demonstrei em outra ocasião, não me custaria mais do que umas poucas centenas de reais para registrar em cartório uma igreja que preveja em seus estatutos o uso ritual de todas as substâncias psicoativas conhecidas ou por criar. Tudo o que não precisamos é transformar a já complicada discussão sobre legalização de drogas num debate teológico.
Evidentemente, nenhuma dessas ponderações é sólida o bastante para basearmos uma política nacional para as drogas, mas elas são suficientes para pelo menos questionarmos o automatismo das posições proibicionistas. Eu mesmo tenho dúvida em relação a vários pontos: será que não é melhor seguir fingindo que vivemos num mundo bacaninha e que as leis que escrevemos nos protegem do mal que ronda lá fora? Se concluirmos pela legalização, devemos proceder de uma vez ou de modo gradualista, a fim de não criar nenhuma situação irreversível? Que sinais de alerta consideraríamos necessários para eventualmente rever a estratégia? Qual carga de impostos devemos estabelecer sobre esses produtos? Vamos tolerar a publicidade? Já imagino um monte de belas moças esbeltas de biquíni cheirando oblongas carreiras no horário nobre da TV.
Brincadeiras à parte, o que me faz pender definitivamente para o lado da legalização não são as considerações epidemiológicas, mas a convicção filosófica de que existem limites para a interferência do Estado sobre o cidadão. Eu pelo menos jamais tomaria parte num contrato social no qual precise abrir mão de decidir o que posso ou não ingerir. Esse é um direito que, acredito, está no mesmo pacote do da liberdade de ir e vir e de dizer o que pensa. É claro que defender essa posição pode ter um custo em termos de saúde pública. E o diabo é que não sabemos qual é.
Hélio Schwartsman, 44 anos, é articulista da Folha. Bacharel em filosofia, publicou "Aquilae Titicans - O Segredo de Avicena - Uma Aventura no Afeganistão" em 2001. Escreve para a Folha.com.
- E-mail: helio@uol.com.br
Nenhum comentário:
Postar um comentário