Psicodélico: Mito, antropologia e teatro: entrevista com o antropólogo Pedro Cesarino

quarta-feira, 2 de fevereiro de 2011

Mito, antropologia e teatro: entrevista com o antropólogo Pedro Cesarino

[1]

Por Beatriz Labate[2]

O antropólogo Pedro Cesarino, doutor pelo Museu Nacional (UFRJ) e professor da Universidade Federal de São Paulo (UNIFESP), fez uma livre recriação para dramaturgia de uma narrativa mítica cantada, Kaná Kawã, do povo Marubo, população pano do Vale do Javari, na fronteira com o Peru. A recriação dramatúrgica, Raptada pelo Raio, que parte de uma tradução do original feita também por ele, foi encenada pela Companhia Livre, sob direção da premiada Cibele Forjaz. Ficou em cartaz na cidade de São Paulo durante 2010, ano em que o espetáculo foi também apresentado em outras cidades brasileiras, tais como Porto Alegre, Recife e Belo Horizonte. O mito conta a história de uma mulher que tem sua alma ou “duplo” raptado pelos espíritos do raio. Seu marido faz uma viagem pelo cosmos para tentar recuperá-la de volta, enfrentando diversas batalhas com o auxílio de povos estranhos. O espetáculo procura trazer algo destes mundos invisíveis e outros. Numa das cenas, o espectador deita numa rede e tem os seus olhos tapados com máscaras que aludem aos trabalhos da artista Lygia Clark. É como se nossa sociedade, marcada pela hegemonia do sentido da visão, procurasse cada vez mais alteridades sensoriais onde “o não ver” possa revelar “outras formas de ver”.

Nesta entrevista, o antropólogo fala da experiência com o trabalho de dramaturgia para uma companhia de teatro de grupo de São Paulo, comentando ainda outros assuntos tais como a relação entre vivos e mortos, os limites da finitude e do humano e a relação entre tradição e modernidade. Reflete também sobre o aumento do interesse ocidental pelo xamanismo amazônico, as continuidades e descontinuidades entre o fazer antropológico e a criação artística, os desafios das “traduções” e a questão da autoria. Por fim, coloca em perspectiva as relações entre as poéticas ameríndias e a literatura ocidental, assim como entre antropologia e teatro.

1. Como surgiu a ideia de fazer este trabalho?

Em 2007, a diretora da Companhia Livre, Cibele Forjaz, me chamou para fazer a pesquisa de um projeto apoiado pelo Programa de Fomento ao Teatro da Cidade de São Paulo, chamado "Mitos de Morte e Renascimento na Cultura Brasileira". O objetivo inicial deles era dar conta dos universos indígenas, afro-brasileiros e mestiços, tendo em vista a realização de um espetáculo teatral no final do trabalho de pesquisa. Logo no início das aulas, a equipe da Companhia Livre percebeu que a tarefa era gigantesca e preferiu, então, se concentrar nos universos indígenas. O assunto tratado pela Companhia se encontrava com a minha tese de doutorado, que eu terminava de escrever naquele mesmo ano[3]: um estudo e uma tradução de cantos rituais dos Marubo, que incluía uma longa série de cantos funerários. Começamos então a selecionar um grande conjunto de narrativas (dos Marubo e de vários outros povos ameríndios), que eu traduzia e trazia para a elaboração teatral. Isso tudo era feito junto com aulas teóricas de antropologia, filosofia e mitologia, cujos objetivos eram os seguintes: 1) problematizar o conceito de identidade e sua impregnação nos universos indígenas; 2) diferenciá-los da ideia de "cultura nacional" e de "cultura popular" tendo em vista um estudo de suas especificidades cosmológicas; 3) apresentar modos possíveis de articulação e contrastes entre os registros estéticos ameríndios e ocidentais. O trabalho se transformou no espetáculo "VemVai, o Caminho dos Mortos", que teve ótima recepção de crítica e de público, além de premiações importantes. Neste espetáculo, a dramaturgia foi feita por Newton Moreno, uma livre recriação dos materiais de pesquisa fornecidos e traduzidos por mim. Um dos materiais iniciais era uma narrativa mítica cantada, Kaná Kawã, uma espécie de versão ameríndia do mito de Orfeu, que se destacava por sua beleza singular. Preferimos deixar esse material para um projeto futuro, que se concretizou agora neste espetáculo, "Raptada Pelo Raio".

2. Qual é o contexto original deste mito?

Kaná Kawã é um saiti, uma narrativa mítica cantada por um xamã experiente para os seus parentes. É cantado/contado, portanto, para que os Marubo o memorizem, coisa que nem sempre acontece nos dias de hoje. O mito original é sobre o rapto da alma ou duplo de uma mulher pelos espíritos do raio. O marido da mulher deverá depois fazer uma jornada por diversos patamares do cosmos para resgatar a alma de sua esposa. Após fazer uma batalha com o povo-raio, ele acaba por trazê-la de volta, mas ela sempre retorna à casa dos raios, tão logo chega à terra dos humanos. Depois de três idas e voltas, a alma da mulher começa a se desfazer: na terra, os parentes do marido haviam cremado o cadáver, o que interfere diretamente na condição da alma do morto e conduz, assim, ao desfecho infeliz da história. A narrativa é sobre temas diversos: oferece uma reflexão sobre as práticas de canibalismo funerário outrora realizada pelos Marubo (ingestão das cinzas do cadáver), que compromete o destino póstumo dos mortos. É também um mito sobre raptos de mulheres e dinâmicas de retaliações entre povos ou coletivos vizinhos (sejam eles visíveis ou invisíveis, isto é, espíritos), além de apresentar uma espécie de descrição narrativa da cartografia mítica marubo. O mito apresenta, assim, uma reflexão sobre os dilemas da aliança e da relação com povos estrangeiros, entre os quais os próprios brancos, que aparecem em um determinado momento da narrativa original. Todo mito é uma forma ativa de pensamento: ao ser contado, ele faz com que as pessoas reflitam sobre os seus temas e estabeleçam conexões com toda uma série de outras narrativas afins.

3. Como se deu o seu contato com este mito?

Meu primeiro contato com este mito surgiu na seguinte circunstância: certa noite, o xamã Armando Cherõpapa dizia que os espíritos do raio andavam de ônibus e automóveis por longas avenidas de suas cidades. Achei a imagem intrigante e perguntei pela história destes espíritos. Veio esta narrativa acima descrita. De fato, o canto é também uma reflexão sobre os brancos. Ao chegar à casa dos raios, Xamã Samaúma, o protagonista do texto original, convoca uma série de espíritos-pássaro para auxiliá-lo na batalha. Estes espíritos são, na verdade, os que detêm conhecimentos sobre armas de fogo e demais estratégias de guerra que, mais adiante, seriam ensinadas por eles mesmos aos policiais e soldados dos brancos. Os espíritos já possuíam esse conhecimento antes de nós, portanto – e não adianta perguntar se isso não era uma influência do contato, os xamãs dizem que os espíritos sempre conheceram as armas de fogo. O mito recapitula, de alguma forma, as (menos célebres do que deveriam ser) considerações de Lévi-Strauss em "História de Lince": os pensamentos ameríndios possuem um espaço prefigurado para os brancos, através dos quais as transformações sociais podem ser pensadas. Uma pedra no sapato para contrastes engessados entre tradição e modernidade aos quais estamos acostumados: vemos aí (e em vários outros casos) como, no seio do que consideraríamos como claramente "tradicional", está uma reflexão viva (e antiga) sobre a tecnologia dos estrangeiros.


4. Em que consistiu o seu papel exatamente? Como foi o trabalho de dramaturgia?

A partir da tradução realizada por mim do canto-mito Kaná Kawã, que eu batizei de "Raptada Pelo Raio", realizei uma livre recriação para dramaturgia em processo colaborativo com a Cia. Livre. Isso quer dizer que desloquei a tradução original para o registro da dramaturgia, de construção de cenas, diálogos e personagens livremente inspirados na narrativa. Grande parte do texto de dramaturgia é construído em ensaio, ou seja, atende a necessidades da atuação, encenação e cenografia; precisa construir falas, conexões, desenvolvimentos de personagens e demais elementos que não constam no mito original. Precisa, acima de tudo, construir conexões criativas com o público de teatro e com as inquietações dos artistas da Cia. Livre. O trabalho de dramaturgia é, portanto, neste caso, um trabalho de transposição ou de transfiguração criativa de um registro para outro. Para isso, escrevi diversas passagens e falas que não estão no mito, recriei nomes de personagens, das paisagens percorridas pelo protagonista, dos elementos e referências imagéticas. Mantive apenas a estrutura narrativa e a cadência rítmica da tradução do canto, em algumas passagens. Diversos trechos do texto foram também transformados em letras para canções, para que se harmonizassem com a trilha sonora original do espetáculo, composta por Lincoln Antonio.

5. Quais podem ser considerados os principais riscos de uma "tradução" como esta?

É preciso distinguir dois níveis ao menos de tradução: o primeiro, referente ao estabelecimento de um mito em uma versão escrita, que já é uma ‘‘transcriação’’ literária de um texto oral, e o segundo, referente à transposição para dramaturgia. Cada uma das etapas possui desafios distintos. A primeira apresenta o desafio de "transcriar" características de uma poética verbal ameríndia para o texto escrito em forma literária. A segunda deve obedecer à outra forma de desafio: o de transformar uma tradução poética de um canto-mito em uma peça de teatro. Passagens que soam belas aos ouvidos de um leitor silencioso não funcionam necessariamente em uma ação cênica; referências interessantes de uma tradução tornam-se incompreensíveis ou inacessíveis ao jogo teatral, e assim por diante. Nesse caso, a tradução original já passa para outro patamar, sofre propriamente um processo de transfiguração criativa, entra em contato com uma série de cruzamentos de códigos semióticos que dão origem a um espetáculo teatral. Este acaba sendo um produto de hibridização criativa, de encontro criativo de referências. Toda tradução é um risco – tradutore traditore – e tudo é tradução. Sem assumir riscos, não há pensamento e todo pensamento é uma reconfiguração de referências. O conhecimento antropológico é uma tradução dos pensamentos alheios para categorias e dilemas analíticos determinados; a literatura e a criação artística são sempre formas de tradução e de transposição de referenciais múltiplos para uma obra.

6. Que tipo de resultado você pensava em obter ao decidir se engajar neste projeto?

Não se trata de "obter resultados", mas de suscitar debates e de colocar em circulação um conhecimento e um referencial estético – o ameríndio – que se encontra divorciado da cultura letrada urbana no Brasil. Trata-se de tentar superar um estado de infantilismo colonial em que a cultura cosmopolita brasileira ainda se encontra: volta-se apenas para os referenciais euroamericanos e coloca os ameríndios em camisas de força diversas tais como as idéias de "identidade", de "cultura popular", das "simplicidades primitivas", da "baixa cultura", entre outros pressupostos estranhos às características das cosmologias e mitologias que se espalham pelas Américas. Trata-se, em suma, de colocar em pé de igualdade com os nossos clássicos (mas com as devidas diferenças de matrizes ontológicas) as artes verbais e sistemas de pensamento dos povos ameríndios, cuja complexidade tem passado despercebida ou tem sido apenas silenciada nos últimos quinhentos anos. A parceria com uma companhia de teatro, assim como o trabalho de pesquisa em antropologia, implica em levantar a seguinte questão: como lidar com as culturas ameríndias para além do que sugeriram os nossos modernismos? Quais formas de interlocução criativa podemos estabelecer com a imensa diversidade de sentido existente hoje no Brasil? Existem formas diversas de circular e produzir essas questões que precisam ser exploradas, na tentativa de trazer à tona as produções de sentido e de conhecimento que nos cercam.

7. Você consultou os seus informantes Marubo sobre esta empreitada teatral? Como fica a questão dos direitos autorais?

Não tenho informantes, mas interlocutores. Os Marubo com os quais trabalho não conhecem o teatro, mas sabem da importância de circular algumas parcelas de seus conhecimentos no mundo dos brancos. Toda minha pesquisa esteve, desde o início, através de acordos travados com eles, voltada para a publicação de materiais para as aldeias e para o mundo não-indígena. Creio que essa é uma forma de fazer com que este mundo entenda que povos como os Marubo não são imbecis, isto é, que detêm conhecimentos ricos com os quais se devem travar relações de interlocução criativa e intelectual. E isso precisa ser feito através das nossas instituições (teatro, cinema, livros, debates acadêmicos). Todo esse processo de autorização para circulação dos conhecimentos está devidamente registrado e documentado.

O trabalho com a Cia. Livre, no entanto, é uma livre recriação de um material original. Este é um procedimento corrente nas mais diversas criações artísticas – a reconfiguração de referências para a composição de uma obra. Nesse ponto, eu me torno o autor do texto dramatúrgico, que parte de uma referência determinada: no caso, de uma estrutura narrativa mítica que não se restringe aos Marubo, que pode ser encontrada em outros povos indígenas, mas também na mitologia xintoísta, grega, egípcia, e por aí vai. Ainda que a estrutura seja universal, a narrativa original foi porém "atualizada", ganhou vida em um canto específico, que pertence aos cantadores marubo. Eles devem ser considerados então como "autores" ou "detentores" do conhecimento em questão, mesmo que por critérios distintos daqueles sobre os quais se fundaram as relações de copyright e de propriedade privada no Ocidente (bem como de seu inverso complementar, o pressuposto equivocado do "comunismo primitivo"). O conhecimento referente ao mito original chegou até mim através de um acúmulo de relações, experiências, memórias e compromissos: foi repassado pelas únicas pessoas habilitadas a transmitir aquela narrativa, o que constitui um domínio de autoria, mesmo que o conhecimento mítico seja propriamente virtual. Isso tudo é reconhecido pela Cia. Livre, que reserva direitos aos Marubo. Além de minha porcentagem como autor do texto dramatúrgico (que eu de toda forma escolho dividir com eles), uma cota dos eventuais valores gerados pela produção teatral (endividada no presente momento...) é necessariamente reservada aos cantadores marubo, que são considerados como detentores/autores do "material original".

8. Você acha que um trabalho como este poderia representar uma renovação das possibilidades contemporâneas do fazer antropológico?

A relação entre teatro e antropologia não é nova, teve um grande impulso das décadas de 60 e 70 com os trabalhos de Victor Turner, Jerzy Grotowski, Peter Brook, Eugenio Barba, Richard Schechner, entre outros. O encenador inglês Robert Wilson produziu recentemente um grande espetáculo teatral que parte de um ciclo mítico indonésio (I La Galigo). Antes disso, Peter Brook adaptou o Mahabharata para o cinema. Ainda antes disso, toda a cultura de vanguarda da passagem do século XIX para o XX estava voltada para a recriação de referenciais extraocidentais. Todo esse debate está de certa forma fora de moda na antropologia atual: creio que se torna agora possível reavaliar a relação entre teatro, performance e antropologia, ampliando os horizontes já lançados pelos autores acima mencionados. O trabalho realizado com a Cia. Livre não pretende ser, de toda forma, uma renovação antropológica, não é um trabalho de antropologia, mas de criação artística. Parte de um conhecimento que, infelizmente, ainda se restringe à produção de etnologia e o faz circular em um ambiente artístico. Neste ponto, a Cia. Livre é inovadora, tenta superar os vícios modernistas e evolucionistas do senso comum com relação a povos indígenas, toma conhecimento do que se produz em antropologia e oferece um espetáculo original para a cidade. A circulação de um espetáculo teatral se dá por ambientes bastante distintos do conhecimento antropológico – bastante democráticos no caso da Cia. Livre – e representa portanto uma contribuição importante para a sociedade e a cultura brasileiras.

9. Parece haver, recentemente, um aumento da presença do xamanismo na cultura popular, seja cinema, vídeo, poesia, arte, música. Você acha que este espetáculo pode ser entendido dentro deste contexto?

Não foi exatamente essa a minha intenção, muito embora outros possam assim interpretar o espetáculo. Eu queria apenas lidar com um texto ameríndio da mesma maneira que se costuma fazer com qualquer outra referência de cultura, tal como Tchekov, Tennessee Williams ou Eurípedes. Em outras palavras, tratei de traduzir um texto (e, em seguida, de transportá-lo para a dramaturgia) apenas porque ele me parecia interessante, belo, carregado de lirismo, mas também de estranhamento e de originalidade. Porque ele era potente do ponto de vista poético, e não porque ele se encerrava em alguma temática, tal como a cultura popular, as culturas indígenas ou algo assim. Agora, não sei se eu concordo com a sua afirmação na pergunta: acho que, infelizmente, essas peças geniais do repertório humano tem sido negligenciadas. Elas permanecem ainda desconhecidas, pouco estudadas, mal traduzidas, e sua presença na cultura cosmopolita (cinema, teatro, literatura etc) é ainda muito tímida.

10. O espetáculo parece buscar paralelismos entre o universo indígena e o nosso. Isto não pode acabar por reduzir um pouco a força do estranhamento que a alteridade indígena tem a capacidade de nos causar?

O espetáculo não busca paralelismos, busca dissonâncias. Ele é, acima de tudo, um laboratório, uma experiência de entrecruzamento de informações. Como eu disse acima, os próprios Marubo fazem reflexões sobre os "modernos" através do pensamento mítico – o vício da oposição entre mito e modernidade é, portanto, nosso. Podemos ter sido mais ou menos felizes com relação à tentativa de explicitar ou de problematizar essas dissonâncias (cosmológicas, no caso) – algo que passa pelas reações e expectativas do público, pelo repertório criativo dos atores, da cenografia, da direção e do dramaturgo. Um material original como este pode receber diversas opções de interpretação criativa e a aproximação com "o contemporâneo" é sem dúvida arriscada, pode conferir uma inquietação ao espetáculo ou se tornar clichê. Ainda estamos testando e aprimorando essa aproximação, que se tornou necessária quando começamos a perceber que o espetáculo estava ficando delirante demais, construído em cima de referências que seriam imediatamente interpretadas como surreais pelo público, oferecendo, também, uma outra margem para distorções ou enfraquecimentos da "potência de estranhamento" dos referenciais indígenas. Mas vale lembrar dessas duas ressalvas: os índios realizam reflexões sobre o "moderno" ou "não-indígena" que estão presentes no mito original em que se baseou o espetáculo; o espetáculo é uma livre recriação, para a qual decidimos selecionar um eixo que nos parecia premente e capaz de realizar uma comunicação com o público: a relação entre vivos e mortos, a reflexão sobre os limites do humano e as distintas elaborações da finitude por nós e por outrem. Esse foi o ponto de aproximação entre os dois referenciais. A opção pode servir como referencial para outras interpretações futuras que, espera-se, venham a ser realizadas não apenas pela Cia. Livre.

11. Quando assisti ao espetáculo notei que grande parte do público era ligado a grupos com o Santo Daime e novas vertentes urbanas ayahuasqueiras. Você acha que o espetáculo atraiu um tipo de público particularmente interessado no uso da ayahuasca?

Existe uma certa relação entre o uso da ayahuasca e o teatro de grupo produzido na cidade São Paulo. Basta lembrar que, quando o Teatro Oficina encenou as Bacantes de Eurípedes, uma boa parte da equipe participava do espetáculo após ter tomado ayahuasca. Como a Cia. Livre é uma das companhias mais reconhecidas do teatro de grupo na cena brasileira contemporânea, então é natural que tal público tenha aparecido para ver a peça. Mas não creio que ele seja majoritário, o público tende a ser composto por pessoas simplesmente interessadas em teatro. Até onde eu sei, não houve nenhuma repercussão específica relacionada à ayahuasca sobre o espetáculo, até porque ela não é o elemento central de tal projeto. O que houve, sim, foi uma tentativa de encerrá-lo na "questão" indígena, derivada de uma recepção talvez ainda imatura para perceber que as poéticas indígenas, como eu dizia, podem ser abordadas simplesmente assim, enquanto fatos artísticos.

12. Como você vê a expansão do interesse ocidental pelo xamanismo amazônico em geral e pela ayahuasca em particular?

Penso que todo interesse pelo xamanismo amazônico e pela ayahuasca é algo fundamental, tendo em vista, como dizia Serge Gruzinski, a "colonização do imaginário" pelo paradigma ocidental que ainda vigora neste lado do Atlântico. Em outros termos, tal interesse tende a ampliar o horizonte de experiências e conhecimentos para as diversas sociedades humanas e, de certa forma, a colaborar para a diversidade de concepções de sentido que tem sido silenciada pelo consenso global da cultura euroamericana. Por outro lado, é claro que existem processos de reificação, mercantilização e de distorção dos conhecimentos tradicionais amazônicos, já que o ponto de vista estrangeiro (e sobretudo o da classe média urbana letrada) costuma ser um tanto quanto afoito em seu modo de se relacionar com a experiência alheia. Entenda-se: a relação (especificamente com povos indígenas) costuma ser realizada mais de modo superficial ou idealizado, na tentativa de buscar respostas rápidas a curiosidades e angústias unilaterais, do que a partir de uma interlocução, convívio ou encontros efetivos, aprofundados. O xamanismo amazônico é uma coisa complexa, milenar, dotada de uma configuração ontológica radicalmente distinta da base de pensamento e de experiência ocidental. Não é algo que se compreende ou se acessa de uma hora para outra e, muito frequentemente, o que se faz é atualizar uma série de pressupostos que vêm desde o modernismo e chegam até a contracultura das décadas de 60 e 70. Ou seja, o xamanismo indígena se transforma em uma metáfora para nossos dilemas (a reintegração com a natureza, a redescoberta de si, a religação com uma totalidade perdida, a superação dos problemas derivados da neurose e do solipsismo, entre outros), ao invés de chegar a ser entendido através daquilo que ele tem de original e específico. E as coisas se tornam ainda mais confusas quando os próprios índios aprendem a operar através das nossas categorias e a disseminar um xamanismo genérico (baseado, por exemplo, no léxico da natureza) muitas vezes distinto daqueles que era (e é) produzido por seus parentes mais velhos ou pelos antepassados. Ainda mais complicada a coisa se torna, como eu dizia, quando esse xamanismo genérico se transforma em produto e circula em um ambiente cada vez mais próximo ao mercado. Mas não quero parecer (apenas) pessimista com essa análise: ocorre também um fenômeno de hibridização cultural que pode ser bastante interessante, que costuma produzir experiências rituais um tanto quanto antropofágicas bastante cativantes. Uma espécie de barroquismo ayahuasqueiro que me interessa muito.

13. Você pode explicar melhor?

A questão da ayahuasca propriamente dita me parece gerar outro conjunto de problemas. Não pretendo julgar a experiência alheia com o sagrado, pois acho que isso extrapola a ordem do discurso e da análise de processos culturais. Toda experiência com o sagrado é válida por si própria e, nesse ponto, talvez não importe tanto assim se o sujeito está dentro de um ritual conduzido por um velho xamã no meio da floresta ou por um suposto xamã urbano. Eu mesmo já tive experiências fortíssimas com a ayahuasca em São Paulo que, algumas vezes, me levaram tão longe quanto as da floresta. E isso não me parecia estar relacionado com as pessoas que conduziam o ritual. Com isso eu quero dizer que a experiência com a ayahuasca é extremamente pessoal. É uma coisa misteriosa e poderosa; algo que, em certa medida, ultrapassa as próprias condições rituais em que uma determinada pessoa pode se encontrar. Ela é um aglutinador e um dispersor de mundos, um canal para fazer com que o universo incida em você e para que você se multiplique no universo. Ela é, portanto, algo que não se detém nos problemas mais ou menos bem resolvidos de hibridização ou de distorção de tradições.

Agora, quando se trata de produzir discursos e de reproduzir processos a partir (ou em nome) da matriz alheia (o xamanismo ameríndio), a coisa se torna mais complicada. E isso porque, muitas vezes, os referenciais ocidentais tendem a mitificar as tradições indígenas e não percebem um dos sentidos mais interessantes que a própria ayahuasca tem para as cosmologias amazônicas, nas quais ela costuma ser considerada como um comutador de mundos. Não por acaso, a ayahuasca é descrita como o cinema da floresta; ela é algo que pertence justamente às experiências radicais do xamanismo com certa diplomacia cósmica e com a alteridade, e não a uma suposta experiência rousseauista do estado de natureza. Muitos de seus rituais, como bem mostrou o antropólogo Peter Gow[4], foram inclusive transformados através de um uso ribeirinho do cipó, que depois se acopla novamente no interior de cosmologias indígenas da Amazônia peruana. Ou seja, lá onde um ocidental espera pela tradição pura, por uma espécie de bálsamo primitivista, ocorre na realidade um processo complexo de tradução e de invenção...

14. Alguns etnólogos parecem ridicularizar a apropriação nova Era do uso indígena da ayahuasca. Ao mesmo tempo, estes pesquisadores frequentemente participam de rituais durante a sua pesquisa de campo na Amazônia. Isto não representaria uma espécie de síndrome de superioridade e exclusivismo de alguns antropólogos, que se acham “muito diferentes” de seus pares urbanos, mas, com efeito, estão muito distante dos significados nativos atribuídos à experiência?

Não sei dizer quem andou ridicularizando tais apropriações, mas imagino que tal coisa possa ter acontecido. Agora, um bom antropólogo é, por definição, aquele que a priori toma qualquer experiência humana como algo complexo, denso e passível de ser investigado. Porque o xamanismo new age seria menos intrigante (de um ponto de vista antropológico) do que qualquer outra forma de ritualização? Há diversos processos de retradução e de torção de categorias aí envolvidos que merecem ser investigados com mais profundidade e que, talvez, estejam sendo desconsiderados por preconceito. Por outro lado, os etnólogos são mesmo aqueles que, via de regra, estabelecem as relações mais sistemáticas, duradouras e intensas com os povos indígenas, produzida ao longo de anos de dedicação frequentemente árdua e militante. Isso quer dizer que eles têm sim autoridade para analisar processos culturais e para separar o joio do trigo quando se pretende falar a torto e direito de xamanismo. Eles têm autoridade, veja bem, para falar sobre processos culturais de mediação – pois sobre o xamanismo, em última instância, quem fala são os próprios índios. Negar essa autoridade implica em obscurantismo, em dar um tiro no pé de quem deseja de fato conhecer os complexos processos de mediação envolvidos nos transportes e recriações do xamanismo, para os quais os (bons) etnólogos talvez ainda sejam as pessoas mais habilitadas. Note-se, aliás, que a etnologia tem sido responsável, inclusive, por garantir o direito à sobrevivência dos próprios povos que pensam e produzem o xamanismo, desde o que se refere à proteção das suas terras até de seus conhecimentos tradicionais. Desse ponto de vista, eles são sim muito diferentes de seus pares urbanos (tão diferentes quanto um economista é de um advogado), algo que nem sempre é reconhecido como deveria.

[1] Uma versão parcial deste texto foi publicada em: Espirais do mito e do teatro: entrevista com Pedro Cesarino. Trópico, UOL, 28 de junho de 2009. Disponível em: http://p.php.uol.com.br/tropico/html/textos/3093,1.shl

[2] Antropóloga, Pesquisadora Associada do Instituto de Psicologia Médica da Universidade de Heidelberg e Pesquisadora do Núcleo de Estudos Interdisciplinares sobre Psicoativos – NEIP (www.neip.info).

[3] Cesarino, Pedro Niemeyer. Oniska: a poética da morte e do mundo entre os Marubo da Amazônia ocidental. Tese de Doutorado em Antropologia Social, Museu Nacional/UFRJ, 2008.

[4] Gow, Peter. “River People: Shamanism and History in Western Amazonia”, in: Thomas, Nicholas e Humphrey, Catherine (orgs.). Shamanism, History and the State. Ann Harbor, The University of Michigan Press, 1996, pp. 90-113.



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