Para jurista, guerra se dirige aos mais vulneráveis socialmente
10/12/2010
Renato Godoy de Toledo
da Redação
A juíza aposentada do Rio de Janeiro, Maria Lucia Karam, afirma que a criminalização do usuário que ainda persiste no Brasil viola declarações internacionais e e a própria Constituição brasileira. Karam faz parte da Apilcação da Lei contra a Proibição (Leap, na sigla em inglês). Segundo a juíza, a guerra às drogas nos EUA - que serve de referência para outros países - já propicia um quadro de encarceramento da população negra que ultrapassa os indíces do regime do apartheid na África do Sul.
Judicialmente, o usuário de drogas ainda é tratado como criminoso? Na sua opinião, quais mudanças na legislação poderiam tornar o relacionamento do judiciário com o usuário mais humano?
Maria Lucia Karam: Sim, o usuário de drogas ilícitas ainda é tratado como criminoso no Brasil. A Lei 11.343/2006 – a vigente lei brasileira em matéria de drogas – ilegitimamente criminaliza a posse para uso pessoal das drogas tornadas ilícitas em seu artigo 28, ali prevendo penas de advertência, prestação de serviços à comunidade, comparecimento a programa ou curso educativo e, em caso de descumprimento, admoestação e multa. A Lei 11.343/2006 apenas afastou a previsão de pena privativa de liberdade.
Não se trata de tornar o relacionamento do Poder Judiciário com o usuário mais humano. Na realidade, o mero fato de usar drogas ilícitas não deveria levar ninguém a se relacionar com o Poder Judiciário. A criminalização da posse para uso pessoal das drogas tornadas ilícitas viola princípios garantidores de direitos fundamentais inscritos nas declarações internacionais de direitos e nas constituições democráticas, aí naturalmente incluída a Constituição Federal brasileira. A simples posse para uso pessoal das drogas tornadas ilícitas, ou seu consumo em circunstâncias que não envolvam um perigo concreto, direto e imediato para terceiros são condutas que dizem respeito unicamente ao indivíduo que as realiza, à sua liberdade, às suas opções pessoais. Condutas dessa natureza não podem sofrer nenhuma intervenção do Estado, não podem sofrer nenhuma sanção. Em uma democracia, a liberdade do indivíduo só pode sofrer restrições quando sua conduta atinja direta e concretamente direitos de terceiros.
A guerra às drogas tem um cunho social? Isto é, ela atinge majoritariamente os mais pobres? Se sim, a sra. considera que essa é uma estratégia pensada propositadamente para atingir os mais pobres?
A “guerra às drogas” não se dirige propriamente contra as drogas. Como qualquer outra guerra, dirige-se sim contra pessoas – nesse caso, os produtores, comerciantes e consumidores das drogas tornadas ilícitas. Como acontece com qualquer intervenção do sistema penal, os mais atingidos pela repressão são – e sempre serão – os mais vulneráveis econômica e socialmente, os desprovidos de riquezas, os desprovidos de poder.
No Brasil, os mais atingidos são os muitos meninos, que, sem oportunidades e sem perspectivas de uma vida melhor, são identificados como “traficantes”, morrendo e matando, envolvidos pela violência causada pela ilegalidade imposta ao mercado onde trabalham. Enfrentam a polícia nos confrontos regulares ou irregulares; enfrentam os delatores; enfrentam os concorrentes de seu negócio. Devem se mostrar corajosos; precisam assegurar seus lucros efêmeros, seus pequenos poderes, suas vidas. Não vivem muito e, logo, são substituídos por outros meninos igualmente sem esperanças. Os que sobrevivem, superlotam as prisões brasileiras.
Nos EUA, pesquisas apontam que, embora somente 13,5% de todos os usuários e “traficantes” de drogas naquele país sejam negros, 37% dos capturados por violação a leis de drogas são negros; 60% em prisões estaduais por crimes relacionados a drogas são negros; 81% dos acusados por violações a leis federais relativas a drogas são negros. Os EUA encarceram 1.009 pessoas por cem mil habitantes adultos. Se considerados os homens brancos, são 948 por cem mil habitantes adultos. Se considerados os homens negros, são 6.667 por cem mil habitantes. Sob o regime mais racista da história moderna, em 1993 – sob o apartheid na África do Sul – a proporção era de 851 negros encarcerados por cem mil habitantes. Como ressalta Jack A. Cole, diretor da Law Enforcement Against Prohibition-LEAP – organização internacional que reúne policiais, juízes, promotores, agentes penitenciários e da qual orgulhosamente faço parte – é o racismo que conduz a “guerra às drogas” nos EUA.
Na Europa, a mesma desproporção se manifesta em relação aos imigrantes vindos de países pobres.
A função da “guerra às drogas” – ou do sistema penal em geral – de criminalização dos mais vulneráveis e de conseqüente conservação e reprodução de estruturas de dominação não é exatamente uma estratégia pensada propositadamente pelo político A ou B; é sim algo inerente ao exercício do sempre violento, danoso e doloroso poder punitivo.
As experiências de legalização/descriminalização das drogas têm ajudado a diminuir a violência em função do tráfico?
As experiências menos repressivas na atualidade limitam-se à descriminalização da posse para uso pessoal das drogas tornadas ilícitas. A descriminalização da posse para uso pessoal das drogas ilícitas é um imperativo derivado da necessária observância dos princípios garantidores dos direitos fundamentais inscritos nas declarações internacionais de direitos e nas constituições democráticas. A posse de drogas para uso pessoal, como antes mencionado, é uma conduta que não atinge concretamente nenhum direito de terceiros e, portanto, não pode ser objeto de qualquer intervenção do Estado.
Mas essa imperativa descriminalização não é suficiente. Não haverá nenhuma mudança significativa, especialmente no que concerne à violência, a não ser que a produção, o comércio e o consumo de todas as drogas possam se desenvolver em um ambiente de legalidade. Para afastar os riscos e os danos da proibição, para pôr fim à violência resultante da ilegalidade, é preciso legalizar a produção, o comércio e o consumo de todas as drogas.
A legalização da produção e do comércio de todas as drogas afastará a violência que hoje acompanha tais atividades, pois essa violência só se faz presente porque o mercado é ilegal. ão são as drogas que causam violência. A produção e o comércio de drogas não são atividades violentas em si mesmas. É a ilegalidade que cria a violência. A produção e o comércio de drogas só se fazem acompanhar de armas e de violência quando se desenvolvem em um mercado ilegal. A violência não provem apenas dos enfrentamentos com as forças policiais, da impossibilidade de resolução legal dos conflitos, ou do estímulo à circulação de armas. Além disso, há a diferenciação, o estigma, a demonização, a hostilidade, a exclusão, derivados da própria ideia de crime, a sempre gerar violência, seja da parte de agentes policiais, seja da parte daqueles a quem é atribuído o papel do “criminoso” – ou pior, do “inimigo”.
A produção e o comércio de álcool ou de tabaco se desenvolvem sem violência – disputas de mercado, cobranças de dívidas, tudo se faz sem violência. Por que é diferente na produção e no comércio de maconha ou cocaína? A óbvia diferença está na proibição, na irracional política antidrogas, na insana e sanguinária “guerra às drogas”.
Aliás, o exemplo de legalização que podemos invocar é o que ocorreu nos EUA na década de 1930, com o fim da proibição do álcool. O proibicionismo produziu e inseriu no mercado produtor e distribuidor do álcool empresas criminalizadas; fortaleceu a máfia de Al Capone e seus companheiros; provocou a violência que caracterizou especialmente a cidade de Chicago daquele tempo. Com o fim da chamada Lei Seca (o Volstead Act), o mercado do álcool se normalizou e aquela violência que o cercava simplesmente desapareceu.
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