Psicodélico: Zé Ramalho fala sobre Paêbirú (Entrevista da Revista Rolling Stone)

segunda-feira, 11 de fevereiro de 2013

Zé Ramalho fala sobre Paêbirú (Entrevista da Revista Rolling Stone)



POR CRISTIANO BASTOS
Camuflado numa alameda do bairro do Flamengo, o ex-cadete do exército José Ramalho Neto encravou em solo fluminense um QG de raízes paraibanas: a produtora Jerimum. As simbologias agrestes são marcas constantes e profundas na obra de Zé Ramalho.
Sob a umidade tropical do Rio de Janeiro, a aridez do sertão ainda é metáfora-chave para ingressar nos numerosos códigos – místicos, psicodélicos, ufológicos e de velhos ícones do rock'n'roll – cifrados em suas composições.
Ele conta que "desceu ao mundo" em março de 1949, em Brejo do Cruz, nos confins da Paraíba. Depois da morte do pai, poeta, afogado num açude do sertão, foi criado pelo avô para ser médico.O avô-pai, após uma viagem lisérgica do neto envolvendo cogumelos, extraterrestres e mensagens telepáticas, virou a canção-hino "Avôhai".
Numa conversa animada que levou a tarde inteira de uma segunda-feira, Zé Ramalho falou sobre o disco novo, Canta Bob Dylan – Tá Tudo Mudando e a facilidade que encontrou para liberar canções do velho Zimmermann – o exato oposto ocorreu com as canções assinadas pela dupla Raul Seixas e Paulo Coelho no projeto Zé Ramalho Canta Raul Seixas.
O paraibano abriu suas vivências químicas, sem pudores e em dois capítulos: primeiro, com os cogumelos alucinógenos; depois, com a cocaína. E explicou sua negação para se manifestar sobre o álbum que fez com o Lula Côrtes, Paêbirú: "Por que tantos anos depois? Deviam ter falado sobre isso há 30 anos!"

Onde sua história começa?

Zé Ramalho - Apesar de eu ter nascido em Brejo do Cruz, e não "da" Cruz, como muita gente confunde, por causa da música do Chico Buarque, depois de dois meses meu avô conduziu a família pra Campina Grande, onde ficamos até 1960. É lá que, pela primeira vez, eu escuto rádio, com 5 anos de idade. As rádios AM eram a única novidade, as novelas do rádio e os programas de auditório ao vivo. Na Rádio Borborema vi show de Marinês e sua Gente, Jackson do Pandeiro e Luiz Gonzaga. Lembro que tivemos que ir pra João Pessoa, porque meu avô sofria de pressão alta e Campina Grande fica em cima da Serra da Borborema. Aos 13 anos, quando o intelecto foi se abrindo, a música ganhou mais força. A Jovem Guarda começou a aparecer para mim. Especialmente, Roberto Carlos e Renato & Seus Blue Caps. Eu estudava no colégio Pio X, dos Irmãos Maristas, em João Pessoa. E, nesse colégio, de educação extremamente fina, nos jograis que a gente tinha que fazer uma vez por mês, um dos trabalhos era organizar um grupo musical em cada classe. Depois fazer uma espécie de concurso entre os alunos. Eu já sabia dar três acordes no violão. Juntaram outros dois colegas. Fizemos uma apresentação que fez muito sucesso. Aquilo criou uma chispa. Acendeu em mim a chama dos grupos de baile, pode-se dizer. Dali, logo depois passei a procurar os músicos que tocavam nos bailes pela cidade de João Pessoa. Eram muitos.

Como era esse grupo de baile?

Zé Ramalho - Fundamos uma banda chamada Elis & os Demônios, com mais três colegas da escola. Começamos a ser contratados para tocar em bailes, para as pessoas dançarem. Bailes de quatro horas. Eu tocava guitarra e, aos poucos, fui me incumbindo dos solos. Eu copiava. Isso me trouxe uma riqueza muito grande. Porque você toca de tudo. A formação mais famosa que integrei tinha um vocal fenomenal: Os Quatro Loucos, que, antes, se chamava Four Crazy's, numa tradução errada – o certo seria Crazy Four. A gente tocava músicas em inglês, então eu levava as letras pro professor traduzir, pra entendermos o que estávamos cantando. Foram experiências importantes pra me dar noção sobre comportamento de palco, remuneração e profissionalismo. Comecei a pensar nessas coisas.

Você era muito jovem?

Zé Ramalho - Muito. Eu tinha 16, 17 anos. Agora, encostei nos 60. Estou em "cinco ponto nove", companheiro. São 42 anos de carreira. Mas as coisas ainda estão muito frescas na minha cabeça. Os grupos de baile tocavam, basicamente, Jovem Guarda, e quase nada de forró, quase nada de samba. A gente tocava guitarra pra conquistar as meninas e ter uma chance de colar nelas. Até que, com 18 anos, chegou a hora de servir o quartel. Pior que eu tinha fama de cabeludo por causa dos grupos.

Fama de cabeludo?
Zé Ramalho - Eu era muito cabeludo! [risos] E era xingado: "Cabeludo! Viado! Vá tomar banho! Vá cortar o cabelo!" Eu ouvia isso o tempo todo. Como me propus a tudo isso, no entanto, aguentei no osso. Hoje em dia quem liga pra isso? Quando o barbeiro do exército me viu, disse: "Vou logo cravar esse cara". Ele me pegou mesmo. Não consegui me livrar. Meus estudos passaram pra parte da noite e, nos fins de semana, eu botava uma peruca pra tocar. Foi nessa fase "militar" que comecei a fazer música.

O que se passava em sua cabeça na época?

Zé Ramalho - Final dos anos 60, contracultura explodindo no mundo: eu estava atento a tudo isso. Woodstock! Quando saí do cinema, depois de ter visto esse filme, minha vida mudou. Vi in loco no Brasil. O cinema lançando pela primeira vez, em 1970, Rio de Janeiro. Depois, vi em Recife, na Paraíba. Em diversos lugares. Woodstock foi importante pra eu ver aquela atitude, o comportamento, a cultura hippie: sexo, drogas, nego fumando sem haver nenhum tipo de confusão. Eu achava aquilo uma espécie de "utopia mágica" – música que dava uma sensação de você estar vivendo num "planeta amor". Em Recife encontrei novo horizonte. Comecei a frequentar shows e, num desses, conheci o grande guitarrista Paulo Rafael, que ainda hoje toca com Alceu Valença. Na época tocava na banda Phetus.

Como você conheceu Alceu?

Zé Ramalho - Ele estava fazendo o filme A Noite do Espantalho. Eu namorava uma menina que morava em Recife, na praia de Boa Viagem. Glauce, o nome dela. Ela me disse: "Se você quiser conhecer um cara legal, Alceu Valença é o nome dele. Ele namora minha irmã. Alceu tem umas músicas ótimas". Uma tarde, fui à casa dela e Alceu estava lá. Nos demos bem de cara. A empatia foi imediata. Foi daí que também conheci Geraldo Azevedo, que tocava com ele. Isso era 1974. Em 1975, chega a história do Festival Abertura da Rede Globo, em São Paulo, produção do Augusto César Vanucci. O Alceu reuniu os melhores músicos que tocavam em Recife, na época, caras da banda Ave Sangria. Um bandão.

Era a abertura política?

Zé Ramalho - 
O Festival Abertura já era uma sugestão do General Figueiredo pra abertura política que se prenunciava. Os artistas do festival estavam sendo lançados pela Som Livre. Quase todo o cast do festival, na verdade, era da gravadora: Alceu, Luiz Melodia, Jorge Mautner, Hermeto Pascoal. Um festival de luxo. Iniciante, me encantei vendo aquele povo todo e comecei a ficar por aqui, no Rio, depois que passou a coisa toda com o Alceu. Como eu ainda não tinha as músicas que estreei no meu primeiro disco, fiz algumas tentativas pelo Sul que não deram em nada. O repertório era basicamente de músicas de rock, mas não chamava público. Sem ter disco gravado, uma carreira, na vida artística você é considerado aspirante. Contudo, tive de voltar ao Nordeste e preparar-me mais. Nessa volta, fiz um trabalho com a cineasta Tânia Quaresma, importantíssimo para encorpar de vez meus conhecimentos. Ela filmou Nordeste, Cordel, Repente e Canção e me convidou pra participar do projeto. Eu conhecia o universo dos cantadores e violeiros, mas ainda não tinha me aprofundado. Tânia me contratou para servir como espécie de rastreador de violeiros, nas locações das filmagens.

Você atuaria no filme?

Zé Ramalho - Caso necessário, eu completaria algumas passagens tocando viola. Eu já era muito elogiado pela minha técnica. Nos shows do Alceu eu tocava viola de 12 e de dez [cordas]. A experiência do filme foi importante demais, pois veio uma camada de cultura popular, legítima, invadindo meu corpo e cérebro inteiros. Foram 17 dias de viagem a bordo de uma Kombi: Ceará, Pernambuco, Paraíba e uma parte de Sergipe. Fomos às varandas das casas dos violeiros, onde tinha as pelejas, nas oficinas dos cordelistas. Eu estava absorvendo essa cultura de uma maneira que nunca eu tinha pensado ser possível.

O que aprendeu?

Zé Ramalho - Entendi algo muito preciso: as leis da cantoria, principalmente, a fórmula de se fazer os versos. Uma forma que você tem que entender. Não adianta decorar. Quando volto para a Paraíba, também faço minhas primeiras experiências com outra turma: a dos cogumelos alucinógenos. Preciso contar essa história pra explicar o link que, depois, acontece na minha vida. Pra começar: acho que nem deveria chamar cogumelo de droga. Não há o contato da mão humana. É tudo direto. Quando descobriram que tinha isso nos pastos do Nordeste houve uma espécie de busca por parte de minha geração. Tem um tipo de cogumelo específico que não vai intoxicá-lo. Nós, porém, éramos loco ma non troppo – antes, realizamos estudos com fotografias dos cogumelos para saber quais eram comestíveis e quais eram venenosos. No meu caso, foi uma coisa que me deu uma iluminação muito grande. Foi quando recebi a mensagem do "Avôhai".

Como foi isso?

Zé Ramalho - Eu descrevo na música uma parte dessa experiência: "Amanita matutina / E que transparente cortina ao meu redor" [canta]. Amanita é nome científico dos cogumelos. Quando senti isso, eu estava numa fazenda linda, pasto maravilhoso. Sensação de liberdade – "Transparente cortina ao meu redor" [recita]. Era como se fosse a aurora boreal. Seu olho fica muito preciso. Todas essas coisas estão muito presentes na música: o encantamento, a espiritualidade que as pessoas sentem de imediato. "Avôhai" é minha única música que posso dizer que teve uma espécie de mediunidade envolvida. Porque eu não pensei nela, ela me foi soprada: "Avôhai... Avôhai..." [sussurra]. E a forma como a letra veio, veloz. Depois, voltando pra casa, nessas ondas de psicodelia, num retrato da parede tinha a imagem de uma pedra de turmalina. Saiu a letra todinha: "O Velho cruza a soleira" – "Avôhai, avô e pai". Escrevendo os acordes sem parar, eu sabia pra onde ir, cara. Foi de uma rapidez impressionante e nunca mais aconteceu algo parecido em minha vida. O que é "Avôhai"? Por toda a minha vida, eu tenho que responder essa pergunta quase semanalmente. Tenho o maior prazer em falar sobre isso. Nunca me cansarei.

Você acha que a lisergia desabrochou tudo isso?

Zé Ramalho - Essas experiências eu chamo de "A Semana da Iluminação", os dias que sucederam "Avôhai". Eu morava em João Pessoa numa casa chamada Vila do Sossego, tinha uma plaquinha na porta. Nos dias que se seguiram a essa viagem aconteceram todas essas músicas: "Chão de Giz", "Vila do Sossego", "Jardins das Acácias". Meu primeiro disco é muito espiritualista. E muito lisérgico. Não há conotação política nas músicas. Separei as que tinham e deixei de lado pra preservar esse lado viajante e, principalmente, meio regional. É um disco sem bateria. Tem a participação do [tecladista] inglês Patrick Moraz, do Yes. Só "Avôhai" pra conseguir uma coisa dessas.

Como foram as gravações de "Avôhai"?

Zé Ramalho - Foram de uma precisão incrível. Moraz estava no Brasil gravando o disco The Story of Eye com o Carlos Alberto Sion. Calhou que o destino configurou Sion pra ser produtor do meu primeiro álbum. Chegou na hora de gravar algumas partes instrumentais e perguntei quem iria fazer. E ele: "Patrick Moraz. Vamos mandar uma fitinha sua pra ele". Enviamos uma fita cassete pra ele ouvir. Na época, ele estava substituindo Rick Wakeman no Yes. Quando escutou a música, bateu algo nele. E eu fiquei bobo na hora em que entramos no estúdio. Ele me pediu pra passar alguns acordes a fim de completar o arranjo. Eu, ingênuo, ao lado daquele cara, side by side: "Rapaz, como é que pode?!" Patrick observando os movimentos de minha mão. Sacando os acordes. Chegou o Ivinho e fez aquela viola ultrarrápida. Até o final de 1977, quando eu registrei meu primeiro álbum, foi uma sobrevivência séria que passei no Rio. Eu não tinha dinheiro. Não tinha onde ficar.

E você foi se virar como michê?

Zé Ramalho - Não cheguei a ser michê, mas tinha umas meninas que dormiam comigo. A canção "Garoto de Aluguel" é autobiográfica por causa disso. Essas meninas eram estudantes que eu conhecia do tempo em que tocava com o Alceu. Eu era rato de show aqui no Rio de Janeiro. Elas gostavam dos cantores nordestinos, do jeitão da gente, meio desengonçados. Era mais a inspiração da música. Elas viam a situação em que a gente estava. Eu passei fome. Várias vezes dormi em frente ao Copacabana Palace. Mas teve uma camarada lá no Bar da Glória que, durante uns quatro meses, me deixou dormir num quarto de empregada, aquele cubículo miudinho. Era o tempo dos militares, em que assassinos, estupradores e bandidos não existiam. Existiam hippies e malucos, mas eles diziam: "Esse pessoal deixa em paz porque não é subversivo". "Nordestino sofredor" – chamavam a gente assim. Depois de servir o quartel, cheguei ao Rio preparado. As coisas que eu passei no quartel não foram moles. Antes de partir fui pra frente do espelho e disse: "Olha, cara, se você acha que é tão espertinho, vá pro Rio de Janeiro, sozinho, sem depender de ninguém". Fui com isso na cabeça. Sabia, no entanto, que com o pacote de canções alguma coisa iria acontecer. Disso eu tinha plena certeza, senão não viria.

Você já tinha essas músicas no bolso?
Zé Ramalho - O Augusto Cesar Vanucci fez muito esforço pra me colocar na Som Livre, só que não houve como. Percorri um longo caminho. O Durval Ferreira, após ouvir a letra de "Avôhai", fez uma cara de quem não gostou e a atirou no chão. Ele dizia que uma letra daquelas nunca iria funcionar. Talvez, apenas, se eu a mudasse. "Se você mudar para uma coisa mais comercial..." Sempre eles faziam uma proposta. Eu nunca aceitei. Passei pela Odeon, Fonogram, depois Polygram. Até que cheguei na CBS. Era final de 1977. Raimundo Fagner tinha um disco que havia saído pela gravadora e começava a fazer sucesso para um artista nordestino. Na CBS só existia o Roberto Carlos que vendia. Notaram que havia uma coisa expressiva: os nordestinos vendiam discos. Foi o que aconteceu. Alceu já estava despontando.

Vanusa gravou "Avôhai" antes de você, não é? 

Zé Ramalho - 
Gravou. Não chegou a estourar, mas eu participo da gravação, por conta do Vanucci. Ele chegou pra mim: "Tem uma pessoa que eu gostaria que gravasse uma canção sua. Você autoriza? Quer participar?" Eu: "Claro que quero". Os arranjos de viola sou eu que faço. O fato é que a minha gravação teve uma magia pessoal que a Vanusa não tinha como passar, afinal era uma experiência muito pessoal. Mais a participação de músicos como Dominguinhos passando pelo estúdio, com sua sanfona, foi um feitiço. Altamiro Carrilho, sumidade de flauta da época de ouro do choro. E também Paulo Moura. Havia uma configuração de músicos. Tudo acontecia de maneira muito espontânea. Pela primeira vez, tive a chance de ficar no Rio de Janeiro, confortavelmente, sem precisar dormir ao relento. Me colocaram num hotel. Ô, como adorei! Foi maravilhoso poder comer e dormir.

Sua geração revelou um Nordeste musical moderno ao Brasil.
Zé Ramalho - Certamente, sem aquela coisa tradicionalista-purista do Nordeste. Essa reciclagem da música nordestina aconteceu por aquela geração – ou seja, o forró elétrico, como chamavam, os "violétricos", mistura dos violeiros com o rock de guitarras. As pessoas estavam acostumadas com a música nordestina por causa da dimensão muito forte que Gonzaga, Jackson, Martinez e Genival Lacerda cravaram. Historicamente, algo bem pouco referendado. Verdade. Nunca tive vergonha de dizer minhas influências, meus mestres. Quem são meus mestres? Começando pela primeira camada que veio: aqueles astros de Woodstock, Jovem Guarda, Renato & Seus Blue Caps, Roberto e Erasmo. Aí entra a descoberta do Nordeste: Jackson do Pandeiro, Luiz Gonzaga, os violeiros Otacílio Batista e Oliveira de Panelas, que foram mestres profundos que tiveram paciência e uma generosidade muito grande pra me passar as leis e obrigações da cantoria. Isto é, onde a rima entra. Doze modalidades da cantoria de viola que me foram ministradas por esses dois mestres, um já falecido. O Oliveira de Panelas ainda está vivo. O Otacílio me permitiu musicar: [recita] "Mulher Nova, bonita e carinhosa faz o homem gemer sem sentir dor". Depois Beatles, Stones, Dylan, Santana. Tudo isso absorvi profundamente. Não só de botar um disco e ficar ouvindo. Eu procurava tirar a harmonia das canções, queria entender a arquitetura musical. E olhe só: estou falando do privilégio da minha geração que era o de comprar esses discos quando eles estavam saindo. No tempo real desses discos. Este é o caldeirão que estou mexendo até hoje. Quando lanço, vira Zé Ramalho. Não faço cópia de nada.

E a canção "Mistérios da Meia-Noite"?
Zé Ramalho - Novela Roque Santeiro, 1985. Eu tinha me separado do segundo casamento. Morava em Fortaleza, na época, e voltei pro Rio de Janeiro. Me instalo num apartamento no Leblon e recebo um telefonema do Mariozinho Rocha falando dessa novela, que precisava de uma música pra um personagem do Professor Astromar. À meia-noite ele virava lobisomem. Essas crenças populares. Desliguei o telefone, fui pro quarto e fiz a música em meia hora. Liguei de volta: "Tá pronto”. E ele: "Ficou maluco?" E eu: "Escuta aí pra você ver". Daí ele: "Tá ducaralho!" Tem barbado que, até hoje, vem me dizer que quando era menino ouvia a introdução e saía da sala correndo porque ficava com medo. O videoclipe foi ao ar pelo Fantástico. Eu apareço tocando. E tem Luiza Brunet também, esperando. Era um luxo, extremamente sofisticado pra época, o cenário feito no Teatro Fênix. Adorei fazer aquilo.

Você cursou dois anos de medicina em João Pessoa. Se alguém tiver um troço na sua frente, ainda sabe o que tem de fazer?

Zé Ramalho - Até um determinado limite. Dr. Ramalho! [risos]. No 2º ano de medicina minha cabeça latejava de música. Eu tinha que tomar uma atitude. Não suportava mais viver daquele jeito. Fui pra casa e comuniquei: "Vou abandonar a faculdade". Tem que ter muita coragem. Foi a decisão de minha vida."Estou abandonando a faculdade, vou me dedicar só à minha carreira de músico e compositor." Foi um escândalo, mas foi a decisão certa. Eu iria passar mais três anos da faculdade aprendendo cada vez menos e me frustrando cada vez mais. No fim, minha família me deu a passagem pro Rio. Só de ida. "É só o que preciso", disse a eles. Meu avô quase morreu, o velho Avôhai. Quase teve um ataque quando viu que eu estava decidido. Algumas horas na vida você tem que decidir o que quer fazer.

Você enfrentou problemas com a liberação das músicas de Raul Seixas e Paulo Coelho para o disco Zé Ramalho Canta Raul. Como foi com o Dylan?

Zé Ramalho - No disco sobre o Raul houve aquela polêmica toda: o escritor não autorizou que eu gravasse as músicas que ele também assinava. Não sei se foi algum tipo de inveja – inveja de magos, de entidades... Seja como for, a atitude antipática, com certeza, não foi a minha. De qualquer maneira, tive que recomeçar outro álbum. O disco já estava gravado quando houve essa decisão final, irrevogável, dele. Mas eu jamais recuaria. A gravadora quis cancelar o projeto. Eu disse: "Que nada! Vamos fazer o seguinte: 'Vou fazer um disco só de músicas assinadas pelo Raul'". Peguei a discografia inteira dele e escolhi.

É irônico que você não tenha conseguido a autorização do Paulo Coelho, mas tenha conseguido a do Bob Dylan.

Zé Ramalho - Pois é. Foi uma surpresa. O Aluizio Reis, da minha equipe, levou esse pacote de versões, pessoalmente, pra explicar à equipe do Dylan quem era Jackson do Pandeiro, o que é candomblé, o que são "balas perdidas". Tem várias situações brasileiras encaixadas nas versões. Levaram pra Dylan, que lê tudinho e dá uma aprovada geral – sem tirar nada. Pelo contrário, aprovado com louvor.

Como escolher as canções de Dylan, entre as milhares que ele gravou?

Zé Ramalho - Você olha pra cima, fecha os olhos e a lembrança do que gosta de Dylan vem à cabeça. É preciso se apoderar de um canal de sentimento pra colocar num trabalho desses que, certamente, vai bater em vários lugares. Pelo mundo todo, porque os fãs de Dylan vão querer ouvir. Eles ouvem tudo.

Você conheceu a Joan Baez. Como foi?

Zé Ramalho - 
Com ela, tive um encontro polêmico em 1980, em São Paulo, quando ela estava visitando o Brasil. Eu estava lançando meu disco, A Terceira Lâmina, e a gravadora propôs: "A Baez está em São Paulo. Está fazendo um documentário sobre direitos humanos na América Latina. Você quer fazer uma apresentação do seu show com ela?" Fui pessoalmente ao hotel onde ela estava. Muito simples, ela me recebeu em seu apartamento. Ensaiei eu e essa mulher, sozinho, com um violão. A gente ensaiou a música de Geraldo Vandré, "Vou Caminhando", em português. Mas a censura não liberou. Veio um documento da Polícia Federal impedindo a apresentação dela nesse show: "Proibida de cantar". Isso eu tenho guardado no meu arquivo. Ela estava aqui pra se encontrar com Lula, sindicalista. O Senador Eduardo Suplicy, ainda vereador, foi quem a levou. Com Baez tive a sensação de estar muito próximo ao universo de Dylan. Tenho no meu arquivo uma gravação, eu cantando com ela essa música do Vandré e "Imagine", no quarto do Hotel. Ela foi impedida de cantar, mas subiu ao palco e disse apenas: "Não posso cantar...". A platéia delirando. Ela entrou sem me avisar. Entrou em "Admirável Gado Novo", dançando, e disse: "Não posso cantar. Estoy proibida". Depois que acabou o show filmamos, em seu camarim, essas duas canções. Depois mandamos uma cópia do VHS pra ela. Já faz quase 30 anos. Se eu botar esse vídeo no YouTube pega fogo. Está guardado. Isso não morreu.

Como foi sua experiência com a cocaína?

Zé Ramalho - Como experiência, durou 12 anos de minha vida, até esgotar. Houve um período, no início, que a cocaína me despertou muita criatividade. Por exemplo: "Frevo Mulher", hit há 30 anos. No carnaval de Salvador, não existe uma banda que não toque. Essa música foi feita numa madrugada, num quarto de hotel. De repente dá aquela chispa. Eu estava tão agoniado, a cabeça latejando de tanto pó que tinha entrado, e fui tomar um banho para relaxar. Quando saí do banho, a música saiu junto. E fiz rapidamente. Foi feita para a Amelinha gravar. Eu estava tão excitado, a energia era tanta que eu poderia fazer muito mais músicas nessa madrugada. Mas tem o velho problema: você bebe e fuma muito. No meu caso, sempre teve mais música envolvida. Adorava ficar cantando, tinha essas viradas violentas, ficava a noite inteira e emendava no dia seguinte. Agora, quando você começa a ficar embotado, lhe tira o brilho. Celso Blues Boy, que é a sublimação blues no Brasil, tem uma música que diz: "Cantarei na escuridão / Nessa treva sem fim / As coisas são assim / Pra que se lamentar / Se dentro de nós sempre brilhará". Eu escutava isso e achava uma coisa tão bem-feita. Me identificava. Nessa época, o Rio vivia um inferno de cocaína no ar. A Colômbia colocando pó de grande qualidade a preço de banana, o Cartel de Medellín investindo pesado pra todo mundo gostar e querer mais.

Você se sentia viciado?


Zé Ramalho - Não, me sentia preso. As últimas sensações que eu tive com cocaína foram muito ruins, organicamente falando. O day after era uma coisa cada vez pior. Ao ponto de, na última vez que tentei pegar num canudo, veio um pensamento: "Olhe, cara, você vai começar de novo. Você sabe bem o que sentirá amanhã!" Quando lembrei disso, joguei o canudo fora e nem comecei. Era tão ruim a sensação que deu medo. Depois tive que "desempoeirar" minha carreira. Não havia ninguém sentado no meu lugar. Ele permanecia ali. Empoeirado, mas ainda ali.

Por que você não quer mais falar sobre o álbum Paêbirú?

Zé Ramalho - As coisas são muito simples. Não vou citar aqui razões pessoais, particulares. A minha recusa em falar é assim: quando Paêbirú foi lançado, há mais de 30 anos, na época em que saiu, apesar da cheia que aconteceu, ninguém falou nada sobre ele. Alguns álbuns foram mandados aqui pro Rio de Janeiro. Por que tantos anos depois? Deviam ter falado sobre isso naquela época! Eu acho apenas incrível que se vislumbre tudo isso em torno de um trabalho que já foi feito há muito tempo.

Qual sua relação hoje com a Pedra do Ingá?

Zé Ramalho - De vez em quando faço visitas à Pedra do Ingá. É uma relação curiosa porque ela me dá projeções de como imagino certas coisas: a criação do mundo, os primeiros habitantes da terra, as criaturas do espaço que vieram aqui. Eu sou agnóstico, como John Lennon: imagino o mundo sem religiões. Aceito a explicação, que cada vez é mais permanente, que foram criaturas do espaço que vêm nos visitar. Faço parte dessa legião de ufólogos que têm grande esperança numa revelação. A experiência de "Avôhai", que contei sobre a viagem de cogumelos, "as cortinas", tem uma presença alienígena. A visão que tive das cortinas, na verdade, foi uma nave gigantesca que estava em cima de mim, enorme. Por entre as nuvens dava pra ver a sombra da nave – imensa, gigantesca. Havia uma presença alienígena, com certeza, naquele momento. E, quando olhei pro chão, estava repleto de olhos de gente a me observar. Isso aconteceu perto de Recife, num pasto chamado Rio Botafogo, uma fazenda enorme onde os malucos descobriram as amanitas que nasciam por lá. Essa experiência lisérgicafoi definitiva pra toda minha vida.

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