Fonte : Drogas e Psicanálise
O que consistiria em uma “questão das drogas”? Quais termos ou meios poderíamos usar para formular esta questão?
“O que leva uma pessoa a usar drogas?”, ou inversamente e talvez mais adequado: “o que leva alguém a não usar ou experimentar drogas?”
“Os riscos de experimentações são calculáveis?”
Há interação bioquímica e resposta orgânica padrão para determinados grupos de substâncias?
Dificilmente se encontrará respostas fáceis ou rápidas para as questões acima. Mas para tratar do tema, não são raras as ocasiões em que surjam premissas como se tais questões já estivessem respondidas. Das questões levantadas acima, uma questão das drogas, sem dúvida só pode ser traçada com o apoio de registro e desenvolvimento de elementos históricos e antropológicos. Ainda que, esta palavra ‘drogas’, mesmo que seja explorada e trabalhada etimologicamente, não necessariamente revele, sob quais ditames se engendram os discursos que buscam endereçar um entendimento sobre o momento no qual são mobilizadas uma série de comoções sobre o tema.
O que sem dúvida podemos afirmar aqui, é que o termo ‘droga’ enquanto questão nunca conseguiu uma separação entre os campos da saúde e da segurança. O termo e as falsas questões, insistem enquanto catalizadoras que mesclam as duas áreas e provam o quanto uma leva da outra. Mais especificamente, o quanto a saúde pode ser policialesca e, não inversamente, o quanto a segurança pode ser insalubre.
Interessante que no campo das mercadorias, droga ganha valor místico. No caso das ilícitas, carregam consigo uma infinidade de possibilidades e surpresas, todo o mistério, o não saber de onde vem, como foi feito, transforma uma substância em um “kinder ovo”, objeto a ser desvelado, sempre a ser, já que todo uso não se encerra em si, envolve interação de diversos fatores que interagem com o efeito, possibilitando uma infinidade de viagens mais ou menos variáveis, geralmente com volta.
Talvez a palavra risco, seja essencial para pensarmos sobre como a experiência com drogas é apresentada a alguém. A imagem de ultrapassamento de uma linha da qual se perde alguma garantia de segurança pode ser uma imagem emblemática para a forma como o tema é tratado. Devo a perspicácia deste recorte, ao artigo de Maurício Fiore, publicado no livro “Drogas e Cultura: outras perspectivas”, neste trabalho, o autor se implica, ainda que brevemente, em discutir uma noção de risco. Para a psicanálise a noção de risco, é imanente a uma concepção de desejo. Ao menos para a vertente lacaniana, a partir do momento em que se deseja, se assume um risco. Ainda que tal risco não seja necessariamente uma atitude heróica ou ousada por excelência. No trabalho com a psicanálise lacaniana, frequentemente o desejo surge ilustrado pela metáfora do “salto no escuro”. Ainda que o movimento de saltar no escuro, sem saber se encontrará solo firme ou um completo vazio a sugar o corpo, exija uma forte dose de coragem de quem salta, não é necessariamente neste ponto que esta metáfora se basta. Ela se complexifica, a partir do momento em que àquele que não salta, também não pode garantir que o solo sob seus pés não se abrirá feito um alçapão também resultando em uma terrível queda.
O solo simbólico sobre o qual vivemos não oferece garantias, e o risco, não necessariamente é ganha tom alarmista por toda parte. Apesar de discursos sobre as drogas buscarem tons alarmistas, uma espécie de enaltecimento do risco avança sobre diversos campos da vida subjetiva. Me refiro a “uma espécie de enaltecimento” pelo fato de que este enaltecimento não necessariamente oferta um risco, se não apenas um jogo de espelho deste. Assim como em vídeo-games, o que chamam de risco muitas vezes envolve em perder “um crédito”. E até mesmo a ideia de viver perigosamente pode desembocar em viver igual a todo mundo, ainda que com todos se sentindo diferente. A publicidade vende risco enquanto sorteio, promoção, loteria dos bens, neste caso o lema é: “quem não arrisca não petisca”. Já as campanhas de prevenção buscam antecipar o fracasso que também faz parte do risco e nas imagens de cadáveres e feridas reforçam o dito: “o seguro morreu de velho”. Este processo de algo de extremamente violento e desleal. Funciona como uma espécie de terceirização da fantasia. Explico: a forma como o sujeito lida com o risco, comumente se dá por via da fantasia. Há um cálculo permeado de variáveis imaginárias: “se fizer tal e tal coisa tenho mais chance de ganhar e portanto: tento porque acho que vou ganhar”, ou “diante de tais e tais dados é possível que não dê certo e por isso prefiro ficar como estou”. A questão é que as probabilidades adentram às contingências e toda a construção acerca de uma previsão pode ruir sem qualquer aviso prévio. Portanto, na medida em que uma propaganda ou campanha adianta um resultado, há uma operação de assédio e tentativa e de destituição do lugar de sujeito, a captura do olhar costuma ser cruel e petrifica aquele que olha precipitando à imagem o posicionamento diante do risco. Pela via analítica, a condição de sujeito implica um posicionamento diante de um impasse do desejo, é justamente este impasse que é sabotado pela terceirização da qual me referi acima.
Vale ressaltar, que conforme considerado acima, para a psicanálise, ideais como o de “prevenção ao uso de drogas” não se adequam minimamente à uma ética. Curioso é que: mesmo com uma forte campanha amedrontadora, com uma torrente de alertas embrutecedores, ainda se ouse experimentar drogas como o crack. Neste caso, ao contrário do cálculo dizer “pode dar certo”, diz “há muito mais chances de dar errado” e portanto o que prevalece é uma lógica de Ulisses, quanto maior é o desafio, maior é a tentação de sobreviver ao mesmo. O ato de buscar à pedra tão mal dita, pode indicar um apego desesperado à uma condição desejante, ainda que traiçoeiro e iludido por um brilho próprio ao fracasso, típico engodo, também propagandista de uma “vida como obra de arte”.
Bibliografia:
FIORE, M. Prazer e risco: uma discussão acerca do saber médico sobre o uso de drogas. In: Drogas e cultura: novas perspectivas. Labate, B. C. e Carneiro, H. et al. 2008
LACAN, J. Seminário 7: A ética da psicanálise. 2008.
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