Psicodélico: As religiões ayahuasqueiras, patrimônio cultural, Acre e fronteiras geográficas

quarta-feira, 2 de fevereiro de 2011

As religiões ayahuasqueiras, patrimônio cultural, Acre e fronteiras geográficas

Beatriz Caiuby Labate[1]

Em abril de 2010, a Assembleia Legislativa do Acre concedeu os títulos de cidadão do Acre a Raimundo Irineu Serra (fundador do Santo Daime), Daniel Pereira de Mattos (fundador da Barquinha) e José Gabriel da Costa (fundador da União do Vegetal) (ALEAC, 2010). Três anos antes, em abril de 2008, essas três vertentes religiosas haviam entrado com um pedido de reconhecimento da ayahuasca como patrimônio cultural imaterial brasileiro junto ao Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN), para o qual ainda aguardam resposta (Queiroz et. al, 2008). Em setembro de 2006, as instalações da vertente do Santo Daime, denominada Centro de Iluminação Cristã Luz Universal – CICLU-Alto Santo foram tombadas como patrimônio histórico e cultural do Acre por um decreto do governador Jorge Viana e do prefeito Raimundo Angelim (Labate & Goldstein 2009). Este processo representa uma importante conquista na história dos grupos ayahuasqueiros, que têm sido, desde a sua origem, frequentemente perseguidos (MacRae 2008 e 2010; Goulart 2004; Labate 2005). A relação destes grupos com o poder público do Acre e a transição da ayahuasca do estigma de droga perigosa para status de patrimônio cultural regional e nacional representam uma importante transformação, e muito pouco foi escrito sobre isto até o momento.

Apontarei aqui alguns dos principais elementos do processo que levou à concessão dos títulos de cidadão acreano a Mestre Irineu, Frei Daniel e Mestre Gabriel. Refletirei sobre como o reconhecimento do patrimônio cultural está ligado à seleção de determinados aspectos do repertório cultural e simbólico de cada grupo para fins de representação pública. Tomarei como foco, sobretudo, as narrativas sobre a origem de um dos principais atores deste movimento, o Centro Espírita Beneficente União do Vegetal – CEBUDV, ou UDV. Especularei aqui, por um lado, porque a UDV recebeu estas honrarias oficiais no estado do Acre, e não em Rondônia, onde possui sua base histórica. Por outro lado, tentarei entender por que a vertente do Santo Daime conhecida como linha do Padrinho Sebastião (Sebastião Mota de Melo), formalmente designada Igreja do Culto Eclético da Fluente Luz Universal Patrono Sebastião Mota de Melo – ICEFLU (o antigo Centro Eclético da Fluente Luz Universal Raimundo Irineu Serra – CEFLURIS), até o momento tem sido excluída deste processo.

A associação orgânica entre UDV e a história do estado do Acre, assim como a exclusão da vertente daimista da ICEFLU do panorama da história e cultura acreanas é um fato novo e chama a atenção. A UDV esteve classicamente associada ao estado vizinho de Rondônia, ao passo que a ICEFLU ao Acre. Até pouco tempo, o imaginário popular nacional a respeito da origem das religiões ayahuasqueiras poderia ser resumido da seguinte maneira: o Santo Daime (nas vertentes genericamente denominadas de linha do Alto Santo e da ICEFLU/CEFLURIS, compostas por diversas subdivisões internas) e a Barquinha eram vistos como originários do Acre, ao passo que a UDV era considerada natural de Rondônia. Esta divisão geográfica, que aproximava os conjuntos do Santo Daime e da Barquinha em contraste com a UDV, estava ligada a outra, de ordem simbólica. Enquanto Frei Daniel fora discípulo de Mestre Irineu, e no Santo Daime e na Barquinha se fala em daime e daimistas, a UDV era uma vertente com um mestre independente, que adota a denominação vegetal ou hoasca, e cujos discípulos são hoasqueiros. Tais classificações presentes no campo ayahuasqueiro brasileiro oscilam dependendo do contexto e do interlocutor (Labate 2004; Goulart 2004), e estão nos últimos anos passando por uma reorganização. Vejamos como a origem da UDV foi tradicionalmente descrita na literatura, até o seu surgimento recente no debate público como uma das “religiões ayahuasqueiras acreanas” (“Ayahuasca: IPHAN”, 2008) ou “centros tradicionais acreanos” (Neves, 2008).

Estudiosos como Afrânio Patrocínio de Andrade (1995), Sérgio Brissac (1999) e Sandra Goulart (2004) afirmam que, entre 1950 e 1965, o Mestre Gabriel transitou entre Porto Velho e os seringais da região. Conta-se que ele teria bebido o vegetal pela primeira vez no seringal Guarapari, fronteira com a Bolívia, em 1959. Neste mesmo ano, ele teria feito a sua primeira viagem à Vila Plácido (atual Plácido de Castro), no Acre. A fundação da UDV teria se dado em 22 de julho de 1961 no seringal Sunta, data conhecida como Recriação da União do Vegetal. Em 1962, o Mestre Gabriel teria se reunido com os 12 Mestres de Curiosidade em Plácido de Castro, os quais teriam declarado que ele era o Mestre Superior. Em 1º. de novembro de 1964, o líder da UDV teria Confirmado a União do Vegetal no Astral Superior e no início de 1965 teria se mudado para Porto Velho. Note-se que, nesta época, em 1964, já existia em Porto Velho um grupo de seguidores daimistas ligados ao Mestre Irineu, posteriormente organizado como centro e batizado Centro Eclético de Correntes da Luz Universal - CECLU, fundado sob a responsabilidade do Mestre Virgílio Nogueira do Amaral (Cemin 1998; Goulart 2004). Conta-se que alguns discípulos do Mestre Gabriel teriam frequentado este grupo. Paralelamente, estima-se que o Padrinho Sebastião, que tomara daime pela primeira vez em 1963 na Barquinha e pela segunda em 1965 com o Mestre Irineu, começava a realizar seus primeiros trabalhos de hinários na Colônia Cinco Mil, nos arredores de Rio Branco, em 1969 (Eduardo Bayer, comunicação pessoal, julho de 2010), fundando oficialmente o antigo CEFLURIS em 1974 (MacRae 1992; Goulart 2004). Em 1967, ainda em Porto Velho, a UDV elaborou seu primeiro estatuto e, em 1970, adotou seu atual nome. No ano seguinte, o Mestre Gabriel faleceu. Entre o fundador da UDV ter tomado a ayahuasca pela primeira vez e desencarnado passaram-se apenas doze anos.

Vamos tomar o ano de 1961 como a data de criação da UDV, que ocorreu no que tem sido chamado até hoje de seringal Sunta. Típica região de fronteira, com identidade híbrida, o seringal Sunta foi tradicionalmente descrito na literatura como sendo fronteira com a Bolívia, sem enfatizar, contudo, que está localizado do outro lado da fronteira. Segundo um mapa que obtive do antigo Território Federal do Acre, de 1917, por João Alberto Masô, que indica os nomes dos seringais de forma mais efetiva que os mapas recentes, provavelmente o seringal Sunta é o Assunta, grafado em espanhol como Asunta. O mapa, como se pode ver abaixo, também indica os seringais Guarapari ou Guarapary e Orion, locais nos quais o Mestre Gabriel trabalhou.

De acordo com pesquisa de campo preliminar que realizei na região com a colaboração de informantes locais, “Assunta” deriva de “Nossa Senhora da Assunção” ou “Nuestra Señora de la de Asunción”, nome atribuído a toda a região onde o seringal Sunta/Asunta se localizava. Para se chegar lá, é necessário cruzar o rio Abunã, que marca a fronteira entre Brasil e Bolívia. A cidade mais próxima é Plácido de Castro, no Acre, localizada a quinze quilômetros por terra e dezenove quilômetros por água. Ou seja, a UDV foi fundada em terras bolivianas. Esta informação, até onde eu saiba, não aparece na literatura especializada no assunto. Do ponto de vista local, entretanto, a origem boliviana é conhecida. Por exemplo, um dos núcleos da UDV em Candeias do Jamari (RO), por ocasião da comemoração de um de seus aniversários, produziu um cartão com uma foto do Mestre Gabriel contendo no verso uma breve história da UDV onde se afirmava que ela foi criada na Bolívia. Mas, a origem geográfica da UDV não repercutiu na representação pública e nacional que se faz dela. Pode-se pensar que isto está ligado ao fato de os grupos ayahuasqueiros terem construído sua identidade como religiões genuinamente brasileiras (Labate & Pacheco 2005 e no prelo).

Vale lembrar, de qualquer modo, que a região do antigo seringal (A)Sunta (atualmente uma fazenda) é povoada, sobretudo, por brasileiros, e lá se fala português. Os habitantes destas paragens não se consideram bolivianos, mas brasileiros; o registro das crianças faz-se em Plácido de Castro. A maior parte das suas relações econômicas e sociais se dá com o Acre, sobretudo Plácido de Castro. Assim, do ponto de vista cultural, pode-se afirmar que esta área é acreana. Neste sentido, a UDV teria laços ligados à história do Acre – aspecto justamente que parece vir ganhando cada vez mais destaque no recente processo de seu estabelecimento como patrimônio cultural acreano.

Outra questão que se coloca, mais importante do que a origem geográfica, é que, embora tenha sido criada na região de fronteira do seringal Sunta, a UDV começou a se desenvolver como instituição religiosa e adquiriu estrutura sócio-jurídica em Porto Velho, onde foi consolidado o seu primeiro quadro de mestres. Foi em Porto Velho que o grupo inaugurou sua sede histórica, e foi a partir daí e de Manaus (onde posteriormente foi fundado o primeiro núcleo), que este movimento religioso ganhou o mundo. Porto Velho foi a Meca da primeira geração de hoasqueiros dos grandes centros urbanos do centro-sul do país em busca de suas remotas origens no norte (Lodi 2010, 2004), e continua sendo visitada por discípulos nacionais e internacionais. Ainda que pareça haver, no âmbito interno da UDV, uma disputa entre uma corrente que advoga uma origem mais associada aos seringais, e outra que acentua a estruturação do grupo na cidade de Porto Velho, na qual não entrarei aqui, a UDV historicamente se representou mais como sendo brasileira e de Porto Velho, e não boliviana ou do Acre. Isto não significa, contudo, que a UDV tenha laços políticos mais fortes com o Estado de Rondônia.

Do ponto de vista político, o Estado do Acre é mais amigável às religiões ayahuasqueiras do que o de Rondônia. Em Rondônia, apesar de também existirem, além da UDV, grupos da Barquinha e do Santo Daime, o governo não tem interesse em sublinhar a existência de uma autêntica tradição ayahuasqueira. O interesse do governo do Acre na ayahuasca se dá em função de vários fatores, e seria difícil aprofundar todos aqui. Num primeiro momento, observa-se que o Santo Daime é mais antigo, desenvolveu-se no Acre três décadas antes do que a UDV, em Rondônia. Por outro lado, enquanto o Mestre Irineu possuía fortes relações de amizade e respeito com importantes personalidades do poder público acreano - por exemplo, com os governadores Guiomard Santos e Jorge Kalume, o coronel Fontenele de Castro, o deputado estadual e federal Wildy Viana das Neves (pai de Jorge Viana) –, o mesmo não pode ser dito com relação ao Mestre Gabriel e às autoridades de Rondônia.

De um ponto de vista histórico mais amplo, devemos lembrar que a colonização do Acre foi bem diferente da de Rondônia. Rondônia, território até 1982, pertencia ao Brasil no início do século XX, enquanto o atual território do Acre, elevado a categoria de estado em 1962, pertencia à Bolívia. O Acre brasileiro formou-se a partir do enfrentamento entre migrantes nordestinos, sob a direção de patrões (também migrantes) e bolivianos ou peruanos. Até a década de 1970, o Acre era tido como território de seringais, habitado por seringueiros nordestinos e soldados, cultuando a “Revolução Acreana”. Na década de 1970, os índios começaram a emergir como figuras vivas na vida do Estado, ao mesmo tempo em que sindicatos e movimentos populares transformaram profundamente a vida cultural do estado, como foi o caso de Chico Mendes (Carneiro da Cunha & Almeida, 2001 e 2002). Pode-se dizer que a partir de então se constitui uma autoconsciência “acreana”, que incorpora seringueiros, índios e também religiões locais como parte integrante de uma tradição própria – em nome da qual os “acreanos” reagiram à invasão dos colonos, fazendeiros e especuladores vindos do centro-sul do país. Já em Rondônia, com a abertura das novas estradas na década de 1970, os novos colonos chegaram antes, em um período em que os seringais já não tinham a importância no Acre até a década de 1970. Rondônia não teve, portanto, a mesma aglutinação cultural “nativista” que marcou o Acre, estado auto-identificado pela idéia de que “lutou para ser brasileiro” e que “combateu os sulistas” ou, noutras palavras, onde há uma valorização do local, do tradicional e do nativo.

Os três últimos governos do Partido dos Trabalhadores (PT) no Acre, posteriormente, ajudaram a edificar uma identidade acreana, ao qual se associou o Daime, ou as religiões ayahuasqueiras “acreanas”. Este processo deve ser entendido à luz de um forte estreitamento dos laços de amizade e políticos, sobretudo de lideranças do Alto Santo, com esses governos do PT. No plano estadual, ocorreram dois mandatos de Jorge Ney Viana Macedo Neves (Jorge Viana), entre 1999 e 2002 e entre 2003 e 2006; atualmente, o estado é governado por Arnóbio Marques de Almeida Júnior (Binho Marques), cujo mandato se iniciou em janeiro de 2007 e tem duração prevista até dezembro de 2010. Enquanto Jorge Viana conheceu o Mestre Irineu na infância, através do contato deste com seu pai (citado acima), Binho Marques tomou daime algumas vezes no Alto Santo no final dos anos 80 e começo dos 90 (Antonio Alves, comunicação pessoal, julho de 2010). No plano municipal, Jorge Viana foi prefeito de 1993 a 1996; depois o PT foi derrotado duas vezes nas eleições municipais, e retomou o poder com o atual prefeito Raimundo Angelim, que está em seu segundo mandato: o primeiro se deu entre 2005 e 2008, e o segundo iniciou-se em 2009 e se encerrará em 2012. Um dos principais personagens da aliança Daime - governo é Antonio Alves (Toinho Alves), membro há mais de vinte e cinco anos do CICLU-Alto Santo, e espécie de porta voz do grupo. Ele foi presidente da Fundação Garibaldi Brasil durante o primeiro mandato municipal de Jorge Viana, presidente da Fundação de Cultura e Comunicação Elias Mansour durante o primeiro mandato estadual de Jorge Viana, e atualmente é assessor de cultura de Binho Marques. Toinho Alves foi ideólogo do conceito de “florestania”, fundamental no governo petista no Acre (Labate, 2009b).

Outros personagens importantes no processo de articulações em torno do patrimônio cultural, e com alguma influência política no cenário local, são o procurador de justiça Cosmo Lima de Souza e, sobretudo, o juiz federal Jair Araújo Facundes, membros de uma outra vertente da linha do Alto Santo, o Centro Rainha da Floresta. Por hora, vale destacar que a UDV também conseguiu desenvolver ao longo dos anos e mantém, atualmente, ótimas conexões políticas no Estado do Acre, tanto com o poder executivo municipal e estadual, quanto com setores do judiciário e do legislativo.

Os grupos ayahuasqueiros, como se sabe, têm realizado intercâmbios desde meados dos anos oitenta com o objetivo de legitimação social e regulamentação do uso da ayahuasca no país (MacRae 1992, 2008 e 2010; Goulart 2004, Labate 2004 e 2005). Historicamente, a linha do Padrinho Sebastião tem sido, provavelmente, uma das mais polêmicas. Uma parte desta controvérsia envolve uma disputa entre diversos centros da linha do Alto Santo e da ICEFLU em torno da sucessão pelo legado espiritual do Mestre Irineu. A controvérsia principal envolve, contudo, também a Barquinha e a UDV, e se dá devido à associação da ICEFLU com cannabis sativa, utilizada oficialmente no âmbito deste grupo, no passado, sobretudo na Amazônia, e no presente em Amsterdam, com o nome de Santa Maria. Soma-se a isto, uma aproximação deste grupo com valores mais urbanos e da contracultura, distanciando-o de seus pares regionais. Para além das disputas internas deste campo religioso, a ICEFLU foi, provavelmente, a principal responsável em dar visibilidade ao uso da ayahuasca no Acre para o mundo, e sempre esteve associada no debate nacional às tradições populares, religiosas e culturais da Amazônia. Ao menos é assim que tem figurado, como personagem ativo, ao lado da UDV, no processo de legalização da ayahuasca no Brasil e no exterior. Nos últimos anos, observa-se uma acentuação do distanciamento da ICEFLU da cena ayahuasqueira de Rio Branco e uma aproximação progressiva da UDV, Alto Santo e Barquinha, formando uma coesa rede de alianças entre si e com o poder público local.

Alto Santo, Barquinha e UDV – com uma margem que ora se restringe a apenas três centros – Centro de Iluminação Cristã Luz Universal – CICLU-Alto Santo, Centro Espírita e Culto de Oração Casa de Jesus-Fonte de Luz (vertente da Barquinha liderada por Francisco Hipólito de Araújo Neto) e CEBUDV – ora aumenta um pouco, incluindo outros centros da linha da Barquinha e do Alto Santo, têm se consolidado cada vez mais no debate público do Acre, e possivelmente até mesmo nacionalmente, com o status de troncos originais, tradicionais ou raízes ou da ayahuasca. Ao mesmo tempo, a ICEFLU, a despeito de ser tida nacional e internacionalmente, ao lado da UDV, como um grupo ayahuasqueiro tradicional, tem visto seu status de vertente ayahuasqueira não original ser progressivamente instalado. É verdade que a linha do Padrinho Sebastião já era há muito designada, sobretudo pelos centros do Alto Santo, como uma “dissidência”, mas sua imagem como “centro eclético” ou “nova era” – semelhante às demais modalidades urbanas que nasceram nas grandes cidades do país a partir, sobretudo, dos anos 1990 (Labate 2004) – está adquirindo força não só entre os grupos religiosos mas também no discurso dos poderes e agentes políticos locais (cf. Labate 2009a, Labate 2009b, Neves 2008). Para além de eventuais classificações religiosas, o que é relevante destacar aqui é que a linha do Padrinho Sebastião não tem sido convidada a participar dos debates no Acre – ainda que continue como personagem ativo no cenário nacional e internacional. Este isolamento local da ICEFLU é um processo de mão dupla e está ligado também à sua falta de interesse ou capacidade de articulação política em Rio Branco, e sua fragilidade institucional, além de outros fatores que veremos adiante.

É possível testemunhar outras transformações mais ou menos sutis neste movimento em curso de consolidação do bloco Alto Santo, Barquinha e UDV. Um deles é a diminuição do uso do termo Santo Daime no debate público – demasiadamente associado à ICEFLU. Outro é a aquisição recente, pelo Mestre Irineu, de uma espécie de status pan-ayahuasqueiro como pai fundador inaugural dos troncos originais da ayahuasca no Acre e, num sentido mais amplo, do uso da ayahuasca no Brasil. Neste sentido, embora se continue reconhecendo a autonomia e as especificidades da UDV, ela passa a se encaixar, de alguma maneira, no que parece ser um sólido guarda-chuva em cujo topo estaria, no limite, a figura unânime do Mestre Irineu.

Neste panorama, talvez seja possível entender também porque a ICEFLU, excluída da atual configuração política de Rio Branco, cerca de cinco meses antes que o Alto Santo, a Barquinha e a UDV entraram com o pedido de reconhecimento da ayahuasca como patrimônio cultural junto ao IPHAN, encaminhou pedido semelhante para si junto ao governo do Estado do Amazonas (Melo, 2007; Alverga, 2010). É verdade que a ICEFLU foi criada por um amazonense – o Padrinho Sebastião nasceu em 1920, no Alto Juruá – e sua sede central, a comunidade Céu do Mapiá, fundada em 1983, localiza-se em Pauini, no Estado do Amazonas – elementos, aliás, que são citados no próprio pedido encaminhado ao governador amazonense (Melo, 2007). Mas, historicamente, muitos dos debates sobre a ayahuasca envolveram a participação da ICEFLU junto às demais vertentes ayahuasqueiras no Acre. Além disto, geograficamente o Céu do Mapiá está mais próximo de Rio Branco do que de Manaus e histórica e culturalmente a linha do Padrinho Sebastião deita raízes na colônia Cinco Mil, em Rio Branco.

Outros fatores contribuem para o fortalecimento da “linhagem da tradição” e para a separação entre UDV e ICEFLU em categorias diferentes, embora estes dois grupos sejam os mais recentes e tenham se desenvolvido, como vimos, em época histórica semelhante, além de serem os únicos que se expandiram pelo Brasil e pelo mundo, conquistando adeptos entre a classe média urbana e ganhando reconhecimento nacional e internacional como religiões tradicionais da Amazônia. As comunidades populares da ICEFLU estão isoladas em locais distantes no interior da floresta amazônica nos Estados do Amazonas (Céu do Mapiá) e Acre (Céu do Juruá), e atualmente o grupo possui baixa expressão numérica e política em Rio Branco, onde se localizam os principais agentes do processo de articulações em torno do patrimônio cultural e título de cidadão acreano: os diversos centros do Alto Santo, da Barquinha, a Fundação Garibaldi Brasil, a Fundação Elias Mansur e a Assembleia Legislativa. A UDV, diferentemente da ICEFLU, possui agrupamentos religiosos na capital acreana, e os seus núcleos no interior do estado mantêm fortes laços com Rio Branco. Esta vertente, associada nacionalmente ao Estado de Rondônia, também tem sido vista localmente cada vez mais como legítima manifestação acreana, ao lado dos centros mais antigos e consagrados em Rio Branco, o Alto Santo e a Barquinha.

Muito ainda precisa ser estudado a respeito dos bastidores deste processo do patrimônio cultural. Diversas personalidades públicas importantes não foram citadas aqui, como a deputada do PC do B Perpétua Almeida, o professor de antropologia Clodomir Monteiro, o presidente da fundação Garibaldi Brasil Marcos Vinícius Neves e o senador Tião Viana, além de artistas, professores universitários, profissionais liberais, funcionários e gestores públicos relacionados às comunidades ayahuasqueiras que ocuparam ou ocupam postos importantes no estado e municípios do Acre.

Futuras pesquisas precisam investigar em mais detalhe a origem da formação deste bloco dos “centros raízes”, agora consolidado. Um momento marcante deste processo foi a comemoração do centenário da morte do Mestre Irineu, em 1992 (Revista do Centenário, 1992). Nesta ocasião, ficou claro que alguns centros do Alto Santo possuíam mais laços com a linha do Padrinho Sebastião do que outros, ao mesmo tempo em que houve uma aproximação da Barquinha com o Alto Santo. Também houve uma transformação histórica da relação da UDV com os demais grupos ayahuasqueiros: no passado, ela permanecia mais distante, e os demais grupos eram descritos, com maior frequência, como Mestres de Curiosidade (Goulart 2004; Andrade 2004), isto é, usos equivocados da ayahuasca.

Outro tema ainda pendente é entender o papel da UDV na articulação das atuais alianças políticas no Acre. Sua força política talvez seja bem mais importante do que imaginamos, uma vez que suas ações permanecem bem discretas. Segundo um informante que não quis se identificar, a UDV teria três deputados estaduais e dois federais ligados a si neste estado. Ainda, é preciso mapear em detalhe não só a conexão do Alto Santo com os governos do PT no Acre, brevemente mencionada acima, como também a expansão da sua força no cenário nacional. Em 2006, esta linha ocupou duas (Jair Facundes e Cosmo Souza) das seis cadeiras reservadas aos representantes de todos os grupos ayahuasqueiros do país no Grupo Multidisciplinar sobre a Ayahuasca (GMT Ayahuasca) do Conselho Nacional de Políticas sobre Drogas (CONAD) (MacRae 2008 e 2010); em 2010, três de seus membros (Antonio Alves, Jair Facundes e Cosmo Souza) participaram das audiências públicas que ocorreram na Câmara dos Deputados, em Brasília, para debater o projeto de decreto legislativo do Deputado Paes de Lira que visava proibir o uso da ayahuasca no Brasil (Labate, 2010). Por fim, vale observar, a partir de agora, se a acentuação da distância da ICEFLU do contexto acreano acabará por conduzi-la a uma perda da sua força também no debate nacional, e se este processo ora em curso será acompanhado de uma aproximação da linha do Padrinho Sebastião com vertentes menos ortodoxas do Alto Santo e grupos neo-ayahuasqueiros urbanos.

Argumentei aqui ser importante atentarmos para a dimensão política e histórica do debate acerca do estabelecimento do patrimônio cultural: esse diz respeito a processos de negociação entre a sociedade e o Estado, e não a um simples título conferido a uma realidade dada de antemão. O reconhecimento do patrimônio cultural é produto de uma construção social e histórica ou, em outras palavras, da disputa entre determinadas versões, onde algumas vencem e outras perdem. Nada disto, é claro, desmerece o valor histórico, cultural e espiritual destes grupos. Pretendi apenas destacar que as identidades religiosas devem ser pensadas de maneira contextual e relacional, e que a atribuição de status de patrimônio cultural envolve múltiplas e complexas relações, as quais vão além de associações simplistas postuladas por certos tipos de discursos em torno da ideia de “tradição”.

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[1] Beatriz Caiuby Labate é antropóloga, pesquisadora associada do Instituto de Psicologia Médica da Universidade de Heidelberg; membro do Grupo Especial de Pesquisa (SFB 619) “Dinâmicas do ritual – Processos socioculturais sob uma perspectiva comparativa histórica e cultural” e pesquisadora do Núcleo de Estudos Interdisciplinares sobre Psicoativos (http://www.ritualdynamik.de; http://www.neip.info; http://bialabate.net)

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