Fonte : Fórum
Henrique Carneiro, professor da USP, fala sobre a história do proibicionismo em relação às drogas, dos interesses econômicos que se esconderam por trás dele, e acredita que a mudança dessa política, em todo o mundo, está por vir
Por Mario Henrique de Oliveira
O historiador e professor da Universidade de São Paulo (USP) Henrique Carneiro é referência quando o assunto é drogas. Ele pode discorrer por horas a fio sobre os usos comerciais, medicinais e alimentícios das mais diversas substâncias no decorrer da história da humanidade. Com posição antiproibicionista, o doutor em História Social e autor de diversos livros sobre o assunto, como a Pequena enciclopédia da história das drogas e bebidas e Bebida, abstinência e temperança na História antiga e moderna, é constantemente convidado para dar palestras e participar de movimentos que lutam pela descriminalização das drogas, como foi o caso da Marcha da Maconha, realizada no último dia 19 de maio em São Paulo.
Henrique Carneiro recebeu a reportagem da Fórum na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP. Entre os assuntos abordados estão os diversos usos do álcool e das drogas em geral na História, incluindo alguns momentos curiosos, como o fato de a Constituição americana ter sido escrita em papel de cânhamo, fibra que se extrai da cannabis, planta da qual se produz a maconha. Carneiro também explica os interesses econômicos por trás do proibicionismo e aposta numa mudança de paradigma que já estaria ocorrendo, derrubando a criminalização. Confira abaixo a entrevista.
Fórum – Na sua aula no vão livre do Masp, antes da Marcha da Maconha, o senhor chegou a citar a cannabis como a planta mais importante da história da humanidade, devido aos seus diversos usos, tanto comercial como de outras formas. Desde quando ela é usada e quais são os principais fins a que ela foi destinada?
Henrique Carneiro – A primeira referência segura que temos sobre a cannabis foi encontrada na China, um herbário de mais de 2 mil anos antes de Cristo. Já havia indicações, naquela época, para o uso terapêutico, com finalidade médica. Depois, há registros na Antiguidade Clássica do uso da fibra do cânhamo para a fabricação de vários tipos de tecidos. Mais tarde, isso foi adaptado para os velames e para os cordames dos navios, porque a fibra do cânhamo é a mais longa de todas as fibras vegetais, mais do que o algodão, o linho etc. Além disso, é a mais resistente, sobretudo em relação à deterioração na água do mar. Então, a indústria naval contou com grande utilização dos insumos feitos de cânhamo.
Já no período moderno, temos a utilização do papel. Na revolução gutemberguiana, de 1454 em diante, a grande fonte de fabricação de papel vai ser o cânhamo. Todos os livros e documentos, até os documentos oficiais e o papel-moeda, eram derivados do cânhamo. Eram fibras para roupas, velas, cordas; papel e depois o uso do óleo. O óleo do cânhamo sempre foi muito útil para a iluminação pública, tanto no mundo ocidental como no oriental – daí a famosa lâmpada de Aladim, que era uma lâmpada de óleo de semente de cânhamo. Esse óleo tem também valor nutricional, um conteúdo de aminoácidos muito rico, que pode ser usado tanto na alimentação humana quanto na animal. São diversos os usos que o cânhamo tem através da história, até artístico, pois na época da Revolução Renascentista, as telas eram feitas de cânhamo e as tintas continham o seu óleo.
Fórum – O cânhamo era a principal fonte para a produção de todos esses itens?
Carneiro – No caso do papel, era quase a única, porque havia dois tipos de fabricação de papel: um, era diretamente do cânhamo, e o outro, de tecidos, que eram apodrecidos e depois misturados com água. Era uma forma de reaproveitamento de trapos, mas esses trapos também eram feitos de cânhamo, logo, algo muito importante. Não saberia lhe dizer um número exato, mas o cânhamo era responsável por mais de 90% da produção de papel. As outras fontes alternativas eram quase que experimentais.
Fórum – Você chegou a dizer também que a Constituição americana foi escrita em papel de cânhamo.
Carneiro – Sim, todos os documentos da História Moderna, a Constituição americana, a Declaração dos Direitos Humanos, todos os tratados assinados depois do término das guerras, eram em papel de cânhamo.
Fórum – Nesse sentido, gostaria que o senhor dissesse qual foi o real papel dos Estados Unidos na criminalização da maconha e que interesses econômicos poderia haver por detrás disso.
Carneiro – Os Estados Unidos, na origem da nação norte-americana, incentivaram o plantio do cânhamo como recurso estratégico justamente para ter autonomia na produção naval. Quando eles querem se tornar independentes da Inglaterra, precisam ter acesso a todos os insumos básicos da indústria, e o cânhamo era um deles. Houve uma lei obrigando todos os fazendeiros norte-americanos a plantarem cânhamo. Por exemplo, George Washington, primeiro presidente da história dos Estados Unidos, era um conhecido plantador de cânhamo, há vários registros em seus diários dizendo, inclusive, que ele ia separar as plantas fêmeas das machos, o que mostra também que ele estava interessado na obtenção da resina, porque essa separação mantém as fêmeas produzindo mais resina.
Havia uma extensa utilização do cânhamo para fins econômicos nos Estados Unidos. O uso psicoativo, curiosamente, não era muito divulgado nem muito conhecido, tendo ficado quase despercebido. Mas, depois do século XIV até o início do XX, ele se incorpora a todas as farmacopeias, com dezenas de utilidades terapêuticas para o cânhamo. Estou falando cânhamo, mas poderia falar maconha, cannabis, qualquer um dos termos. Era usado para combater males do estômago, seu óleo era muito usado para rachaduras de pele, tinha inclusive um uso específico para seios rachados [desidratados].
Esses usos começam a perder prioridade quando, no início do século XX, surge o papel de celulose e a fibra sintética, um subproduto da indústria petroquímica desenvolvido pelos alemães, que depois passou para os Estados Unidos como parte das indenizações que o Tratado de Versalhes estabeleceu no fim da Primeira Guerra Mundial. Então, eles passam a ter uma série de restrições à matéria-prima concorrente, e começaram a ser feitas campanhas contra essa matéria-prima que, no fundo, tinha um sentido econômico mas se revestia de um aspecto ideológico, que era acusar a planta de ser “enloquecedoura” e que levava as pessoas, principalmente os imigrantes mexicanos, a se tornarem criminosas, estupradoras, enfim. Houve também uma pressão, sobretudo da Dupont, uma empresa americana de fibras sintéticas que depois vai ter relação com Harry Aslinger, o homem do FBI responsável pelo departamento de narcóticos que vai se dedicar à perseguição da maconha e de outras drogas.
Fórum – A criminalização da maconha nos EUA começa em função de seu papel econômico, com seu uso psicoativo como pretexto?
Carneiro – Isso. Como pretexto para combater toda a cadeia industrial do cânhamo. E, mais importante do que a fibra sintética desenvolvida pela Dupont foi o aparecimento do papel de celulose, quando surge uma conexão com o principal grupo da imprensa americana dos anos 1920 e 1930, de William Randolph Hearst. Ele tinha enormes plantações que usava para a produção de papel no México, e elas foram expropriadas pela Revolução Mexicana. Foi aí que ele iniciou uma campanha, por meio de seus órgãos de imprensa, que estigmatizou o cânhamo como uma espécie de legado maléfico da tradição mexicana. Essa campanha, de fundo econômico, ganha força, inclusive por uma característica da sociedade norte-americana da época, que queria encontrar bodes expiatórios para explicar a crise social que era vivida.
Fórum – Chegando nesse ponto da crise social, você chegou a traçar um paralelo entre a proibição da maconha e das drogas e a Lei Seca que os Estados Unidos viveram no começo do século passado, sobre a fonte de dinheiro que o Estado perdia com a ilegalidade do álcool.
Carneiro – O álcool foi proibido nos Estados Unidos em 1919 por uma emenda à Constituição, fruto de uma campanha que existia desde o século XIX e que fazia confluir vários interesses, como os dos puritanos de um grupo protestante ligado ao metodismo, que propunha restrições e inclusive a proibição do uso do álcool. Havia também a pressão do setor industrial, sobretudo de Henry Ford, que via no álcool uma forma da degradação da mão de obra e perda da capacidade produtiva. A tudo isso se somam os elementos de controle político e social que vão sendo aperfeiçoados nessa fase de expansão do industrialismo, em que há uma espécie de perseguição a todas as formas de lazer e atividades recreacionais. É uma condenação puritana ao prazer.
Essa lei se estende até 1933, e seu final está tão ligado ao esgotamento intrínseco da legislação que se mostrou ineficiente em diminuir o consumo. Ao contrário, houve uma expansão da atividade clandestina da produção e do comércio de álcool, pois, com a proibição, seus preços subiram, e isso criou uma série de redes criminosas, como a máfia, e uma espiral de violência urbana nunca antes vista nos Estados Unidos, com assassinatos em plena luz do dia. Junto a isso, existiu uma pressão social, sobretudo das camadas mais urbanas e também das comunidades católica e judaica, que tinham no álcool não só um uso social, mas também religioso. Isso tudo junto chega no limite com a crise de 1929, que obriga a uma releitura dessa posição para que o Estado pudesse arrecadar mais e, para isso, o álcool deveria ser novamente permitido.
Isso acontece em 1933, e, três anos depois, os derivados da cannabis passam a ser criminalizados. O que corresponde quase a uma substituição de produto para a máquina repressiva, que ficou meio ociosa e, a essa altura, já tinha se desenvolvido como um setor específico do FBI, comandado por quase 40 anos por Harry J. Anslinger, que vai ser um czar antidroga. Havia todo um setor, funcionários, verbas oficiais que precisavam de uma justificativa para existir.
Fórum – Pode-se fazer um paralelo com a situação da proibição do álcool nessa época com a da criminalização da cannabis hoje?
Carneiro – Enxergo esse paralelo, sim. Porque a situação atual é muito mais aguda e mais abrangente, não é apenas um modelo americano, mas é um modelo que conseguiu de forma muito eficaz se estabelecer mundialmente. Há todo um interesse dessa máquina repressiva para que ela [cannabis] continue proibida e, ao mesmo tempo, o esgotamento da sua proibição salta aos olhos de toda opinião pública, sobretudo dos setores mais esclarecidos e da comunidade científica, que verificam a insustentabilidade desse modelo na medida em que as suas declaradas intenções não ocorrem, não há diminuição dos problemas de saúde pública, não ocorre a diminuição do mercado e da violência dos grupos criminosos. Há um cenário mundial de mudança de paradigma. O volume de recursos econômicos que está girando em torno desse negócio, e que não são controlados pela economia oficial, é muito grande. A pressão para obter recursos fiscais também é muito grande. Chegamos ao ponto de, nos Estados Unidos, a maconha ser o principal produto do agronegócio da Califórnia.
Fórum – Voltando à Lei Seca, o uso do álcool também é algo marcante na história dos povos…
Carneiro – O álcool é talvez a droga mais universal da humanidade, porque é um processo de fermentação que pode ser obtido de inúmeras matérias-primas orgânicas. Por isso, as frutas e os cereais sempre foram fontes, pré-históricas, do acesso a uma forma de alteração de consciência muito facilmente disponível. Depois, o álcool também tem uma série de virtudes farmacológicas que sempre fizeram dele uma coisa muito útil. A primeira delas é o fato de ajudar na potabilidade da água. Nas civilizações anteriores ao saneamento público, moderno, as contaminações por água eram enormes, e uma pequena quantidade de álcool já é suficiente para eliminar uma parte dos microorganismos. Várias doenças, como o tifo, têm sua transmissão inviabilizada se tiver um pouco de álcool. Então, a bebida sempre foi vista como mais saudável do que a água. A ideia de que a água pura é saudável é muito nova, vem desde que surgiu a possibilidade de se acrescentar cloro nela.
Fórum – O senhor já disse que o uso de substâncias psicoativas pela humanidade vem desde sempre, e querer proibi-lo seria praticamente impossível. Qual sua posição em relação a isso, o senhor defende o uso livre ou com algum controle? Qual seria o ideal?
Carneiro – A universalidade do uso de drogas é algo constatado por pesquisas antropológicas até em períodos pré-históricos, antes da Revolução Neolítica. Cerca de 10 mil anos atrás já havia o conhecimento de pelo menos uma dezena de plantas psicoativas, que iam desde a efedra, uma planta excitante, até cogumelos alucinógenos. Todas as comunidades que tiveram contato com a natureza souberam identificar e diferenciar nela quais plantas serviam para o conforto alimentar e quais eram para outros tipos de confortos, sejam eles de aumento de disposição ao trabalho ou, ao contrário, para relaxamento.
Na forma de regulamentação, acredito que elas devem ser diferenciadas conforme o tipo de substância. Existem basicamente quatro formas de regulamentação do acesso a essas substâncias, que hoje já são usadas na sociedade. A primeira forma seriam as drogas acessíveis a qualquer pessoa, independentemente da idade, inclusive. São sobretudo as que possuem cafeína, seja na forma do refrigerante, do café, do chocolate… É algo a que qualquer um tem acesso, não importa a idade. Digamos que não é recomendável dar café a uma criança, mas não há uma proibição nesse sentido.
A segunda forma se relaciona às que seriam proibidas para os menores de idade, as que dizem respeito a uma autodeterminação e que cada adulto teria condições de escolher e julgar sobre seu uso. São elas: o álcool, o tabaco e até a própria maconha. A terceira esfera seria acessível apenas por recomendação médica, em uma condição particular, substâncias como cocaína, heroína, os derivados do ópio etc. O quarto tipo seriam aquelas que, além de envolver tudo o que já foi citado, deveriam envolver uma espécie de iniciação obrigatória, de um treinamento de seu uso, assim como você tem para certas práticas de risco como paraquedismo, mergulho e até mesmo a condução de veículos, seria por exemplo o LSD. Teria ele haver uma iniciação com psicólogos e pessoas mais experimentadas, de certa maneira algo parecido com o que ocorre no consumo da ayahuasca, que é permitida em contextos tradicionais e de uso religioso, que são formas legitimas, mas para a qual também não deveria haver uma permissividade indiscriminada.
Fórum – De uma maneira geral, como o senhor vê o debate sobre drogas no Brasil? Há algum país cujo modelo possa ser seguido?
Carneiro – Acho que hoje há um intenso debate da mudança de paradigma sobre a regulamentação das drogas e o término da fase proibicionista. Há vários temas que qualificam e intensificam esse debate, um deles é justamente a questão econômica, e há também um conceito de liberdade civil, que deve ser ampliado para abranger uma autoplasticidade do seu estado cognitivo, de humor etc. A droga ainda é uma espécie de última fronteira, em que não é permitida a autodeterminação.
Existem alguns países da Europa e estados norte-americanos que já conseguiram, por mobilização popular, a realização de plebiscitos, com um consenso público garantindo esse direito, mas acho que não existe um país que possa ser exatamente um modelo alternativo, porque há uma ordem internacional regulando isso, inclusive com amparo das Nações Unidas. Seria preciso haver uma ruptura com os tratados internacionais, com a convenção única de 1961, que só foi revista em 1971, que é o arcabouço jurídico internacional para a manutenção da exclusão de certas plantas. Teria de haver um país que encabeçasse essa quebra e que, inevitavelmente, levaria a uma nova discussão da legislação internacional.
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