Psicodélico: maio 2011

terça-feira, 24 de maio de 2011

Entrevista sobre Drogas – Terence McKenna

Entrevista com o etnobotânico Terence McKenna sobre os impactos históricos do uso, pesquisas e legislações sobre drogas.

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O Dia da bicicleta




Nos idos de 1920, em Zurique, na Suíça, um jovem trabalhava para conclusão de seus estudos em química. Em uma época de tecnologia muito precária, o estudante usou o suco gastrointestinal da lesma de jardim para conseguir fazer a degradação enzimática da quitina, molécula que compõe a estrutura de cascas, conchas, asas e garras de insetos, crustáceos e outros animais. A estrutura nitrogenada mostrou-se semelhante à da celulose, o material estrutural das plantas. Os resultados, obtidos em apenas três meses, renderam um doutorado com “distinção de mérito”. Em seguida, o recém doutor teve três possibilidades de emprego, e escolheu a compania Sandoz, pois ali poderia trabalhar com produtos naturais, que eram os que lhe fascinavam, enquanto as duas outras ofertas eram de trabalhos com química sintética.

Assim, em 1929 o destacado recém-doutor iniciou sua carreira profissional no laboratório do Prof. Arthur Stoll, fundador e diretor do departamento farmacêutico da Sandoz. O objetivo do departamento era isolar os princípios ativos de plantas medicinais, produzindo assim medicamentos com moléculas estáveis derivadas das presentes nas plantas, que muitas vezes são instáveis e difíceis de se manipular. As plantas escolhidas eram a dedaleira (Digitalis purpurea e outras do mesmo gênero), a cebola do mar (Scilla maritma) e o ergot (ou esporão) do centeio, que tinham pouco uso médico dada a instabilidade dos compostos e da consequente dificuldade de se estabelecer a dosagem. O jovem dedicou-se então a estudar a Scilla por alguns anos. Os princípios ativos já haviam sido isolados anteriormente e poderiam ser usados para tratamento de insuficiência cardíaca. A Sandoz já comercializava uma preparação farmacêutica com este propósito, mas a estrutura das moléculas ainda era desconhecida. O trabalho, que terminou em 1935, elucidou a estrutura destas moléculas, mostrando semelhanças com princípios conhecidos, isolados de glândulas na pele de sapos. Ponto final, linha de pesquisa encerrada.

Foi aí então que nosso protagonista buscou um novo campo de estudo, e pediu ao chefe para continuar suas pesquisas com os alcalóides do ergot, iniciadas no final da I Guerra Mundial, em 1917, e que prontamente levaram ao isolamento da ergotamina em 1918, o primeiro alcalóide do ergot obtido em forma pura.

A Sandoz também já comercializava o produto para tratamento de hemorragias no parto e de dores de cabeça, sob o nome Gynergen. Mas a pesquisa com o ergot tinha parado por aí. Justificando que laboratórios norte-americanos estavam investindo nesta linha, e portanto a Sandoz deveria seguir estudando o ergot para não perder a liderança, o novo empregado conseguiu o que queria, mas recebeu um aviso do Prof. Stoll: “Eu devo lhe alertar das dificuldades que você enfrentará com os alcalóides do ergot. Eles são excessivamente sensíveis, se decompõem facilmente, e são menos estáveis do que qualquer composto que você investigou na área dos glicosídeos cardíacos. Mas você é bem vindo para tentar”. Definia-se neste momento a área principal em que trabalharia por toda sua longa e produtiva vida, com “enorme entusiasmo e alegria criativa de embarcar num campo tão pouco investigado.”

Claviceps purpurea, o ergot do centeio

O ergot é produzido por um fungo, oClaviceps purpurea, que cresce no centeio ou, em menor quantidade, em outros cereais e grãos. Caroços infestados com o fungo têm tom marrom-escuro ou um marrom mais próximo do roxo. O ergot usado medicinalmente é o do centeio (Secale cornutum).

A história do ergot é fascinante por si só. Antigamente temido como veneno, foi depois considerado valioso depósito de remédios. Na idade média, o ergot foi a causa de envenenamentos coletivos e por muito tempo misteriosos que apareciam em duas formas, oergotismus gangraenosus e oergotismus convulsivus.

St Anthonys fire

Estes pacientes eram tratados pela ordem de Santo Antônio, que se tornou o padrinho do ergotismo, ou fogo de santo Antônio (St. Anthony’s fire).

As epidemias de envenenamento pelo ergot cederam com a descoberta de que o pão contaminado era a causa, mas epidemias foram registradas no sul da Rússia ainda em 1926-27. O primeiro relato de uso medicinal do ergot é de 1582, para facilitar o parto, mas este uso não é muito seguro para o bebê pois a dificuldade na dosagem causa espasmos fortes do útero. Somente com a determinação da estrutura química dos alcalóides do ergot por laboratórios ingleses e norte-americanos em 1930 que o estudo do ergot ganhou força. Os pesquisadores Jacobs e Craig em Nova Iorque chamaram o núcleo químico presente em todos os alcalóides do ergot de ácido lisérgico. Portanto, o entusiasmado Dr. Abert Hofmann começou a trabalhar com modificações do ácido lisérgico, adicionando diversos radicais, como aminas, através de um processo conhecido como Síntese de Curtius. Combinando o ácido lisérgico com a propanolamina ele obteve um composto idêntico à ergobasina, composto presente naturalmente no ergot, completando então a primeira síntese (produção artificial) de um alcalóide do ergot. Após este sucesso, a pesquisa avançou, rendendo o medicamento Methergine, que se tornou um líder na área da obstetrícia. Em 16 de novembro de 1938, Hofmann produziu a vigésima-quinta substância na série de modificações do ácido lisérgico, com o intuito de obter um composto que funcionasse como estimulante respiratório e circulatório (um analéptico), dada a similaridade estrutural com um analéptico em uso à época, a dietilamida do ácido nicotínico (Coramine). Os testes no departamento farmacológico da Sandoz revelaram efeitos fortes no útero, cerca de 70% dos efeitos da ergobasina que já estava em uso. Também foi notado que os animais de laboratório usados no experimento ficaram inquietos. Mas os efeitos não eram o suficiente para os interesses da Sandoz e os testes com esta molécula foram descontinuados. Nos próximos cinco anos, Hofmann avançou com outros estudos com o ergot, criando o medicamento Hydergine para melhora da circulação periférica e da função cerebral na geriatria, que se tornou o principal produto da Sandoz por muitos anos. É dele também o Dihydergot, medicamento para estabilização da circulação e da pressão sanguínea. Tudo isso trabalhando praticamente sozinho, o que contrasta com as grandes equipes que trabalham nos modernos laboratórios de química atualmente. Os resultados sem dúvida já haviam consolidado sua carreira e comprovado sua competência.

Mas de alguma forma a intuição de Hofmann não o deixava esquecer a vigésima-quinta modificação do ácido lisérgico, o LSD-25 (Lyserg-saure-diathylamid). “Um presentimento peculiar – a sensação de que esta molécula poderia ter propriedades não estabelecidas nas primeiras investigações – me induziram, cinco anos após a primeira síntese, a produzir o LSD-25 de novo”, conta em seu brilhante e fascinante livro “LSD, My Problem Child” (ainda sem tradução para o português). Assim, de maneira não usual, na primavera de 1943, em plena II Guerra Mundial, enquanto a Europa sofria com as catástrofes da violência generalizada e com os campos de concentração do nazismo, Hofmann quebrou o protocolo da empresa, que considerava as moléculas uma vez descartadas como definitivamente fora do programa de pesquisas, e resintetizou o LSD-25. Isso sem que houvesse qualquer dado concreto que o levasse nessa direção. Apenas ouvindo sua voz interior, Hofmann protagonizou uma descoberta serendipituosafantástica, provavelmente a mais espantosa da história da ciência. Nos passos finais da síntese, durante a purificação e cristalização da dietilamida do ácido lisérgico na forma de um tartrato (um sal), Hofmann foi interrompido por sensações incomuns. Em seu relatório para o Prof. Stoll escreveu:

“Na última sexta-feira, 16 de abril de 1943 fui forçado a interromper meu trabalho no laboratório no meio da tarde, e fui para casa, afetado por uma inquietude exagerada, combinada com uma leve tontura. Em casa deitei e mergulhei numa não-desagradável condição de intoxicação, caracterizada por uma imaginação extremamente estimulada. Em um estado onírico, com olhos fechados (a luz do dia era desagradavelmente brilhante), eu percebia um fluxo ininterrupto de figuras fantásticas, formas extraordinárias com um jogo intenso de cores caleidoscópicas. Após umas duas horas esta condição passou.”

A experiência tinha sido marcante, tanto no seu início súbito quanto no desenrolar extraordinário. O já experiente químico sabia que tinha se intoxicado com o material com que trabalhava, mas daí veio a questão: Como havia tomado contato com o material? Ele sabia da toxicidade dos alcalóides do ergot desde o início de seu trabalho nesta linha, cerca de oito anos antes, e sempre manteve hábitos de trabalho rigorosos. Possivelmente em alguma etapa uma parte do material devia ter entrado em contato com sua pele. Se este fosse de fato o caso, o LSD-25 teria de ser uma substância com potência extraordinária. Para saber, só havia uma maneira: Hofmann decidiu tentar um auto-experimento controlado.

Com extremada cautela, ele pensou na menor quantidade possível para fazer algum efeito psíquico. Decidiu então por tomar 0,25 mg (0,00025 gramas) do tartrato da dietilamida do ácido lisérgico, no dia 19 de abril de 1943, a páscoa judaica. Enquanto na Polônia as tropas nazistas da Waffen SS invadiam os guetos com 2000 soldados fortemente armados, que investiam contra cerca de 1200 judeus que resistiam com coquetéis molotov e algumas pistolas, Hofmann protagonizou o passeio de bicicleta mais famoso da história. Dadas as imposições da guerra, havia restrição ao uso do automóvel, e o auto-experimento com o que seria uma diminuta dose de qualquer outra substância catapultou Hofmann em tal estado mental que ele necessitou ajuda de sua auxiliar para pedalar de volta pra casa logo no início dos fortes efeitos. Pedalando com dificuldade, os sintomas que se pareciam com os da sexta-feira anterior começaram se tornar assustadores. Sua visão ondulava e tudo parecia como refletido em um espelho curvo. Sua sensação era de não conseguir sair do lugar, mas depois a assistente avisou que na verdade eles foram bem rápido.

Chegando em casa, Hofmann mal conseguia falar, e com dificuldade solicitou o médico e pediu que lhe trouxessem leite do vizinho. Apesar dos delírios e da condição alucinante, o pensamento por vezes era claro, e a escolha do leite é porque este pode ser usado como um antídoto inespecífico para envenamento. A tontura e a sensação de desmaiar eram fortes, e ele teve de deitar-se no sofá. O ambiente então se tranformava nas mais terríveis maneiras. Tudo girava e a mobília da sala assumia formas grotescas e ameaçadoras, perpetuamente em movimento. Ao longo da tarde ele bebeu mais de dois litros de leite, trazidos pela vizinha, que ele foi incapaz de reconhecer, pois mais parecia uma bruxa. Em seus relatos, Hofmann enfatiza que mais assustador que as alterações do mundo externo eram as sensações internas, as transformações de seu eu interior: “A sensação era muito real de que um demônio tinha me invadido, tomado conta de meu corpo, minha mente e minha alma. Eu estava tomado pela sensação aterrorizante de ficar louco. Fui transportado para outro lugar, outro mundo, outra época. Meu corpo estava sem sensações, sem vida. Estaria eu morrendo? Seria esta a transição?” Depois relata que por vezes sentia-se fora do próprio corpo, e então podia tomar consciência da proporção de sua tragédia: “Será que minha família compreenderia que eu não havia experimentado de maneira inconsequente e impensada? Pelo contrário, que havia sido com a mais extremada cautela e que tal resultado era totalmente imprevisível? […] Então havia também uma ironia amarga: se agora eu fosse deixar este mundo prematuramente, seria por causa desta dietilamida do ácido lisérgico que eu mesmo trouxe à existência”.

Albert Hofmann segura modelo plástico da estrutura química do LSD

Quando o médico chegou, a condição já estava menos severa, e o único sintoma detectável eram pupilas extremamente dilatadas. A medida do pulso, pressão sanguínea e respiração estavam todas normais. Deitado na cama sendo observado pelo médico, Hofmann concluiu que a possibilidade de morte ou loucura permanente estavam decididamente fora de questão. Aí então pode apreciar as intensas imagens de caleidoscópios coloridos que se projetavam por trás de suas pálpebras, caso fechasse os olhos. “Eternamente se abrindo e fechando, explodindo em espirais e fontes coloridas, em fluxo perpétuo. Cada som gerava uma imagem vívida correspondente, com sua própria forma e cores. Exausto, depois que minha esposa chegou, pude dormir, para acordar na manhã seguinte renovado, com a mente clara, uma sensação de bem estar e de vida renovada dentro de mim. O café da manhã estava delicioso e me deu prazer extraordinário. Depois andei pelo jardim, apreciando o sol após uma chuva de primavera, tudo brilhava e irradiava uma luz fresca. Todos meus sentidos vibravam numa condição de sensibilidade máxima, que persisistiu o dia todo”.

A experiência revelou a extraordinária potência do LSD e seus efeitos psíquicos abrangentes. Não havia conhecimento de substância com tais capacidades para alterar a percepção do mundo, tanto externo quanto interno, para modificar a consciência humana de tal forma. É marcante o quanto se pode aprender do relato da experiência de Hofmann, e chocante o quão pouco de fato se aprendeu, tanto desta experiência singular quanto das milhares que se seguiram. Mais conhecido pelo uso maciço nos anos 60 nos EUA e pela forte proibição que se seguiu, o LSD possui propriedades psíquicas únicas, capazes de revolucionar áreas como a psiquiatria, a psicologia e a neurociência. É extremamente eficiente em abrir as portas da percepção (parafraseando William Blake) e expandir nossa consciência, tanto individual como coletiva. Mas nem tudo são rosas. A experiência ilustra bem também os perigos psíquicos de uma dose relativamente elevada em um sujeito psicologicamente despreparado para a experiência. E já indicava a segurança física da experiência. Apesar do pavor que pode ser experienciado, a dose letal de LSD é extremamente maior que a dose efetiva, e não se conhece relato algum de morte por overdose da substância.

As possibilidades na psiquiatria foram de fato testadas e comprovadas por décadas de uso controlado e supervisionado, mas isso pouca gente hoje em dia sabe. Ainda predominam as mentiras deliberadamente inventadas e ativamente propagandeadas pelo serviço de “inteligência” dos EUA (como de que o LSD altera o DNA, por exemplo), principalmente durante os anos da guerra do Vietnam, quando o LSD se tornou o símbolo da juventude que era contra a guerra e que rompia com os rígidos padrões e costumes culturais da sociedade da primeira metade do século XX, o mais violento da história humana, no qual fascismo, nazismo e stalinismo juntos causaram 111 milhões de mortes em combates diretos, mais um número imenso de vítimas direta ou indiretamente relacionadas. Apesar de suas ramificações culturais, políticas e sociais a partir dos anos 60, que o lançaram à fama mundial, o LSD era, anteriormente, fornecido pela Sandoz sobre o nome de Delysid para especialistas da área de saúde mental. Foi usado terapêutica e cientificamente por diversos pioneiros, concentrados no campo da psicologia e psiquiatria. Liderados pelo visionário psiquiatra tcheco Stanislav Grof, pesquisadores obtiveram resultados promissores. Entre eles destacaram-se James Fadiman, Myron Stolaroff, Huston Smith, Aldous Huxley, Humphrey Osmond e Gary Fisher, entre outros. Estes pioneiros da pesquisa com LSD se beneficiaram do uso consciente e respeitoso e publicaram resultados de pesquisas e abordagens terapêuticas controladas, obtendo insights incríveis não só sobre psicologia e psiquiatria, mas também sobre religião, literatura, filosofia e estudos da consciência em geral.

Os insigts de experiências com o LSD-25, ou com substâncias similares, como os princípios ativos dos cogumelos mágicos (gênero Psilocybe), também isolados, purificados e identificados por Hofmann anos mais tarde (psilocina e psilocibina), trazem muitas respostas para as questões que afligem a sociedade atualmente. O uso adequado destas substâncias permite ao indivíduo desenvolver e cultivar um modo de consciência ecológico, cooperativo e pacífico incompatível com o modelo competitivo, consumista e violento que predomina na sociedade atual. Os frutos do uso adequado e do estudo científico dos psicodélicos se encontram em coisas tão amplas quanto a filosofia perene, arte, biologia molecular, psicologia transpessoal, ecologia sistêmica, física quântica, medicina integral e a cartografia expandida da psique humana, brilhante e consistentemente explorada, documentada e analisada por Stan Grof.

Alheios a quase tudo isso, a maioria dos cientistas e da sociedade de maneira geral segue em seu modo monotônico de consciência, praticando com pressa e ganância as preces do capitalismo globalizado de consumo materialista. Os problemas agravam-se rapidamente, e a grande massa afogada em toneladas de antidepressivos industriais e centenas de horas de programas de TV se torna cada vez mais rebanho de um sistema sócio-cultural cujo rumo pode ser o suicídio coletivo de nossa espécie e da extinção de tantas outras que dependem daquilo que destruímos. Como bem colocou nos anos 80 o psiconauta Terrence McKenna: “A sociedade moderna é um revólver apontado pra cabeça deste planeta”.

A idéia de que é necessária uma profunda revisão de valores e consequente mudança comportamental para que possamos sair do buraco ganha cada vez mais espaço na sociedade. O que a maioria não sabe é apontar um caminho eficiente que vá nessa direção. Nós, do Plantando Consciência, firmemente defendemos que o uso moderado, informado e supervisionado de psicodélicos, respeitando os já bem estabelecidos preceitos do set and setting, são uma das possíveis estradas a serem tomadas. Associada à pesquisa científica moderna, esta estrada pode nos levar a soluções sem precedentes para a crise atual. Não que qualquer pessoa deva usá-los. Pelo contrário. A ciência já mostrou de forma bem clara que há grupos de risco, e que o uso inconsequente pode ser devastador. Mas a prática milenar do uso destas substâncias por culturas xamânicas de todo o globo (e também de técnicas sem drogas capazes de produzir efeitos similares), comprovam que a indução esporádica de estados holotrópicos de consciência não é uma excessão, mas talvez seja a regra de muitas sociedades humanas ao longo da história. A excessão é justamente a proibição generalizada e desinformada que vigora nos últimos 40 anos, e que mais danos causou do que o próprio uso de drogas, mesmo quando feito da pior maneira possível, que é o que ocorre em um sistema de proibição, desinformação e violência. Nas palavras de Amanda Fielding: “Proibir estados alterados é não só inviável como pouco inteligente do ponto de vista evolutivo. Nós estamos em um período desafortunado, em que estados alterados da mente, exceto os produzidos pelo álcool, não são vistos como parte do desenvolvimento da civilização. Não acredito que essas experiências sejam algo que todos desejam. Mas existe uma minoria na sociedade que é exploradora das praias mais distantes da consciência, e a sociedade toda ganha quando permite e encoraja essas pessoas a trazerem ideias e insights desses estados”.

Hofmann foi muito claro sobre o que aprendeu com o LSD, pergunta que ouvia com frequência. Foi enfático, poético e professoral. Em muitas passagens do livro e em várias entrevistas e textos, seus insights emocionam e não deixam dúvidas do tremendo potencial que estamos perdendo: “De extrema importância para mim é o insight de todas minhas experiências com LSD de que, num nível fundamental, o que tomamos como ‘a realidade’, incluindo a realidade individual de cada pessoa, não é algo fixo, mas algo ambíguo – de que não há uma, mas muitas realidades, cada uma compreendendo uma diferente consciência do ego. Também se pode chegar a essa conclusão por reflexões científicas. […] mas é fundamentalmente diferente chegar a isso pela racionalidade, com a lógica da filosofia ou dar de cara com a questão emocionalmente, através da experiência. […] Qual a diferença essencial entre a realidade do dia a dia e o quadro experienciado durante a inebriação com LSD? O ego e o mundo externo estão separados na condição normal de consciência, na realidade ordinária; a pessoa fica face a face com o mundo externo, ele se torna um objeto. Durante a experiência com LSD os limites entre o eu que vivencia e o mundo externo tendem a desaparecer, dependendo da profundidade da inebriação. […] Uma porção do eu transborda para o mundo externo, para os objetos, que tomam vida, ganham um significado mais profundo. […] Em um caso auspicioso, o novo ego se sente abençoadamente unido com os objetos do mundo externo e consequentemente com outros seres vivos. Esta experiência de profunda unidade com o mundo exterior pode até se intensificar para a sensação de unidade com o universo. Esta experiência de consciência cósmica […] é análoga à iluminação religiosa espontânea, a unio mystica. […] O conceito de realidade que separa o eu do mundo definitivamente determinou o curso evolucionário da intelectualidade européia. O que Gottfried Benn chamou de “a catástrofe esquizóide, a auto-perpetuadora neurose ocidental (western entelechy neurosis, no original)”. A experiência do mundo como matéria, como objeto do qual o homem é separado, produziu as ciências naturais modernas e a tecnologia – criações da mente ocidental que mudaram o mundo. Com a ajuda destas ferramentas os humanos subjugaram o mundo. Sua riqueza foi explorada e depredada, e a conquista sublime da civilização tecnológica, o conforto da vida industrial ocidental, está de frente com a catastrófica destruição do meio ambiente. Até mesmo ao coração da matéria, ao núcleo do átomo e sua partição, este intelecto objetivo progrediu e liberou energias que ameaçam toda a vida no planeta. Um uso equivocado do conhecimento […] não poderia emergir de uma consciência da realidade na qual os homens não são separados do ambiente mas existem como parte da natureza viva e do universo. Todas as tentativas de reparar os danos ambientais com medidas protetoras permanecem sem esperanças, são apenas remendos superficiais, se não houver cura para a “auto-perpetuadora neurose ocidental. A experiência de uma realidade unitiva é impedida em um ambiente tornado morto pelas mãos humanas, como é o caso presente nas grandes cidades e distritos industriais. Nestes lugares a separação entre o eu e o mundo externo se torna especialmente evidente. Sensações de alienação, solidão e ameaça surgem. […] No campo ou na floresta, e no mundo animal abrigado aí, na verdade em cada jardim, há uma realidade perceptível que é infinitamente mais real, antiga, profunda e mais maravilhosa do que qualquer coisa feita por pessoas, e que irá por fim prevalecer, após o inanimado, mecânico e concreto novamente sumirem, após apodrecerem e se desfalecerem em ruínas. Não estamos caminhando na direção de um sentimentalismo entusiasmado pela natureza, um “retorno à natureza” no sentido de Rousseau. Aquele movimento romântico, que buscava o idílico na natureza, também pode ser explicado pela sensação de separação entre humanidade e natureza. O que precisamos hoje é uma fundamental resignificação da unidade de todas as coisas vivas, uma realidade consciente e abrangente que cada vez mais infrequentemente se desenvolve de maneira espontânea, quanto mais a primordial flora e fauna de nossa mãe terra cede lugar ao ambiente tecnológico morto.“

Assim sendo, desejamos que neste 19 de abril pausemos para repensar e melhor nos informar sobre a história e os fatos que cercam os psicodélicos. Para que o preconceito, a desinformação e a mentira abram espaço para o desenvolvimento da consciência holotrópica. Para que os psicodélicos possam reencontrar seu rumo, e que finalmente a “criança problema” de Hofmann se torne a “criança abençoada”. É hora de regar e cultivar a consciência global de que tanto necessitamos. Para que a chegada da primavera na mente dos homens aconteça o quanto antes, dissipando a “catástrofe esquizóide” que nos assola.

A todos nossos queridos leitores, de ontem, hoje e amanhã, desejamos um feliz dia da bicicleta, em homenagem ao gênio Albert Hofmann (11 jan 1906 – 29 de abril de 2008).



segunda-feira, 16 de maio de 2011

“Guerra às drogas mostrou-se ineficiente” - Entrevista: presidente da Fiocruz



“A guerra às drogas mostrou-se ineficiente”, afirma o presidente da Fiocruz
Por Gabriel Bonis, da CartaCapital

A Comissão Brasileira sobre Drogas e Democracia produziu um relatório, liberado em abril, após 18 meses de debates, no qual conclui que a maconha é a droga ilícita com menor potencial nocivo à saúde. O documento, que deve ser entregue ao governo em julho, propõe uma forma alternativa de combate ao problema, visto que “alcançar um mundo sem drogas revelou-se um objetivo ilusório”.

A instituição, formada por especialistas de diversas áreas, como saúde, direito, jornalismo, segurança pública, atletas, movimentos sociais, entre outras, pede que se realize um “debate franco” sobre o tema e que seja discutida a regulação da produção da maconha para consumo próprio e a descriminalização do seu uso. O relatório cita ainda os exemplos de Espanha, Holanda e Portugal, que adotaram medidas semelhantes às indicadas pela Comissão.

A CartaCapital conversou sobre o relatório com o presidente da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) e da Comissão Brasileira sobre Drogas e Democracia, o médico Paulo Gadelha, que defende a “despenalização” do usuário, ou seja, ainda há o crime, mas sem prisão como punição.

CartaCapital: O relatório propõe uma nova abordagem no combate às drogas. Qual seria a maneira mais adequada de lidar com o problema?
Paulo Gadelha: Uma constatação internacional é que a idéia da guerra às drogas como tema central do enfrentamento do problema se mostrou ineficiente. O que chamamos atenção é que, sem descuidar de aspectos importantes, como o campo da segurança, é preciso dar ênfase à abordagem pelo prisma da saúde pública. Há uma maneira de se aproximar do problema que não diferencia quem é o usuário, que tem sobre si os danos e as possibilidades de afetar a sua saúde, e o processo de produção e comercialização associado ao tráfico. A confusão entre esses dois aspectos gera muitas distorções. Ao lidar com evidências científicas para aferir quais são os danos à saúde, tanto das drogas lícitas quanto das ilícitas, é possível ter esse processo como uma referencia para educação, informação e capacitação das pessoas. Desta forma, estas podem estar em condições de, ao lidar com o risco, amenizar os danos à sua saúde. Se não tivermos uma nova abordagem vamos deixar de lidar com a questão central, que é cuidar e permitir que as pessoas tenham a preservação da sua saúde. A maneira como as drogas ilícitas são abordadas cria barreiras, tabus e descriminação a quem procura tratamento. Quando se tem essa forma de penalização criminal, a própria pessoa que precisa de ajuda sente-se tolida e com dificuldades de colocar o seu problema em um espaço público.

CC: Como o senhor acredita que a descriminalização ajudaria no combate ao tráfico e crime?
PG: Lidamos com a questão de três maneiras diferentes. Uma coisa é a descriminalização, a despenalização e a legalização. Não está sendo proposto legalizar as drogas ilícitas, estas continuarão sendo ilegais, mas a comissão pede a despenalização. Continua sendo crime, mas não há o aprisionamento para o usuário, que se submeteria ao tratamento e a penas alternativas. Essa diferença é importante, o que é difícil transmitir para a população. A Comissão tem uma postura muito clara de que o tráfico, circuito de armas e a dominação de território deveriam ter suas penas agravadas. Radicalização ao trafico, mas tratar o usuário sob outros parâmetros.

CC: Como o senhor avalia a lei antidrogas brasileira em vigor?
PG: A lei antidrogas tem aspectos que são importantes e avançam com relação ao passado, mas gera também ambiguidades. Diz que o usuário tem uma forma diferenciada de ser tratado, mas não especifica o que é considerado uso ou tráfico em termos de quantidade. Na medida em que não há essa normatização, tudo que for apreendido em flagrante com qualquer pessoa fica sob o arbítrio das autoridades judiciárias e policiais. Estas vão determinar se o que se está portando é para uso próprio ou tráfico. Com isso, cria-se uma distorção imensa na forma de abordar o problema. Isto leva a um efeito, percebido por pesquisas, que coloca nas prisões réus primários, encarcerados portando pequenas quantidades de droga e sem relação com o tráfico, que acabam sendo iniciados no crime pela prisão.

CC: A maconha é vista como a droga ilícita com efeitos menos prejudiciais à saúde. Mas isso não significa que o seu consumo não faça mal. Quais problemas o uso desta substância pode causar? É possível fazer uma comparação entre os danos causados pelo álcool e a maconha?
PG: A maconha tem riscos à saúde, podendo exacerbar surtos psicóticos e alterar o ponto de vista comportamental. As drogas lícitas também apresentam efeitos danosos significativos, como o alcoolismo, problema central hoje no Brasil. O país lidera o ranking de consumo de álcool nas Américas, com aproximadamente 18% da população que usa a substância em excesso. O álcool traz problemas de memória, cardiovasculares, afeta a socialização e aumenta o risco de violência sofrida ou cometida.

CC: O senhor acredita que a descriminalização poderia incentivar o consumo da maconha, ou campanhas de educação como as do cigarro seriam suficientes para evitar que isso aconteça?
PG: As experiências internacionais são diversas, em Portugal houve redução do consumo, ao contrário da Holanda. Não podemos ter uma relação automática e simplista entre a descriminalização e a redução. Não se trata de jogar toda a ênfase na criminalização, falamos de uma abordagem ampla, que envolve questões ligadas à educação, informação sobre as drogas e como o sistema de saúde acolhe o dependente. Não é uma bala mágica, isolada, é uma política em geral que inclui também o combate ao tráfico.

CC: A Comissão cita o exemplo de países que descriminalizaram o uso da maconha, como Portugal e Espanha. Porém, estes locais adotaram políticas de apoio ao usuário, para evitar danos a sua saúde, como tratamentos psicológicos e de desintoxicação. O Brasil teria condições de oferecer e manter esses serviços?
PG: É preciso enfatizar que essas condições têm que ser construídas já. O Ministério da Saúde está com muita clareza em relação à necessidade do Sistema Único de Saúde em oferecer de maneira acolhedora esse tratamento, que está muito aquém da nossa necessidade atual. O fato dessa necessidade no sistema de saúde independe da descriminalização, pois as pessoas estão precisando de tratamento agora.

CC: No caso da produção para consumo, como controlá-la e evitar que não seja destinada ao comércio?

PG: A lei prevê a produção para consumo, mas não estabelece ou limita a quantidade que seria compatível, logo, essas definições são necessárias. Mas é evidente que alguém que planta para consumo não o faz em atacado.