1 - Bem antes de Gibson, Fellini planejou filme sobre América pré-colombiana
Por: RICARDO FELTRIN
Editor-chefe da Folha Online
Mais de vinte anos antes de Mel Gibson colocar na tela sua versão sobre o declínio dos maias, o cineasta Federico Fellini (1920-1993) planejou o roteiro de um filme sobre uma misteriosa linhagem de feiticeiros pré-colombianos que viveram no México antigo. Uma história bem mais interessante que a de "Apocalypto".
Fellini idealizou um filme baseado nos relatos do escritor e antropólogo Carlos Castaneda (1935?-1998), autor entre outros do best-seller "The Teachings of Don Juan", que no Brasil ganhou o sensacionalista título "A Erva do Diabo".
O cineasta italiano era um leitor voraz da obra de Castaneda, que foi um ícone da geração paz, amor & drogas dos anos 70. Esse escritor manteve a segunda metade de sua vida muito reservada. No final dela, praticamente desapareceu da sociedade. Isso gerou e ainda gera um sem-número de boatos e invenções a respeito de tudo --de sua saúde mental à acusação de fomento ao uso de drogas.
Desde 1970, por 15 anos, Fellini tentou encontrar Castaneda.
Essa reunião só ocorreu em 1985, em Roma, e, tão rápido como veio, Castaneda voltou a desaparecer, deixando para trás um cineasta assustado e atônito
--como o próprio relatou em entrevista à revista italiana "L'Europeu" em dezembro de 1988.
A misteriosa história de Castaneda
Carlos Castaneda não tem local de nascimento certo. Uns dizem Brasil, outros Argentina, outros ainda Peru. Formado em antropologia, durante quase 30 anos ele integrou um grupo auto-denominado de "guerreiros toltecas". O grupo se espalhava por todo o México. Mais tarde, durante a entrada de Castaneda (e de outros "eleitos"), espalhou-se pelo mundo.
Carlos Cesar Araña Castaneda conheceu esse grupo quando defendia uma tese de graduação na Universidade da Califórnia a respeito do uso de plantas alucinógenas por tribos indígenas do México setentrional.
Foi assim que ele acabou conhecendo Don Juan Matus (nome provavelmente fantasioso), um índio yaqui cuja cidade natal é desconhecida e que, como mestre nagual, acabou obrigando Castaneda a entrar para o grupo. Foi Juan Matus quem o iniciou no uso de cogumelos e plantas alucinógenas como a Datura inoxia e possivelmente a Ayahuasca.
Matus afirmou a Castaneda e o fez acreditar que aquilo que ele considerava alucinações durante o uso das drogas sob sua supervisão não passava de um outro estado de consciência, no qual as visões (e coisas) são de fato reais. Um mundo real, habitado por seres inorgânicos (chamem de fantasmas), ao qual qualquer ser humano pode ter acesso sob um especial estado de consciência. Esse estado pode ser obtido por meio de drogas ou por meio de "acúmulo de energia pessoal", com algumas técnicas descritas neste texto, abaixo.
No entanto, o próprio nagual avisou que, nesse "treinamento religioso", o uso de drogas era necessário apenas para pessoas extremamente egocêntricas e auto-centradas. A pessoas mais, digamos, modestas, bastava acumular energia naturalmente, sem uso de substâncias.
Os feiticeiros toltecas
Juan Matus garantia que, num passado longínquo, onde hoje é boa parte do México, populações inteiras faziam uso de plantas alucinógenas. Homens, mulheres, crianças. Ele dizia que o auge dessa civilização teria ocorrido entre 7.000 e 4.500 anos atrás. Quando os espanhóis chegaram, afirma, as linhagens de feiticeiros espalhadas por todas as regiões foram dizimadas pela espada. Cabe lembrar que a sanha espanhola/cristã na Conquista era especialmente violenta contra tudo que remetesse à prática de magia.
Outro fator relevante é que o clima mexicano ora úmido, ora calorento é um devorador de fósseis, de forma que até hoje não há registro algum que corrobore uma civilização poderosa e avançada vivendo entre 7.000 e 4.500 anos atrás nessa região.
Embora o grupo de Castaneda se denominasse guerreiros ou feiticeiros toltecas, parece evidente que eles simplesmente assumiram a cidadania dos últimos astecas que clamavam descender dos toltecas (900- 1.200 d.C), um povo extremamente nobre, invejado e talvez o mais vinculado à prática de feitiçaria.
O próprio Don Juan revela durante os encontros com Castaneda, entre 1966 e o final dos anos 70, que aquela linhagem, a que ambos pertenciam, só havia sobrevivido porque seus feiticeiros antepassados fingiram se converter ao Cristianismo durante a Conquista para não serem mortos. No entanto, ocultamente, seguiram com suas práticas misteriosas.
A prática dos toltecas
O mundo que Fellini iria se deparar, caso tivesse tido sucesso em seu filme sobre a vida de Castaneda, era pragmático e cheio de regras e leis. A saber:
1) Os feiticeiros toltecas acreditam que é possível sobreviver à morte se o indivíduo acumular energia durante toda sua vida. Sobreviver à morte, no caso, significa manter a consciência após o último suspiro --que, aliás, tem de ser dado de forma voluntária pelos feiticeiros (e feiticeiras). Eles decidem o dia e a hora em que deixarão este mundo, para o qual não podem jamais voltar;
2) Após séculos e séculos de uso de plantas alucinógenas, uma casta de feiticeiros teria percebido que determinadas alucinações ou visões que ocorrem sob efeito dessas substâncias são exatamente as mesmas para todas as pessoas. Com o tempo, esses sacerdotes descobriram que alguns tipos de drogas (substâncias) levam a dimensões diferentes das que vivemos... Eles identificaram 48 diferentes dimensões neste planeta Terra ("O mundo é como uma cebola. Em camadas", diz o mestre Juan);
3) Para acumular energia, os feiticeiros obedecem a algumas premissas:
a) o ser humano deve interromper a auto-reflexão voluntariamente. O primeiro passo para a evolução, dizem, é interromper o fluxo aleatório de pensamentos que acomete a todos nós. Esse fluxo é um ralo de energia para os feiticeiros, e deve ser estancado. Isso era feito por meio de exercícios e práticas bizarras, bem como o uso controlado de determinadas drogas sob o comando de um mestre;
b) é preciso de toda forma economizar energia mais preciosa que temos, segundo eles a sexual; isso significa abrir mão de fazer sexo e, mais ainda, de ter filhos;
c) também com o auxílio de exercícios e movimentos corporais específicos, o feiticeiro inicia uma espécie de recapitulação de toda sua vida, desde o primeiro momento da primeira memória que teve até os dias atuais; é uma espécie de terapia da memória (ver "Passes Mágicos", ed. Nova Era);
d) para ser um feiticeiro tolteca é preciso ser escolhido pelo destino; não são aceitos candidatos.
Esse último item é o imponderável que atingiu Don Juan Matus, Genaro Flores, Carlos Castaneda, Florinda Donner, Taisha Abelar e tantos outras pessoas pelo mundo. No caso de Castaneda houve uma série de augúrios que o apontaram a Don Juan. De fato, Castaneda foi o primeiro não-índio --mas não o último-- a fazer parte daquele estranho grupo.
Fellini conta que, após a despedida estabanada de Castaneda, passou a receber telefonemas ameaçadores de pessoas não identificadas. Ele entendeu que se tratava do grupo do qual o escritor fazia parte. Segundo o cineasta, esse grupo até tolerava os livros, mas não aceitaria de forma alguma um filme em que ele, Castaneda, que também se tornara um mestre sui generis, fosse o protagonista em carne e osso.
Era esse o plano de Federico Fellini.
O que deveria ser mais um filme grandioso e intrigante, que talvez desencorajasse hoje Mel Gibson a voltar tocar no assunto, acabou virando um roteirinho em formato de história em quadrinhos. Foi publicado por Fellini em 1988 e chamado de "Viagem a Tulum" ("Viaggio a Tulun").
2 - Viagem a Tulum, o último roteiro deixado pelo diretor Federico Fellini (Amarcord), ganhará vida ainda no início de 2008.
Nas mãos do diretor Marco Bartoccioni, o roteiro será enfim rodado, após 15 anos de paralisação no projeto. O trabalho foi retomado pela produtora italiana Tiahoga Ruge, após adquirir os direitos do roteiro no ano passado.
Viagem a Tulum é baseado na viagem que o próprio Fellini fez ao México há mais de 20 anos, para se encontrar com o escritor Carlos Castaneda. A obra já conta com o ator Lazar Ristovsky no elenco, que interpretará Federico Fellini.
3 - Sinopse de Viagem a Tulum
(Viagem a Tulum, de Federico Fellini & Milo Manara. Rio de Janeiro: Globo, 1992, 84p.)
Uma das mais belas e delirantes histórias-em-quadrinhos da segunda metade do século passado, a partir de um argumento para filme (nunca realizado) e que seria adaptado com brilhantismo invulgar por Manara, o desenhista de algumas obras-primas das HQs, como a genial Sonhar, talvez. Na verdade, Fellini, que dirigiu Os boas vidas, Noites de Cabíria, A doce vida, Oito e meio, Amarcord e outros filmes de sucesso, sempre foi um entusiasta dos quadrinhos. Como Alain Resnais. Como Jean-Luc Godard.
Neste caso, para início de conversa publicou através de folhetim (em 1986) uma história que pretendia transformar em cinema; como não o fez, já que cinematograficamente irrealizável, ou quase, permitiu que Manara a adaptasse com bastante liberdade para a linguagem dos quadrinhos, participando, inclusive, da elaboração do roteiro em alguns momentos da feitura dessa autêntica novela gráfica.
O resultado final é admirável: em clima felliniano, entre a magia e o deslumbramento gráfico-seqüencial, os dois personagens principais (um senhor e uma jovem) visitam uma lendária Cinecittà, à procura do próprio Fellini, e nela encontram algumas figuras de suas obras, vivenciadas por Giulitetta Masina, Anita Ekberg, além, claro, Marcello Mastroianni. A rigor, a jovem não sabe se está vivendo uma aventura real ou se está dentro de um filme aparentemente sem o menor sentido. O fato é que, levada pelo chapéu do cineasta, se deixa afogar num lago artificial que contém mais elementos oníricos, numa viagem dionisíaca que seria sem lógica, para muitos e muitos. Aliás, é dentro do lago, marcado pelo simbolismo, que, num imenso avião, a jovem encontra Mastroianni, e mais uma vez Fellini. Quando o jumbo decola, com Mastroianni em seu interior, a história "decola".
E um filme vai ser feito (por Mastroianni/Snaporaz como o diretor), com seus mistérios, suas fantasias, seus devaneios, suas impossibilidades, seus mitos quadrinhográficos, seus múltiplos caminhos que levam ao México e à sua cultura milenar.
São muitas as referências e homenagens metalingüísticas em Viagem a Tulum, como, por exemplo, a Moebius (autor de outra instigante obra-prima dos quadrinhos: Arzach, visualmente excitante).
Moebius: Arzach
Moebius: Arzach - uma das referências de Manara em Viagem a Tulum
Moebius: Arzach
Milo Manara
De certo modo, Viagem a Tulum é o último grande filme de Fellini, sendo, ao mesmo tempo, uma das grandes HQs de Milo Manara.
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