Crack e tabu
Marcos Flamínio Peres
Um ano atrás, Pedro Abramovay já era bem mais que uma jovem promessa: ocupava a Secretaria Nacional de Justiça do recém-empossado governo Dilma, subordinada ao Ministério da Justiça. Mas bateu de frente com o ministro José Eduardo Cardozo ao defender o fim da prisão para pequenos traficantes. Desautorizado, deixou o cargo três semanas após assumi-lo, aos 31 anos.
A CULT foi ouvi-lo sobre a ação conjunta desencadeada em janeiro passado pelos governos municipal e estadual de São Paulo na região da cracolândia, centro da capital, focada sobretudo na ação repressiva. “Isso é enxugar gelo”, lamenta Abramovay, que afirma ter havido uso eleitoral do episódio. Em 2001, foi assessor do gabinete da prefeita de São Paulo, na administração Marta Suplicy.
Ele também ataca a falta de uma política pública consistente para drogas no país, mas elogia a atitude do ex-presidente Fernando Henrique Cardoso, que tem assumido “posturas mais críticas” sobre o tema.
Sobre a internação compulsória de viciados, ela só deve ocorrer, diz, em casos específicos – caso contrário, “pode se tornar uma política de internação da pobreza”.
Professor de direito penal e de violência e crimes urbanos na Fundação Getulio Vargas (RJ), Abramovay prefere não falar de sua polêmica saída do governo – “Só comento do ponto de vista pessoal” – e se sente melhor hoje em dia: “Foi uma ótima decisão. Estou morando no Rio e posso cuidar de perto do meu filho de 4 meses”.
CULT – Como avalia a recente ação do Estado na cracolândia, em São Paulo?
Pedro Abramovay – Ela cometeu erros muito graves. O principal deles foi a utilização da polícia como principal instrumento. Qualquer política pública tem que estabelecer seu objetivo de maneira clara, seja porque é a única maneira de haver políticas eficientes, seja porque só assim a população pode compreender e avaliar o que o poder público está fazendo.
Qual é o objetivo da polícia na cracolândia? Lidar com o problema do crack? Garantir a segurança dos comerciantes da região? Revitalizar o centro? Pelas declarações das autoridades, não dá para compreender, pois todas essas justificativas se misturam. E as ações, na verdade, não enfrentaram nenhum desses problemas.
Do ponto de vista da segurança pública, a ação é um erro porque as experiências internacionais mostram que o foco no usuário e no pequeno traficante é completamente equivocado – não diminui a violência ligada ao tráfico e muito menos a oferta de drogas. É um trabalho de enxugar gelo; mas não é inócuo, pois causa danos à possibilidade de tratar o tema pelo lado da saúde pública.
Do ponto de vista da política de drogas, também é um desastre. Afinal, a ação que tem a polícia como principal ator impede a abordagem de agentes de saúde e assistentes sociais.
Houve uso político do episódio, em razão das eleições municipais deste ano?
Isso sempre acontece quando se fala de política sobre drogas, pois os políticos sabem que qualquer posição dura contra elas traz dividendos. Mesmo que seja ineficiente e provoque sérios danos às pessoas.
A ação também poder ter sido motivada por pressão de setores interessados na valorização imobiliária da região, que vem sendo chamada pelo poder público de “Nova Luz”?
Certamente. Há e sempre houve um debate sobre o centro de São Paulo, entre aqueles que acreditam que sua revitalização passa pela expulsão de toda a população de baixa renda da região e aqueles que defendem que é possível revitalizá-lo com essas pessoas, de forma inclusiva.
A atual gestão da prefeitura, desde o governo Serra, tem uma posição muito clara de promover políticas de urbanização excludentes. E a ação na cracolândia é absolutamente coerente com essa postura.
Há hoje duas percepções contraditórias sobre a cracolândia: ora é um problema social, ora um problema de polícia – e, considerando-se a cobertura que a imprensa deu ao episódio, parece que esta última está ganhando a batalha da opinião pública. Como vê o papel da mídia nessa questão?
Ela tem um papel bastante complicado em relação ao tema das drogas, mas há que se reconhecer que o debate está se tornando mais aberto. Nos últimos anos, vários jornais, sobretudo após a tomada de posição do ex-presidente Fernando Henrique Cardoso, têm assumido posturas mais críticas.
Mesmo no caso da cracolândia, comparativamente com outros momentos, acho que a visão da mídia foi razoavelmente crítica. Mas talvez não houvesse mesmo como defender uma postura tão truculenta e irracional.
Mas em uma sociedade com um histórico recente de regime militar como a brasileira, como convencer a população de que a violência policial não é a melhor medida a ser tomada nesse caso?
Esse é sem dúvida o grande desafio. Não existe política pública legítima se não houver o convencimento da população. E, em segurança pública, mais especificamente no caso de drogas, os agentes políticos costumam buscar essa legitimidade por meio de respostas imediatistas.
O objetivo de uma política sobre drogas é melhorar o acesso à saúde dos cidadãos e diminuir a violência, mas esses objetivos nunca são alcançados e nem sequer mencionados nas avaliações.
Sempre que se avalia a política repressiva são apresentados indicadores de processo, e não de cumprimento do objetivo. Apresentam-se a quantidade de drogas apreendidas e o número de presos (quando não o de mortos), e isso não quer dizer nada se não houver diminuição da violência e do consumo.
Acho que o Rio de Janeiro deu um grande passo no sentido de mostrar que a política de segurança pode ganhar legitimidade rompendo com a truculência. O começo do governo de Sérgio Cabral, com o secretário [de Segurança, José Maria] Beltrame já à frente da pasta, foi muito truculento.
Mas tiveram a inteligência de perceber que essa política não funciona e conseguiram criar um programa no qual a presença da polícia comunitária, acompanhada de programas sociais, está no centro da estratégia.
Qual é a melhor estratégia para lidar com o crack? Em que ela deve se diferenciar daquela usada com outras drogas?
O crack como substância tem problemas muito similares aos de outras drogas pesadas. Do ponto de vista da dependência química, ele é, segundo os médicos, mais fácil de ser tratado do que outras, como o álcool, por exemplo.
A grande questão é o fato de ser muito barato e haver entrado de modo muito perverso nas camadas mais excluídas da sociedade. E é essa combinação de exclusão e droga pesada que produz resultados tão chocantes.
Por isso, a política para o crack em tal contexto de miserabilidade – e é importante frisar que esse não é o único contexto, há uso de crack na classe média também – deve conseguir aliar políticas de assistência social e políticas de saúde.
Elas precisam compreender que o usuário deve ser, na medida do possível, tratado dentro do seu contexto. A internação é um instrumento, mas nunca a regra. Pelo contrário, ela cria uma situação artificial e muitas vezes desestrutura ainda mais a vida do paciente.
É claro que há casos em que isso é necessário, mas são minoria. Os casos internacionalmente reconhecidos como exitosos são aqueles que privilegiam o atendimento ambulatorial e que conseguem reduzir os danos do uso – e, quando possível, retiram a droga da vida da pessoa sem retirar a pessoa de sua própria vida.
Então não é favor da internação compulsória dos dependentes?
Ela é muito complicada, pois admiti-la como parte da política pode, sem dúvida, abrir espaço para a violação de direitos humanos, porque uma política depende muito de quem a implementa.
Se um prefeito decide colocar a internação compulsória como foco, ela pode se tornar uma política de internação da pobreza. Não dá para não pensar na metáfora de Machado de Assis – a internação compulsória pode levar todos à Casa Verde [hospício criado por Simão Bacamarte em “O Alienista”].
É claro que há situações em que pode ser necessário internar alguém que não consiga externar sua vontade. Mas, de novo, esses casos são realmente exceções.
Não parece anacrônico o recente debate sobre a liberalização da maconha em um momento em que drogas mais pesadas e viciantes, como o crack, se alastram pelo país?
Acho que parece anacrônica uma ação como a da cracolândia, em um momento em que o mundo todo está adotando posturas críticas às políticas repressivas, quando [até] o presidente da Colômbia [Juan Manuel Santos Calderón] pede que se descriminalizem as drogas.
Com relação à maconha, acho que, se for possível estabelecer um consenso regulatório mais inteligente que o atual, seria interessante. O que não faz sentido é mantermos a atual política repressiva, que prende pessoas que nunca praticaram um ato de violência e aproxima os jovens do crime organizado.
Além disso, a criminalização faz com que políticas de prevenção e saúde adequadas não possam ser implementadas. Não é por acaso que a única droga de que se conseguiu reduzir o consumo por meio de políticas públicas foi o cigarro, que é uma droga legal.
A experiência pioneira de Portugal pode ser aplicada ao Brasil?
Com certeza. Portugal descriminalizou o porte para consumo de todas as drogas. Elas continuam sendo proibidas, mas o porte de pequenas quantidades não é mais crime.
Passados dez anos desde a aprovação dessa lei, os resultados são muito animadores. O consumo não aumentou e até caiu entre os jovens. A polícia trabalha focada nos grandes traficantes e melhorou muito sua eficiência e mesmo a imagem internacional. E o acesso à saúde dos usuários é muito maior do que antes.
Como avalia o governo Dilma nesse setor?
Há que se ressaltar um fato histórico. O plano de drogas, que é um plano robusto, teve como porta-voz o ministro da Saúde. Temos que lembrar que até 2010 eram os militares que cuidavam do assunto. Ele coloca, pela primeira vez, recursos importantes na área da saúde para políticas sobre drogas, e isso é fundamental.
Mas há um ponto que ainda não está muito claro. A regulamentação do plano abre a possibilidade para o investimento em consultórios de rua, o que é perfeito. Mas também dá muito dinheiro para internação em clínicas privadas, que nem sempre têm métodos científicos de tratamento.
A intenção do governo é positiva, mas, se não houver fiscalização do governo e da sociedade, quem for implementar a política – Estados e municípios – pode utilizar esses instrumentos de forma muito equivocada.
Não se pode deixar, por exemplo, que os consultórios de rua virem verdadeiras carrocinhas para carregar as pessoas para as clínicas com o único intuito de esconder a pobreza. Há várias clínicas de reabilitação administradas por religiosos, evangélicos sobretudo. Elas deveriam ser reconhecidas pelo governo?
Esse não é um tema simples. O governo, no Plano de Enfrentamento ao Crack e Outras Drogas, reconheceu as comunidades terapêuticas, que são unidades de tratamento e internação de usuários – e muitas são controladas por instituições religiosas.
Atualmente 70% dos atendimentos a usuários são feitos fora do Sistema Único de Saúde (SUS). Assim, é preciso reconhecer que as comunidades terapêuticas exercem um papel importante e que o Estado talvez não tenha como substituí-las do dia para a noite.
Mas isso não significa que o Estado não possa regular de maneira bastante rígida os métodos de tratamento. Não é possível admitir que se dê dinheiro público para sessões de exorcismo de usuários de drogas. E isso, no Plano, precisa ser claramente mais bem regulado do que foi até agora.
Fonte : Revista Cult
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