Psicodélico: Xamanismo e as técnicas arcaicas do êxtase

terça-feira, 14 de dezembro de 2010

Xamanismo e as técnicas arcaicas do êxtase

CLÁSSICO DA LITERATURA XAMÂNICA :

Xamanismo e as técnicas arcaicas do êxtase
Mircea Eliade

Desde o início do século, os etnólogos se habituaram a utilizar como sinônimos os termos xamã, medicine-men, feiticeiro e mago (e também pajés e curandeiros - N.da T.) para designar certos indivíduos dotados de prestígio mágico-religioso encontrados em todas as sociedades "primitivas". Por extensão, aplicou-se a mesma terminologia ao estudo da história dos povos "civilizados" e falou-se, por exemplo, em xamanismo indiano, iraniano, germânico, chinês e até babilônico para referir-se aos elementos "primitivos" encontrados nas respectivas religiões. Por várias razões, tal confusão só pode prejudicar a compreensão do fenômeno xamânico em si.

Se por "xamã" se entender qualquer mago, feiticeiro, medicine-men ou extático encontrado ao longo da história das religiões e da etnologia religiosa, chegar-se-á a uma noção ao mesmo tempo extremamente complexa e imprecisa, cuja utilidade é difícil perceber, visto já dispormos dos termos "mago" e "feiticeiro" para exprimir noções tão díspares quanto aproximativas, como as de "magia" ou "mística primitiva".

Consideramos útil o uso dos vocábulos "xamã" e "xamanismo", justamente para evitar equívocos e enxergar com clareza a própria história da "magia e da "feitiçaria". Pois - é preciso deixar claro - o xamã é, ele também, um mago e um medicine-man: a ele se atribui a competência de curar, como aos médicos, assim como a de operar milagres extraordinários, como ocorre com todos os magos, primitivos e modernos. Mas além disso, ele é psicopompo e pode ainda ser sacerdote, místico e poeta. Na massa indiferenciada e "confusionista" da vida mágico-religiosa das sociedades arcaicas considerada em seu conjunto, o xamanismo - tomado em seu sentido estrito e preciso - já apresenta uma estrutura própria e revela uma "história" que é da maior utilidade esclarecer.

O xamanismo strictu sensu é, por excelência, um fenômeno religioso siberiano e centro-asiático. A palavra chegou até nós através do russo, do tungue saman. Nas outras línguas do centro e do norte da Ásia, os termos correspondentes são o iacuto ojun, o mongol bügä, bögä (buge, bü) e ugadan (cf. também o buriate udayan e o iacuto udoyan, a "mulher-xamã"), o turco-tártaro kam (altaico kam, gam; mongol kami etc.). Tentou-se explicar o termo tungue a partir do páli samana.

Em toda essa área que compreende o centro e o norte da Ásia, a vida mágico-religiosa da sociedade gira em torno do xamã. O que não quer dizer, evidentemente, que ele seja o único manipulador do sagrado, nem que a atividade religiosa seja monopolizada pelo xamã. Em muitas tribos, o sacerdote-sacrificante coexiste com o xamã, sem contar que todo chefe de família é também chefe do culto doméstico. Contudo, o xamã é sempre a figura dominante, pois em toda essa região, onde a experiência extática é considerada a experiência religiosa por excelência, é o xamã, e apenas ele, o grande mestre do êxtase. Uma primeira definição desse fenômeno complexo, e possivelmente a menos arriscada, será: xamanismo = técnica do êxtase. (p.15-16)

Se tomamos o cuidado de diferenciar o xamã de outros "magos" e medicine-men das sociedades primitivas, a identificação de complexos xamânicos em determinadas religiões adquire de saída um significado bastante importante. Magia e magos há praticamente em todo o mundo, ao passo que o xamanismo aponta para uma "especialidade" mágica específica como o "domínio do fogo", o vôo mágico, etc. Por isso, embora o xamã tenha, entre outras qualidades, a de mago, não é qualquer mago que pode ser qualificado de xamã. A mesma precisão se impõe a propósito das curas xamânicas: todo medicine-man cura, mas o xamã emprega um método que lhe é exclusivo. As técnicas xamânicas do êxtase, por sua vez, não esgotam todas as variedades da experiência extática registradas na história das religiões e na etnologia religiosa; não se pode, portanto, considerar qualquer extático como um xamã: este é o especialista em um transe, durante o qual se acredita que sua alma deixa o corpo para realizar ascensões celestes ou descensões infernais.(p.17)

Na Sibéria e no nordeste da Ásia, as principais vias de recrutamento dos xamãs são: 1) transmissão hereditária da profissão xamânica e 2) vocação espontânea (o "chamado" ou "escolha"). Há também casos de indivíduos que se tornam xamãs por vontade própria (como, por exemplo, entre os altaicos) ou por vontade do clã (tungues, etc.). Mas estes últimos são considerados mais fracos do que aqueles que herdam a profissão ou atenderam ao "chamado" dos deuses e dos espíritos.

Qualquer que tenha sido o método de seleção, um xamã só é reconhecido como tal após ter recebido dupla instrução: 1) de ordem extática (sonhos, transes, etc.), 2) de ordem tradicional (técnicas xamânicas, nomes e funções dos espíritos, mitologia e genealogia do clã, linguagem secreta, etc.). Essa dupla instrução, a cargo dos espíritos e dos velhos mestres xamãs, equivale a uma iniciação. (pg. 25-26).

Nota: (Fonte: Eliade, Mircea. Xamanismo e as técnicas arcaicas do êxtase. São Paulo: Martins Fontes, 1998.)

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