Em geral, as discussões de políticas e leis sobre a maconha são feitas por pessoas que defendem apaixonadamente sua proibição total ou sua liberação total. Na proibição total significa que plantar, colher, fumar, vender ou distribuir maconha, ainda que sem a intenção de lucro, continuam sendo crime. Na liberação total a maconha seria tratada como o álcool ou tabaco, tornando-se um negócio passível de ser explorado pelas grandes industrias. Mas será que não estamos tão acostumados com a discussão monolítica dos “contra” X “a favor” que estamos ignorando a existência de inúmeras possibilidades entre esses dois extremos?
Em fevereiro desse ano, durante um debate de lançamento do meu livro em São Paulo, o deputado Paulo Teixeira, líder do PT na Câmara, defendeu que fosse estudado no Brasil a possibilidade de regulamentar o cultivo de maconha para uso pessoal. Em sua proposta o deputado defendeu ainda que fosse regulamentada a criação de associações sem fins lucrativos, formada por usuários, para que esses pudessem cultivar e se abastecer de forma coletiva. Na época, a participação do deputado nesse debate foi ridicularizada por alguns jornais, que sequer se deram ao trabalho de pesquisar sobre como tem sido experiências semelhantes em alguns países da Europa, do qual a Espanha é o maior exemplo, muito menos publicar informações sobre o que tem sido essas experiências e quais seus resultados concretos.
A cada dia tem ficado mais evidente que esse debate tem que ser feito com urgência. A intensidade com que o assunto vem sendo discutido nos mais diferentes espaços da sociedade é um marco importante de como a discussão deve ser encarada com seriedade. Em vista disso, devemos nos perguntar: Será que discutir a regulamentação das Associações de Usuários, como vem propondo o deputado Paulo Teixeira, é uma proposta assim tão absurda?
Em 2009, o Conselho Nacional de Políticas sobre Drogas (CONAD), criou um Grupo de Trabalho formado por pesquisadores, técnicos e representantes do Governo e da Sociedade Civil para discutir propostas de modificações na Lei de drogas, 11.343 de 2006 e sua efetiva regulamentação. Durante os trabalhos desse GT, foi apresentada por mim e outros conselheiros a necessidade de regulamentar o cultivo caseiro de maconha e estudar a possibilidade de regulamentar também o cultivo coletivo através de Associações sem fins lucrativos. Apesar dos trabalhos do GT ainda não terem sido concluidos, a proposta foi bem aceita pela maioria dos participantes do GT, que demonstraram interesse em conhecer mais sobre o tema, especialmente como tem sido a experiência na Espanha.
Na Espanha, onde esse modelo vem sendo implantado desde o final da década de 90, existem atualmente cerca de 200 Associações e uma Federação de Associações Canábicas. Nesses locais, só podem se cadastrar pessoas maiores de 18 anos, que já sejam usuárias habituais da erva e que tenham sido indicados por um ou mais associados. Esses usuários só podem retirar aproximadamente 20 gramas por semana, a não ser que se tenha recomendação médica indicando que a necessidade é maior que esse limite. As Associações não têm interesse de lucro, por isso, podem investir o dinheiro arrecado em benefício dos próprios associados e da comunidade da qual fazem parte. Com esse modelo, os espanhóis têm conseguido não apenas retirar uma grande fonte de lucro dos traficantes, mas também reduzir os danos associados ao uso de maconha e, principalmente, incentivar a autonomia dos usuários, promovendo mudanças na forma como esse encaram o consumo. Os usuários deixaram a postura passiva de apenas decidir se vão ou não adquirir, cultivar ou consumir. Os usuários também passaram a ter mais acesso ao sistema de saúde e não foram registrados aumento no número de novos consumidores
Em muitos dos debates embasados na dicotomia proibição X liberação é comum ver o argumento de que não é possível regulamentar o uso de maconha por causa dos Tratados Internacionais sobre drogas. Mas, de fato, os Tratados Internacionais são muito mais flexíveis do que tem sido afirmado, tanto que toda experiência espanhola com as Associações Canábicas está dentro dos limites desses Tratados e a Espanha não tem sofrido qualquer retaliação por conta disso. Aliás, é importante destacar que os Tratados sequer prevêm qualquer tipo de punição para os países que decidirem não os levar mais em consideração. De fato, toda a experiência espanhola das Associações de Usuários só é possível porque os próprios Tratados deixam a cargo dos países signatários a decisão de criminalizar ou não as condutas relacionadas com à esfera do consumo, incluindo aí os chamados “atos preparatórios”, como o cultivo da erva.
Até hoje os debates com relação à maconha têm sido feito, em sua maioria, por defensores apaixonados de um ou outro extremo. Acho que já é hora de amadurecermos o debate, deixar os aspectos morais, os preconceitos e as paixões de lado e embasar a discussão em dados de experiências concretas e em pesquisas científicas. Só assim poderemos enxergar que existem possibilidade ainda inexploradas porque simplesmente não estamos acostumados a pensar fora do embate proibição x liberação. Acho que é cada vez mais necessário pensar e por em prática alternativas que estejam entre esses extremos. Afinal, não seria menos arriscado e prejudicial aos usuários e à sociedade tirar a maconha das mãos dos traficantes para colocá-la nas mãos dos interesses de grandes empresas.
Publicado em http://www.une.org.br/2011/11/opiniao-associacoes-de-usuarios-de-maconha-entre-liberacao-e-proibicao-por-sergio-vidal/
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