Este é o título de reportagem deste domingo, 23/05/2010, do jornalista Gilberto Dimenstein no jornal Folha de São Paulo. O crack é uma droga terrível, que provoca dependência de maneira extremamente rápida, cujo consumo aumentou 70% no Brasil nos últimos anos. Atualmente não existe tratamento para os viciados em crack. A reportagem de Dimenstein é transcrita na íntegra, a seguir.
Sem temer a polêmica, talvez se pudesse responder positivamente ao título desta coluna. Durante três anos, um grupo de 50 viciados em crack se submeteu a uma experiência comandada por psiquiatras da Unifesp (Universidade Federal de São Paulo): a combinação de terapia com maconha. O resultado do teste ganhou repercussão mundial, especialmente nos EUA, onde foi publicado em revistas científicas. Daquele grupo, 68% trocaram o crack pela maconha. Tempos depois, todos (vamos repetir, todos) os que fizeram a troca não usavam nenhuma droga.
A maconha serviu para reduzir a “fissura” [vontade compulsiva] pelo crack, enquanto se esperavam os efeitos da terapia para que, com apoio familiar, o jovem pudesse reorganizar sua vida. Essas informações foram suficientes para inspirar médicos, inclusive do setor público, a tratar seus pacientes viciados em drogas pesadas. Técnicos do Ministério da Saúde e mostraram impressionados. Idealizador dessa experiência, Dartiu Xavier, professor de psiquiatria da Unifesp, especialista em dependência química, está frustrado, porém.
Ele foi obrigado a abandonar seu projeto, pois corria o risco de emaranhar-se na lei e de vir a ser trata do como traficante. Além disso, ele seria alvo do ataque de inúmeras entidades médicas brasileiras. A tragédia do crack ganhou mais destaque na semana passada, quando o governo federal anunciou um plano de R$ 410 milhões para lidar com os estimados 600 dependentes de crack – um crescimento, segundo estimativas oficiais, de 70% nos últimos cinco anos.
Se a lei permitisse, Dartiu ampliaria o número de atendidos, por exemplo na cidade de São Paulo, onde existem grandes áreas de consumo do crack. A própria universidade forneceria a maconha para garantir o controle da experiência. Quem sabe estaria aí o começo da solução ou, pelo menos, da redução dos danos provocados por essa praga que infesta o país e criou uma “cidade”chamada” cracolândia”.
Na semana passada, durante um congresso internacional, realizado na Unifesp, quando se discutiu a criação de uma agência brasileira para o uso medicinal da maconha, o preconceito foi bombardeado por argumentos científicos. Para sair do papel (sobretudo em ano eleitoral), porém, um projeto como esse, mesmo como apoio do Ministério da Saúde, tem de percorrer um longo caminho. Em Washington, capital de um país conservador em relação às drogas, a maconha já foi liberada para uso medicinal.
Um dos maiores especialistas mundiais em drogas, o psicofarmacologista Elisaldo Carlini, ligado à Unifesp, aponta a existência de estudos feitos com animais em que se revela que o princípio ativo da maconha ajuda a combater a depressão e fortalece os indivíduos em situações de estresse.
“É apenas uma hipótese. Afinal, isso só foi testado em animais”, diz Carlini, um dos principais idealizadores do encontro internacional da semana passada. Mas ele já sabe que existe comprovação da eficácia de vários de seus tratamentos, alguns dos quais descobertos não por cientistas ou médicos, mas por indivíduos comuns. Na Califórnia, jovens com câncer que, durante as sessões de quimioterapia, demonstravam menos efeitos colaterais, tinham em comum o uso de maconha.
Em suas aulas, o professor Elisaldo gosta de mostrar textos do médico da rainha Vitória (J. Russel Reynolds), da Inglaterra, em que recomendava entusiasticamente a cannabis como remédio. Ele descobriu registros sobre o uso da maconha como analgésico na China há mais de 5.000 anos.
Dartiu e Carlini sabem não só que a maconha afeta a concentração, o aprendizado e a memória mas também que sua descriminalização não é uma medida de fácil implementação. O que está em discussão, porém, é o direito de fazer ciência honestamente sem correr o risco de ser aponta do como marginal.
Nos arquivos de Carlini, há o caso de um indivíduo de Porto Alegre que, cansado dos enjoos provocados pela quimioterapia e na esperança de levar uma vida mais saudável, comprou um sítio.
Lá plantou maconha para consumo próprio. Não pretendia cometer nenhuma ilegalidade, tampouco se envolver com traficantes, mas, descoberto pela polícia, que apreendeu cinco pés da erva, agora tem dois problemas: além de enfrentar o câncer, tem de responder a inquérito, acusado de ser traficante de drogas. Dartiu correria risco semelhante se continuasse suas pesquisas, que trouxeram um sinal de esperança.
O relato de Dimenstein relata o verdadeiro absurdo em que se traduziu os problemas do professor Dartiu Xavier, de ter que responder à justiça como possível traficante de maconha. Isso é uma vergonha. Se as autoridades judiciais brasileiras não têm a capacidade de fazer a distinção entre um trabalho de pesquisa sério, que objetiva resolver problemas de dependência química e de re-inclusão social, da atuação de um traficante, existe um sério problema. As terapias com “drogas ilícitas” estão sendo cada vez mais consideradas e utilizadas para o tratamento de depressão, esclerose múltipla, falta de apetite (em doentes com câncer e infectados com HIV) e dependência química de cocaína, êxtasy e outras drogas pesadas. Tratar da mesma forma um pesquisador sério e um traficante de drogas é agir na mais total ignorância, de maneira extramamente conservadora (para não dizer reacionária) e preconceituosa, quando, ao mesmo tempo, o trabalho dos Drs. Xavier e Carlini foi considerado uma abordagem inédita para o problema nos EUA.
Espero, sinceramente, que nenhum membro da família de pessoas que condenam pesquisas desta natureza se torne viciado em crack ou em qualquer outra droga pesada. É, muitas vezes, um caminho sem volta. O tratamento com maconha, ou com outras drogas ilícitas, pode ser a única solução.
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