Psicodélico: Por que a guerra às drogas? Do crack na política ao crack do sujeito

segunda-feira, 11 de junho de 2012

Por que a guerra às drogas? Do crack na política ao crack do sujeito



Texto de apresentação da dissertação :

O projeto inicial desta pesquisa, na passagem do ano de 2009 para 2010, tinha por objetivo investigar a presença ou ausência da noção de desejo nos documentos de saúde pública. No entanto, a campanha de enfrentamento ao crack com o slogan “o crack causa dependência e mata” estava circulando nos meios de comunicação de modo que chocou minha percepção. Já fazia alguns anos que não presenciava as diretivas embrutecedoras da moral de um discurso que antagoniza drogas e vida.
O retorno a um discurso de terrorificação, como presenciei nas campanhas “Drogas, nem morto!”, parecia ter voltado e, pautado sobre o crack, o julgamento a respeito de como estabelecer uma melhor comunicação sobre as drogas novamente parecia frouxo. A onda internacional de revisão das políticas de atenção às drogas parece ter esmaecido antes de tocar os litorais brasileiros.
Portanto, ao longo do desenvolvimento desta pesquisa o Ministério da Saúde renovou seu slogan para “Crack: é possível vencer”. Na medida em que visualizei estas mudanças em curso, ficou evidente a necessidade da pesquisa não se deter em um recorte restrito a um curto período de tempo. Assim, durante o levantamento bibliográfico buscamos algo de estrutural no discurso que aborda as drogas pela via da política governamental. Desse modo, foi possível perceber as claudicações que acompanham esta questão a pouco mais de um século. Graças aos escritos de Freud que tratam do funcionamento grupal, pudemos identificar um lugar estrutural do inconsciente nas ações políticas, atualmente ocupado pelas drogas. Este lugar, indubitavelmente se presentificou como o lugar do inimigo.
Desde os alardes em relação ao ópio, facilitado com o uso da morfina em larga escala, passando pela cocaína, paixão de Freud que antecede à gênese das ideias psicanalíticas, até a atual questão brasileira denominada de “epidemia de crack”, notamos um certo furor que toca às drogas como uma ameaça para a ordem social. Não é por acaso, que um dos maiores críticos do texto “sobre a coca” seja Erlenmeyer, químico contemporâneo à Freud que nomeou o pó branco de terceiro flagelo da humanidade.
Assim, iniciamos nossa pesquisa com a hipótese de que há uma abordagem das drogas que a circunscreve como uma peste. Esta peste, incapacitante, afastaria as pessoas de uma vida produtiva e de seus compromissos morais. Neste processo os aparelhos de regulamentação junto das tecnologias farmacêuticas, operando por meio de uma técnica fria, estabelecem o que é remédio e o que é veneno, demarcando e administrando como e do que se deve gozar.
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Freud, em um período anterior à gênese da psicanálise, depositou sobre a cocaína a expectativa de sutura do sujeito moderno. Em suas expectativas, uma substância milagrosa como a cocaína poderia aliviar homens e mulheres de diversos sentimentos que se apresentassem como inerentes à insistência de existir. No entanto, após consecutivos fracassos e duras críticas, Freud recuou para em seguida avançar com sua descoberta que o marcou como autor fundamental do pensamento moderno: o inconsciente.
Conhecedor de diversas obras oriundas da antropologia, Freud, em seu receituário para a vida civilizada, prescreveu aquilo que reconheceu como imprescindível para viver em sociedade, a saber, uma boa dose de renúncia de satisfação das pulsões primitivas. No entanto, assim como tantos outros remédios, esta dose de renúncia não é sem efeitos. Assim o mal-estar surge como efeito colateral da vida civilizada. Devido a este efeito colateral, muitos sofredores recorreram ao seu consultório. Este, sabendo do risco de novas receitas, buscou a cura a partir deste efeito colateral, visto que ao Dr, bem como a seus pacientes, a dose de renúncia é um remédio sem o qual não se pode viver.
Portanto, frente ao colateral civilizatório, os humanos comumente lançam mão de alguns recursos por conta própria. Freud, em sua lista de recursos paliativos para encarar este sofrimento, identifica ao menos três que damos destaque: as artes, a ciência e as drogas. Este último, que fique bem avisado, é extremamente eficaz, assim como altamente perigoso se não se atenta para a dosagem. Caso haja uma overdose, a receita principal: ou seja, a renúncia pulsional, parece ter sua ação anulada. Só parece, como veremos adiante.
Quando os três recursos paliativos falham, surge a neurose. Esta, reagente ao efeito colateral da vida civilizada convida o psicanalista à ação. Portanto, este trabalho aborda as construções advindas da ambiguidade na assimilação da prescrição traçada na receita da vida civilizada. Assim, se o sujeito constrói sua existência a partir de um traço no qual se identifica, quando falamos das drogas este traço é um garrancho. Típico hábito médico na prescrição de uma receita que tenta calar as dores da alma.
Após a morte do psicanalista austríaco, alguns de seus discípulos se fiaram cegamente nos aspectos vitorianos do mestre, desse modo, ao trabalharem sobre a cota de renúncia pulsional, apelaram para uma regulação das dosagens, buscando administrar as cotas de renúncia e de recursos paliativos. Assim, a civilização respiraria mais sadia, com indivíduos bem adaptados e comedidos.
Frente à iminência deste fracasso, coube a Lacan uma descoberta que segundo Foucault, foi salvadora da psicanálise. A regulamentação e administração desta dose de renúncia não parecia mais estar surtindo efeito. Portanto, se antes a renúncia era um remédio amargo, a engenharia das dores e dos prazeres a transformara em modo de gozo, tornando o efeito colateral cada vez mais cínico e sinistro. Frente ao impasse, Lacan, buscando identificar os garranchos das traduções e do tempo, reafirmou de maneira radical os elementos presentes na marca do carimbo de Freud na experiência moderna: o sujeito do inconsciente e a singularidade de seu desejo.
Por conseguinte, quando a questão das drogas surge sob a categoria nosológica de toxicomania, Lacan é categórico ao afirmar que o tratamento desta questão só se faz de modo policialesco. Aqui acrescentamos ao dito de Lacan que a abordagem das toxicomanias é policialesca e governamental. Por este motivo, nosso interesse neste trabalho foi situar o lugar das drogas enquanto assunto de governo e de polícia, reservado à psicanálise, a crítica e o tratamento dos fatores inconscientes que atravessam esta questão.
Dentre estes fatores, podemos destacar: fantasia e angústia. Coube-nos a entrada no material do qual alguns sujeitos refinam a sua existência para o mundo, apresentando-o em seu avesso, o imundo. Assim, passamos do segredinho sujo frequente nos consultórios à excrecência ornamental das práticas higienistas urbanas.
Portanto, se o desenvolvimento civilizatório cobra seu preço, quando nos referimos às drogas reconhecemos que há uma sobretaxa, gerando dívidas comumente pagas com a carne, levando ao limiar da vida àqueles que sobrevivem e caminham portando consigo somente pele, osso e pulsão.
Curiosamente, a cocaína, substância da qual Freud lançou mão para tentar curar a angústia inerente ao sujeito, ao ser manejada no campo político em combinação com o vazio de sentido apropriado na confecção de inimigos, produziu este polêmico derivado chamado crack. Já os usuários nomeados como nóias, comportam uma identidade paradoxal que alimenta a persecutoriedade daqueles que estão no seu entorno. Desse modo, o nóia,enquanto identidade, detém alta cotação no mercado de estratégias políticas e econômicas.
Reconhecemos que é pela via do medo que identificamos a aplicação dos mecanismos da psicologia de grupo apresentados por Freud no discurso do mestre trabalhado por Lacan. Estes mecanismos operam de modo conservador, impedindo o giro discursivo no qual o mestre apareceria como castrado. Esta imagem, possibilitaria a sociedade a percepção de que mais importante que o mestre, é o furo, que nos possibilita redimensionar nossas formas de se fazer política, sendo o desejo, o agente de mudança a ocupar o lugar do medo.
Pois, se no início desta pesquisa vivi um choque diante da brutalidade das palavras, no final da confecção desta obra, já em período de conclusão, o choque não ocorreu por meio de palavras mas por meio de imagens. Desta vez não foi campanha de saúde, mas campanha militar, como aquelas discutidas por Clausewitz. A operação sufoco, lançando mão de estratégias que aplicam doses cavalares de dor e sofrimento provou que novamente Freud estava errado. Este, ao responder a Einstein sobre como enfrentar a guerra recomenda: “tudo o que estimula o crescimento da civilização, trabalha contra a guerra”. Infelizmente, o avanço do que chamamos de civilização facilmente cede ao obscurecimento da repetição pulsional.
Por fim, talvez seja necessário reconhecer que o advento do crack, que hoje ocupa um lugar que já foi habitado por tantos inimigos, acentuando a miséria e o desamparo presente na pólis bem como nossa dificuldade em fazer política de modo distinto à reprodução da barbárie. Cabe considerarmos que o lugar ocupado pelo crack nos dias de hoje faz interrogação pública ao desejo de cada um.
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O texto da dissertação em breve estará on-line no portal da biblioteca da PUC-SP.

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