Entre a cruz e a espada: as propostas e os interesses nas atuais iniciativas de alteração da Lei de Drogas
No momento em que o movimento antiproibicionista finalmente alcança seu direito de se manifestar e trazer ao grande público seus argumentos e proposições sobre mudanças na política de drogas, é possível observar diversas movimentações no quadro político brasileiro em relação ao tema. Se por um lado a denúncia da guerra às drogas ecoa em setores da sociedade e a descriminalização passa a ser ao menos aventada, por outro setores conservadores e ou religiosos se aliam ao poder psiquiátrico e preparam investidas a fim de impor retrocessos travestidos de modernização na atual política.
Continuando a série iniciada com o texto A reforma do Código Penal, apresentamos agora análise do Projeto de Lei 7663, apresentado pelo deputado Osmar Terra e que pode fazer o que pra alguns parece impossível: piorar a já péssima lei de drogas brasileira.
2 – Mudanças que pioram a lei de drogas; PL nº 7.663
Enquanto se discute acerca da descriminalização do porte para consumo pessoal na reforma do Código Penal, setores conservadores articulam-se numa investida no campo das políticas públicas de atenção ao “usuário e ao dependente de drogas”. É curioso notar que a ofensiva não se concentra no âmbito criminal da política, mas sim sobre as conquistas e avanços obtidos no âmbito das políticas públicas, seja no que toca ao reconhecimento das estratégias de redução de danos como diretriz da atenção ao usuário e dependente, seja com relação aos preceitos de atendimento introduzidos pela Reforma Psiquiátrica de 2001. De forma ardilosa, setores presentes no parlamento brasileiro, representados pela famigerada “bancada religiosa”, incansáveis na sua cruzada moral, aliaram-se aos interesses do setor empresarial que lucra com a proibição e a setores do capital, sempre preocupados em abocanhar novos mercados, tendo no Estado poderosa ferramenta.
Antes de tudo é importante situar os avanços mencionados no contexto das políticas públicas sobre drogas e de atenção à saúde mental, que se vêem agora ameaçados pelo Projeto de Lei nº 7.663/2010, em trâmite na Câmara dos Deputados.
A Reforma Psiquiátrica brasileira, instituída com a Lei nº 10.216/2001, é um marco no campo do atendimento à pessoas portadoras de sofrimento mental, o que inclui o cuidado com pessoas que abusam de álcool e outras drogas. A história mostra que o sofrimento mental sempre foi tratado nos manicômios à base da exclusão social e da estigmatização. A Reforma Psiquiátrica, que é resultado das lutas do movimento social de trabalhadores e usuários de sistema de atenção à saúde mental, propõe a inversão dessa lógica.
Nesse sentido, a Lei nº 10.216/2001 reconhece o portador de sofrimento mental como sujeito de direitos, preconiza que o cuidado e atenção deve ser feito prioritariamente em liberdade em serviços comunitários de atenção à saúde mental, de acordo com as suas necessidades, devendo ser informado a todo momento que requisitado sobre o seu estado de saúde e tratamento (art. 2º).
A lei reconhece a autonomia do sujeito e determina que a internação de alguém somente será feita em último caso, quando todas as outras formas de cuidado e tratamento se mostrarem insuficientes; além disso, o período de internação deverá ocorrer pelo menor tempo possível, apenas nos momentos de surto (art. 4º).
Deve-se lembrar também que a própria a Lei de Drogas atualmente vigente (a Lei nº 11.343/2006), a despeito de seu regime bélico-penal, traz importantes avanços no campo das políticas públicas de atenção às pessoas que abusam de álcool e outras drogas. Tais avanços, é importante frisar, também são frutos de lutas e representam conquistas do movimento do campo da saúde mental e dos trabalhadores da área da saúde de uma forma geral.
Assim, depois que as primeiras iniciativas de trabalhos norteados pela redução de danos no país serem taxadas por autoridades do sistema punitivo como “indução ao uso de drogas”, acabaram reconhecidas como importante diretriz da política pública de atenção ao usuário e ao dependente de drogas pela Lei nº 11.343/2006.
Nos termos da atual lei, as estratégias de redução de danos configuram pilar fundamental nos eixos de prevenção (arts. 18 e 19), bem como de atenção e reinserção social de dependentes de drogas (arts. 20 a 22). As diretrizes estabelecidas pela atual Lei de Drogas, nesse aspecto, estão em plena sintonia com os princípios e diretrizes estabelecidos tanto pela Constituição Federal (art. 196) ao tratar do direito à saúde, quanto pela legislação infraconstitucional que trata das políticas de saúde: a Lei 8.080/1990, que trata do Sistema Único de Saúde – SUS, bem como pela Lei nº 10.216/2001, a Lei da Reforma Psiquiátrica.
É nesse contexto de avanços político-legais obtidos pelos movimentos sociais no campo das políticas públicas que o PL nº 7.663/2010 investe suas ações.
De autoria do Deputado Osmar Terra (PMDB/RS), o PL é fruto do trabalho desenvolvido por uma comissão especial instituída na Câmara dos Deputados para a formulação de propostas de alteração da Lei de Drogas em face do pânico moral surgido entorno da suposta “epidemia de crack” – difundida, é necessário dizer, pelos maiores beneficiários do PL. A comissão foi instituída no fim de 2011, no contexto do lançamento do Plano de Enfrentamento ao Crack pelo governo federal, e já produziu um relatório (CEDROGA) com o diagnóstico em relação ao uso de drogas no Brasil e a respectiva política pública de “enfrentamento”.
Atenta ao discurso de que a questão das drogas não é um problema criminal, mas sim de saúde pública, as propostas consolidadas neste PL estão voltadas justamente para o campo das políticas públicas, principalmente no que se refere às estratégias e ações de atenção a pessoas que abusam destas substâncias e sua reinserção social.
A primeira questão a se destacar do PL é que ele reacende e aprofunda a confusão conceitual entre as figuras do usuário recreativo/ocasional e daquele que abusa de drogas, algo que a Lei nº 11.343/2006 se não havia superado completamente, ao menos sinalizava um avanço. Um dos maiores avanços da Lei nº 11.343/2006 foi reduzir, ao menos do ponto de vista simbólico, a carga valorativa da “guerra”, do “combate” e da política “anti” na política de drogas#. Isso pode ser observado já nos primeiros artigos da lei, quando tratam dos princípios do Sistema Nacional de Políticas sobre Drogas – SISNAD, bem como das diretrizes e princípios das políticas públicas de atendimento às pessoas que abusam de drogas. Nas propostas formuladas pelo PL nº 7.663/2010 parece haver um verdadeiro esforço no sentido de embaralhar ainda mais essas situações.
Assim, por exemplo, quando a lei atual trata da “atenção e reinserção social de usuários e dependentes de drogas”, trazendo a redução de danos como princípio da política pública (art. 22), o PL propõe a inclusão de dispositivos no mesmo artigo para prever como objetivo da política de drogas a “desaprovação do uso de drogas, ainda que ocasional”, e ainda a “responsabilização adequada do usuário ou dependente quanto às consequências lesivas da utilização de drogas para si e para a sociedade”. Além desse dispositivo, vários outros denotam a mesma intenção de burlar o reconhecimento das políticas de redução de danos como princípio das políticas públicas.
Uma novidade do PL nº 7.663/2010 é a proposta de classificação das drogas em 3 categorias diferentes, levando-se em conta a farmacodinâmica, a farmacocinética e a capacidade da droga causar dependência. A idéia é estabelecer diretrizes diferenciadas de políticas de acordo com cada droga e os seus efeitos. Uma delas diz respeito ao âmbito criminal (a única alteração proposta nesse campo): a proposta de acrescentar como causa de aumento de pena para qualquer crime da Lei de Drogas que envolver substância com “alto poder de causar dependência” (art. 40, VIII). Assim, por via indireta, a comissão prevê aumento de pena para um sujeito enquadrado por tráfico de crack, por exemplo. A pena poderia chegar a 25 anos de prisão (pena máxima de 15 anos, somada ao aumento de 2/3), uma das mais duras da legislação penal brasileira.
Em uma proposta de lei tão ruim, difícil saber o que é pior. Mas certamente entre as piores, está a proposta de mudança nas diretrizes de atendimento à saúde do usuário e dependente de drogas. Subvertendo todos os princípios já previstos na atual Lei de Drogas e na Lei da Reforma Psiquiátrica, a proposta prevê um novo elenco de diretrizes para as políticas de atendimento, dentre as quais se inclui a de “valorizar as parcerias com instituições religiosas” na abordagem de “questões de sexualidade e uso de drogas”.
Ingenuamente, poderíamos perguntar: qual know-how tem as igrejas a oferecer no atendimento de pessoas em temas como sexualidade e abuso de drogas? Trata-se de evidente violação ao princípio do Estado laico contido na Constituição Federal de 1988, além de evidenciar um absoluto contrasenso, considerando que a igreja considera pecado o uso de drogas e a vida sexual fora de seus padrões estreitos.
Considerando a recente inclusão das Comunidades Terapêuticas como entidades conveniadas ao Sistema Único de Saúde – SUS pelo Ministério da Saúde, compreende-se perfeitamente que se trata de uma nova cruzada moral dos setores religiosos reacionários nos poucos avanços obtidos pelos movimentos sociais no âmbito das políticas públicas.
Mas não é só. Aliado aos setores obscurantistas da religião, há a proposta que visa atender aos interesses do capital ligados ao poder psiquiátrico (indústria farmacêutica e de clínicas privadas). O PL nº 7.663/2010 prevê em seu art. 23 que “na hipótese de inexistência de programa público de atendimento adequado à execução da terapêutica indicada, o Poder Judiciário poderá determinar que o tratamento seja realizado na rede privada, incluindo internação, às expensas do poder público.”.
Ou seja, a incompetência e o descaso na efetivação das políticas de atendimento preconizadas pela Lei nº 8.080/1990 (SUS) e pela Lei 10.216/2001 (Reforma Psiquiátrica) – notadamente dos Centros de Atenção Psicossocial Álcool e Drogas (CAPS AD), os leitos em hospitais gerais para situações emergenciais, políticas de redução de danos e consultórios de rua que têm como premissa a liberdade e autonomia do sujeito – agora rendem dividendos para as clínicas privadas e as comunidades terapêuticas que receberão recursos públicos! Temos diante de nós uma proposta de lei que visa à retirada de recursos públicos que deveriam ser utilizados justamente na implantação desses serviços, mas serão, a se efetivar esse descalabro, desviados para a mão das igrejas e das clinicas privadas, representados por setores poderosos e influentes, como é o caso do famoso psiquiatra da UNIFESP, Ronaldo Laranjeira.
Curiosamente, o PL prevê a internação de usuários e dependentes de drogas como uma forma de tratamento. Inicialmente a proposta era de intitular tal providência como “medida protetiva”, mas isso acabou sendo retirado no PL nº 7.663/2010, o que pode sugerir uma tentativa de deixar o dispositivo mais aberto e maleável. A disciplina da internação proposta praticamente repete o que já é previsto na Lei da Reforma Psiquiátrica, elencando os 3 tipos de internação: a voluntária, a involuntária e a compulsória. A estranheza é que se a proposição não acrescenta praticamente nada do ponto de vista normativo ao que já está vigente na Lei nº 10.216/2001, porque então disciplinar a mesma questão na Lei de Drogas?
Entender exatamente os meandros da disputa política que se coloca não é fácil. Mas tudo leva a crer que pode ser uma “brecha legal” para a instalação das drug corts, conhecidas aqui no Brasil sob o nome de “justiça terapêutica”. Vale lembrar que já existe um projeto piloto de “justiça terapêutica” em São Paulo no fórum de Santana por iniciativa do Ministério Público estadual.
As suspeitas a respeito dos interesses contidos nessa proposta de alteração da Lei de Drogas aumentam com outra novidade, essa de caráter administrativo: a regulamentação legal dos conselhos de políticas sobre drogas nas três esferas de governo.
Nem a antiga Lei nº 6.368/1976, nem a passageira Lei nº 10.409/2002, nem mesmo a atual Lei nº 11.343/2006 definiram expressamente a existência e a competência dos conselhos de políticas sobre drogas. A existência de conselhos de políticas públicas, com a participação da sociedade, é diretriz constitucional, mas no que se refere às políticas públicas sobre drogas, esses conselhos sempre foram instituídos e regulados por meio de normas infralegais, ou seja, por meio de decretos do poder executivo.
Atualmente, por exemplo, o Conselho Nacional de Políticas sobre Drogas – CONAD é previsto pelo Decreto nº 5.912/2006, norma essa elaborada exclusivamente pelo Presidente da República a fim de regulamentar a Lei nº 11.343/2006. Segundo o texto do PL nº 7.663/2010, o CONAD, e seus equivalentes nos níveis estadual e municipal, passarão a ter status legal, com competências definidas, principalmente no tocante ao auxílio aos poderes executivo e judiciário na implantação de políticas e aplicação da Lei de Drogas.
O que se percebe nessa proposta é que se por um lado os conselhos atendem aos reclames da Constituição Federal em relação a democratização na formulação das políticas públicas, por outro representam uma instância burocrática que em nenhum governo, nem no mais pretensamente democrático, é verdadeiramente respeitada como instância de deliberação a respeito das políticas públicas. O modo de funcionamento dos conselhos existentes demonstram que, ou eles têm efetiva participação da população e dos movimentos sociais, (caso em que revelam pouquíssimo poder de influência nas decisões governamentais); ou não possuem nenhuma participação popular, sendo mera instância de pressão e lobby coorporativo, situação em que, aí sim, possuem muito poder e influência nas decisões governamentais.
Nesse aspecto, é importante lembrar que o senhor Ronaldo Laranjeira, psiquiatra e professor da UNIFESP, além de ser dono de clínica privada de internação de dependentes de drogas ricos, foi recentemente nomeado como representante da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência – SBPC no CONAD. É o CONAD, pela proposta do PL, quem irá definir como e onde serão implantadas as políticas públicas de atenção ao dependente, o que faz suspeitar que o que está em prática é na verdade a legitimação “democrática” de um verdadeiro golpe nos parcos avanços na política de drogas, bem como nos avanços já duramente conquistados pela Reforma Psiquiátrica.
É bom lembrar que o PL nº 7.663/2010 está tramitando na Câmara dos Deputados em regime de “prioridade”. Nada garante que será aprovado com todas essas mudanças, isso vai depender da correlação de forças. Sabemos, porém, quais são as forças presentes no Congresso Nacional.
Independentemente de seu destino, o texto deste PL revela um nítido deslocamento das disputas no que concerne à política de drogas. Desde o início da guerra às drogas, cem anos atrás, o discurso jurídico de poder tradicionalmente esteve focado no binômio vigiar e punir; agora, no momento em que se vê ameaçado, estrategicamente se volta para o campo da saúde pública para se contrapor aos avanços obtidos na luta social e ao discurso que contesta a política criminal, tendo como lema segregar e tratar. O movimento antiptoibicionsita deve estar atento a isso e se somar às fileiras dos companheiros da Luta Antimanicomial, pois sob os olhares deles somos todos doentes.
Nenhum comentário:
Postar um comentário