Psicodélico: Carta da Mulher de Aldous Huxley narra como o LSD esteve com o escritor na sua morte !

quarta-feira, 5 de outubro de 2011

Carta da Mulher de Aldous Huxley narra como o LSD esteve com o escritor na sua morte !

Fonte : Coletivo Dar

Download do Livro Moksha – Textos sobre Psicodélicos – Aldous Huxley
http://coletivodar.org/wp-content/uploads/2009/07/Moksha-Textos-sobre-Psicod%C3%A9licos-ALDOUS-HUXLEY.pdf

O texto que trazemos aqui na Dica desta semana fecha o excelente livro Moksha – Textos sobre psicoativos (disopnível para download completo em nossa seção de Arquivos), coletânea de reflexões do escritor Aldous Huxley sobre diferentes aspectos das experiências alteradoras (ou geradoras) de consciência. Certamente é dos mais importantes e comoventes textos da obra, pois relata os últimos momentos de vida do escritor que, ao lado de sua mulher, optou por passar seus últimos minutos de vida sob efeito de LSD.

Escrito por Laura Huxley, mulher de Aldous, poucos dias após sua morte, e inicialmente pensado como uma mensagem gravada em fita a ser enviada para parentes e amigos mais próximos, “Oh, nobre de berço” é uma bonita reflexão sobre questões que, se perpassam a questão das drogas, em verdade miram a própria existência humana em toda sua complexidade.

Autor de clássicos da literatura mundial como Admirável mundo novo e A ilha, o inglês Aldous Huxley nasceu em 1894 em Goaldming, e faleceu em Los Angeles em 22 de novembro de 1963, exatamente o mesmo dia em que o ex-presidente dos EUA John Kennedy foi assassinado. Huxley foi também poeta e roteirista de filmes, e seu livro As portas da percepção, no qual refletia sobre a alteração de consciência trazida pela mescalina, é até hoje exemplar raro de exercício lírico e investigativo sobre a experiência psiconáutica.

1963

Oh, Nobre de Berço!

LAURA HUXLEY

A morte de Aldous Huxley – nas palavras de Laura – foi “uma continuação de seu próprio trabalho” e “um último gesto de importância duradoura.” Huxley não tornava psicodélicos havia cerca de dois anos. Em suas últimas semanas ele pensara sobre isso, mas decidira esperar até sentir-se melhor. Suas condições pioraram; e em suas últimas horas ele consciente e corajosamente seguiu um programa que tinha testado antes, tanto em sua vida (quando Maria morreu) e em seus escritos (a morte de I.akshmi em A ilha). Ele pediu LSD – o mais próximo equivalente disponível da medicina-moksha. Laura ministrou-lhe por duas vezes uma dose de 100 microgramas, e improvisou leituras do manuscrito Leary- Alpert-Metzner de seu manual para a experiência psicodélica baseada no Livro Tibetano dos Mortos, a ser publicado. Aldous morreu em paz, inteiramente consciente e, ao que parece, sem dor, com as portas de sua percepção purificadas. Escrito originalmente para um pequeno número de parentes e amigos, Lawia mais tarde incorporou este relato ao seu livro de memórias de seu marido.’ Em meados da década de 60, o Dr. Eric Kast estava aliviando a dor e a ansiedade de seus pacientes agonizantes com LSD.

Aldous MORREU como viveu, fazendo o possível para desenvolver plenamente em si próprio uma das coisas essenciais que ele recomendava aos outros: a Atenção. Quando percebeu que o trabalho de seu corpo deixando essa vida poderia diminuir sua atenção, Aldous receitou seu próprio remédio ou – dito de outra forma – seu próprio sacramento.

“Os últimos ritos deviam fazer a pessoa mais consciente, em vez de menos consciente”, dizia ele com frequência, “mais humana em vez de menos humana”. Numa carta para o Dr. Osmond, que lembrava a Aldous que seis anos se tinham passado desde sua primeira experiência com mescalina, ele respondeu; “Sim, seis anos desde aquela primeira experiência. ‘Oh, Morte em Vida, os anos que já foram’ – mas também, Oh, Vida na Morte. [...]” Também para Osmond: “[… Minha experiência com Maria convenceu-me de que os vivos podem fazer muita coisa para tornar mais fácil a passagem para os moribundos, para elevar o ato mais puramente fisiológico da existência humana ao nível da conscientização e talvez até da espiritualidade.”

Com demasiada frequência, pessoas inconscientes ou moribundas são tratadas como “coisas”, como se não estivessem ali. Mas frequentemente elas estão muito ali. Embora uma pessoa moribunda tenha cada vez menos meios de expressar o que sente, ela ainda está aberta para receber comunicações. Nesse sentido, a pessoa muito doente ou moribunda é muito parecida com uma criança: não pode nos dizer como se sente, mas está absorvendo nosso sentimento, nossa voz, e, mais que tudo, nosso toque. Na criança, o maior canal de comunicação é a pele. Do mesmo modo, para o indivíduo mergulhado na imensa solidão da doença e da morte, um toque de mão pode dissolver essa solidão, até mesmo iluminar calidamente o universo desconhecido. Para o “nobre de berço” assim como para o “nobre de morte”, a comunicação pela pele e pela voz pode fazer uma diferença imensurável.

A psicologia moderna descobriu como é forte o trauma do nascimento na vida do indivíduo. E o “trauma da morte”? Se a pessoa acredita na continuidade da vida, não devia dar a ele a mesma consideração? O Livro Tibetano dos Mortos dá a maior importância ao estado de consciência na hora da morte. O guia sempre se dirige à pessoa moribunda com a saudação “Oh, Nobre de Berço!” e insiste: “Não deixeis que vossa mente se confunda.” O guia continua lembrando ao moribundo que não se prenda a visões celestiais ou infernais, que não são reais, mas que são apenas as projeções ilusórias de seus pensamentos e emoções, temores e desejos. O moribundo é exortado a “continuar praticando a arte de viver”, mesmo quando está morrendo. Sabendo o que a pessoa é de fato, estando consciente da vida universal e impessoal que vive a si mesma através de cada um de nós. Esta é a arte de viver, e é o que se pode ajudar o moribundo a continuar praticando. Até o final”.

“Oh, Nobre de Berço!”. Este sinal de respeito e reconhecimento é algo que consola e que me parece conduzir mais facilmente a uma vida melhor – aqui ou depois – do que a imagem de um pecador batendo no peito e implorando desesperadamente o perdão: “O que posso eu, um frágil homem, pedir? Quem vai interceder por mim quando os justos também precisam de misericórdia?” 22 de novembro de 1963 foi o último dia na terra para dois homens de boa-vontade. Embora pertencendo a gerações diferentes, países diferentes, ambientes diferentes, tanto John F. Kennedy quanto Aldous Huxley tinham desfechado uma luta comum contra a ignorância e a má-vontade; ambos dedicaram suas vidas a ajudar a humanidade a entender e amar a si própria. Eles morreram no mesmo dia; nenhuma imaginação poderia ser suficientemente vívida para conceber duas maneiras de morrer tão antônimais quanto essas.

Boatos distorcidos circularam sobre a morte de Aldous. Relatei os acontecimentos reais daquele dia numa fita gravada para os parentes e alguns amigos, três semanas depois de Aldous morrer. Estes são os fatos.

Caro…

Há tanta coisa que quero lhe contar sobre a última semana de vida de Aldous, e particularmente o último dia. O que aconteceu é importante porque é uma conclusão, ou melhor, uma continuação, do trabalho dele.

Em primeiro lugar, tenho que lhe confirmar, com completa certeza subjetiva, que Aldous não tinha conscientemente pensado no fato de que poderia morrer logo, até o dia em que morreu. Subconscientemente estava tudo ali, e você vai poder ver isso por si mesmo, porque, de 15 de novembro até 22 de novembro eu tenho gravados muitos dos comentários de Aldous. Aldous nunca estava muito disposto a desistir de escrever a mão e passar a ditar ou fazer anotações num gravador. Ele usava um Dictograph apenas para gravar os trechos de literatura que ele apreciava, e ficava escutando essas coisas nos momentos sossegados da noite, antes de dormir. No início de novembro, quando Aldous estava no hospital, Ginny nos deu um gravador – um negócio pequenino, fácil de manejar e praticamente invisível.

Depois de ter praticado comigo mesma durante alguns dias, mostrei-o a Aldous, que ficou muito feliz com ele, e do dia 15 em diante nós o usávamos um pouquinho todos os dias, gravando os seus sonhos e anotações para futuros escritos.

O período de 15 a 22 de novembro marcou, me parece, um período de intensa atividade mental para Aldous. Tínhamos diminuído aos poucos todos os remédios, o mais possível – apenas sedativos como Percodan, um pouco de Amytal, e alguma coisa para a náusea. Ele tomou também umas poucas injeções de 1/2 cc de Dilaudid, que é um derivado da morfina; o médico diz que essa é uma dose muito pequena de morfina.

Agora, para voltar ao que eu dizia, em seus sonhos, como também às vezes em sua conversa, parecia óbvio e transparente que subconscientemente ele sabia que ia morrer. Mas nem uma vez ele falou sobre isso. Ista nada tem a ver com a opinião de alguns de seus amigos de que ele queria me poupar. Não era isso, porque Aldous nunca tinha conseguido representar um papel, dizer uma única mentira, ele era por natureza incapaz de mentir, e, se quisesse me poupar, poderia certamente ter falado com Ginny.

Durante os dois últimos meses eu lhe dei quase diariamente uma oportunidade, uma abertura, para falar sobre a morte, mas naturalmente essa abertura era sempre de modo a poder ser tomada de duas maneiras – ou na direção da vida ou na direção da morte; e ele sempre a tornava na direção da vida. Lemos todo o manual do Dr. Leary baseado no Livro Tibetano dos Mortos. Ele poderia, até mesmo brincando, ter dito: “Não se esqueça de me lembrar quando chegar a hora.” Seu comentário, em vez disso, era dirigido apenas ao problema da “reentrada” depois de uma sessão psicodélica. É verdade que ele às vezes dizia coisas como “Se eu escapar disso”, em relação a suas novas idéias para escrever, e perguntava-se quando e se ia ter força suficiente para trabalhar.

Estava mentalmente muito ativo e parecia que alguns novos níveis de sua mente estavam se movimentando.

Na noite antes de sua morte (quinta-feira à noite), mais ou menos às 8 horas, ele teve uma idéia, de repente.

– Querida – disse – acaba de me ocorrer que estou abusando de Ginny. Ter alguém tão doente assim na casa, com as duas crianças, isso é realmente um abuso.

Ginny nâo estava em casa no momento, portanto eu disse:

– Bem, quando ela chegar eu vou lhe contar isto; vai ser uma boa piada.

– Não – replicou ele, com insistência incomum. – Deviamos fazer alguma coisa a

respeito disto.

– Bem – respondi, mantendo o tom leve – certo, levante-se. Vamos fazer uma viagem.

– Não – disse ele. – É sério. Temos que .pensar sobre isso. Todas essas enfermeiras na casa. O que podíamos fazer, podíamos alugar um apartamento para este período. Só para este período.

Estava muito claro o que ele queria dizer; era inequivocamente claro. Ele achava que poderia continuar seriamente doente por mais umas três ou quatro semanas, e depois poderia voltar e recomeçar sua vida normal. Essa idéia de começar sua vida normal ocorria com frequência. Nas três ou quatro últimas semanas ele várias vezes se espantava com a própria fraqueza, quando percebia como tinha perdido as forças, e com o tempo que levaria para ficar normal outra vez.

Poucos dias antes, quando ele ia dormir, eu lhe perguntei:

– Que é que você está pensando?

– Eu estava pensando que é preciso encontrar um meio de apressar esta recuperação; é verdade que estou melhor, as costas estão melhores, mas é deprimente não ter forças para fazer o que se quer fazer.

Ora, nessa noite de quinta-feira ele tinha comentado sobre alugar um apartamento com uma energia incomum, mas alguns minutos mais tarde e durante toda a noite senti que ele estava caindo, estava perdendo terreno rapidamente. Comer era quase fora de questão.

Tinha apenas comido umas colheradas de líquido e purê; cada vez que comia alguma coisa, isso iniciava a tosse. Na noite de quinta-feira liguei para o médico e disse-lhe que n pulso estava muito rápido – 140; ele tinha um pouco de febre, e todo o meu sentimento era de iminência da morte. Tanto a enfermeira quanto o médico disseram que não parecia ser esse o caso, mas que se eu quisesse o doutor viria vê-la naquela noite. Depois voltei para o quarto de Aldous e resolvemos dar-lhe uma injeção. Eram umas 9 horas, ele dormiu e eu disse ao médico para vir na manhã seguinte. Aldous dormiu até mais ou menos 2 horas da manhã e então tomou outra injeção, e eu tornei a vê-lo às 6:30. Senti que a vida estava partindo, que alguma coisa estava mais errada do que o normal, embora eu não soubesse exatamente o que era, e pouco mais tarde mandei telegramas para você, Matthew, Ellen e minha irmã. Então, mais ou menos às 9 horas, Aldous começou a ficar muito agitado, muito desconfortável, muito inquieto.

Queria mudar de posição todo o tempo. Nada estava certo. O médico veio mais ou menos a essa hora e resolveu dar-lhe uma injeção que ele tinha tomado uma vez antes, uma coisa que é dada por via intravenosa, muito lentamente. Leva cinco minutos para ser aplicada, e é uma droga que dilata os tubos bronquiais, de modo que a respiração fica mais fácil.

Essa droga o tinha deixado desconfortável da outra vez – devia ser três sextas- feiras antes – quando ele tinha tido aquela crise sobre a qual lhe escrevi. Dessa vez fez com que se sentisse inquieto. Não conseguia expressar-se, mas estava se sentindo horrível – nada estava certo, nenhuma posição o aliviava. Tentei perguntar-lhe o que estava acontecendo.

Ele teve dificuldade em falar, mas conseguiu dizer “Tentar lhe dizer piora ainda mais.” Ele queria ser movido o tempo todo. “Mova-me.” “Mova minhas pernas.” “Mova meus braços.” “Mova minha cama.” Ele tinha um desses leitos com botôes, que se movem para cima e para baixo, tanto pela cabeceira quanto pelo pé, e incessante-mente, parecia, ele queria ser movido para cima e para baixo, para cima e para baixo. Fizemos isso inúmeras vezes, e de alguma forma isso parecia dar-lhe um pouco de alívio, mas muito, muito pouco.

De repente – deviam ser 10 horas – ele mal podia falar, e sussurrou que queria “uma folha de papel bem grande para escrever”. Eu não queria sair do quarto para procurar o papel, de modo que peguei um bloco de datilografia que estava perto, coloquei sobre uma bandeja e segurei-a. Aldous escreveu: “Se eu partir”, e deu uma instrução para seu testamento.

Eu sabia o que ele queria dizer. Como eu lhe disse, ele tinha assinado o testamento uma semana antes, e no testamento havia uma transferência de um seguro de vida, de mim para… Eu disse:

– Você quer ter certeza de que o seguro de vida foi transferido?

– Sim – disse ele.

– Os papéis para a transferência acabaram de chegar. Se você quiser, pode assinálos, mas não é necessário, porque já está legal com o seu testamento – falei.

Ele soltou um suspiro de alívio por não ter que assinar, Eu tinha lhe pedido, na véspera, para assinar alguns papéis importantes, e ele tinha dito: “Vamos esperar um pouquinho.” Aliás, essa era agora a sua maneira de dizer que não conseguia fazer alguma coisa. Se lhe pediam para comer, ele dizia: “Vamos esperar um pouquinho.” E quando lhe pedi, no dia anterior, para assinar algo que era bastante importante, ele disse: “Vamos esperar um pouquinho.” Ele queria escrever uma carta para você. “E especialmente sobre o livro de Juliette, é maravilhoso”, ele tinha dito várias vezes. Mas quando eu propunha fazer isso, ele dizia “É, daqui a pouquinho”, com uma voz tão cansada, tão diferente de seu modo normal de fazer as coisas imediatamente. Assim, quando eu lhe disse que não era necessário assinar e que tudo estava em ordem, ele soltou um suspiro de alívio.

“Se eu partir.” Essa foi a primeira vez que ele disse isso – com referência a agora. Ele escreveu isso. Eu sabia e sentia que pela primeira vez ele estava olhando para a morte – agora. Ma s ou menos meia hora antes, eu tinha ligado para S. C., um psiquiatra que era um dos líderes no uso de LSD. Perguntei se ele já tinha dado LSD a pessoas nessas condições. Ele disse que tinha feito isso apenas duas vezes, e que num dos casos a droga provocou uma reconciliação com a morte, e no outro caso não fez diferença alguma. Eu lhe disse que tinha oferecido várias vezes durante os dois últimos meses, mas Aldous sempre dizia que ia esperar até melhorar.

O Dr. C. disse:

– Não sei, acho que não. Que é que você acha?

– Não sei – respondi. – Devo oferecer a ele?

– Eu ofereceria de uma forma bem indireta – disse ele. – Diga apenas: que é que você acha de tomar LSD?

Essa resposta vaga tinha sido comum aos poucos pesquisadores neste campo a quem eu tinha perguntado: “Você dá LSD in extremis?” Em A ilha há a única referência definitiva que conheço. Devo ter falado com o Dr. C. mais ou menos às 9: 30. As condições de Aldous pioravam minuto a minuto. Ele não podia dizer o que queria; eu não conseguia entender. Em certo momento ele disse alguma coisa. Disse: “Quem está comendo em minha terrina?” Eu não sabia o que isso significava, e perguntei a ele. Ele conseguiu dar um sorriso leve e misterioso e disse: “Ah, deixe, é só uma brincadeira.” E mais tarde, sentindo minha necessidade de saber um pouco para poder fazer alguma coisa, ele disse, de um modo cruciante: “Neste ponto há tão pouco para compartilhar.” Então vi que ele sabia que estava partindo. No entanto, essa incapacidade de se expressar era apenas muscular. Seu cérebro estava claro e realmente, eu sinto, em plena atividade.

Em algum momento da manhã chegou um novo tanque de oxigênio, trazido por um rapaz que tinha vindo várias vezes antes. Ele começou a dizer em voz um tanto alta:

– Já ouviram dizer que o Presidente Kennedy…

Com um olhar interrompi-o. Aldous não percebeu, talvez porque estivesse preocupado com a gorjeta.

– Esses tanques são pesados; dê-lhe um dólar.

____

Aldous tinha sempre a maior pressa em dar gorjetas, como se a oportunidade para fazer isso estivesse prestes a desaparecer. Era o mesmo sentimento hoje. Respondi que sim, mas estava pensando que não tinha um dólar naquele quarto, e onde estaria minha bolsa. Aldous deve ter sentido a minha hesitação, porque repetiu:

– Dê-lhe um dólar. Há algumas notas no bolso de minhas calças no armário.

Dessa vez falou muito baixo, mas com bastante clareza. Então, não sei exatamente a que horas, ele me pediu o bloco e escreveu: “Tente LSD 100 intramuscular.” Embora como você pode ver na reprodução não estivesse muito claro, eu sabia que era o que ele queria dizer. Li alto e ele confirmou. De repente algo estava muito claro para mim depois dessa conversa tortuosa. dos dois últimos meses. Eu soube então, e soube o que tinha que ser feito. Fui correndo buscar o LSD, que estava no armário de remédios no quarto do outro lado do corredor. Nesse quarto há um aparelho de TV que quase não era usado. Mas eu tinha percebido, naquela última hora, que ele estava ligado.

Agora, quando entrei no quarto, Ginny, o médico, a enfermeira e o resto das pessoas da casa estavam vendo televisão. O pensamento atravessou minha mente: “Isto é loucura, essas pessoas vendo televisão quando Aldous está morrendo.” Um segundo mais tarde, enquanto eu abria a caixa que continha o frasco de LSD, ouvi que o Presidente Kennedy tinha sido assassinado. Só então entendi o estranho comportamento das pessoas naquela manhã.

Falei:

– Vou dar a ele uma injeção de LSD. Ele pediu.

O médico teve um momento de agitação – você conhece a inquietação da mentalidade médica sobre essa droga. Mas nenhuma “autoridade”, nem mesmo um exército de autoridades, poderia ter-me impedido então. Fui para o quarto de Aldous com o frasco de LSD e preparei uma seringa. O médico perguntou-me se eu queria que ele aplicasse a injeção – talvez porque tenha visto que minhas mãos tremiam. Isso me fez consciente de minhas mãos, e respondi “Não, eu preciso fazer isto”.

Acalmei-me, e quando apliquei a injeção, minhas mãos estavam firmes Então, de algum modo, um grande alívio caiu sobre nós dois.

Eram 11:45h quando eu lhe dei a primeira injeção de 100 p- Sentei-me perto da cama e disse:

– Querido, talvez daqui a pouco eu tome também com você. Você gostaria que eu também tornasse daqui a pouco?

Eu disse “daqui a pouco” porque não tinha idéia de quando poderia tomá-la. E ele indicou que sim. Temos que lembrar que ele já estava falando muito pouco. Então perguntei:

– Quer que Matthew também tome com você?

E ele disse que sim.

– E Ellen?

Ele disse que sim. Então mencionei duas ou três pessoas que tinham trabalhado com LSD, e ele disse:

– Não, não, basta, basta.

Então perguntei:

– E Ginny?

E ele disse “Sim” enfaticamente. Depois ficamos quietos. Fiquei sentada ali por algum tempo sem falar. Aldous não estava tão agitado fisicamente. Ele parecia – de alguma forma eu sabia que ele sabia – nós dois sabíamos o que estávamos fazendo, e isso sempre tinha sido um grande alívio para Aldous. Durante sua doença, em algumas ocasiões eu o tinha visto irritado até saber o que ia fazer; então, tomada a decisão, por mais séria que fosse, ele passava por uma mudança total. Esse enorme sentimento de alívio tornava conta dele, e ele não mais se preocupava. Dizia vamos fazer isso, e nós fazíamos, e ele ficava como um homem liberado. E agora eu tinha a mesma sensação: uma decisão tinha sido tomada. De repente ele tinha aceitado o fato da morte; agora, ele tinha tomado sua medicina-moksha na qual acreditava. Mais uma vez estava fazendo o que tinha escrito em A ilha, e tinha a sensação de que ele estava interessado, aliviado e tranquilo.

Depois de meia hora, a expressão de seu rosto começou a mudar um pouco, e eu lhe perguntei se ele sentia o efeito do LSD, e ele indicou que não. Mas acho que alguma coisa já tinha acontecido. Essa era uma das características de Aldous. Ele sempre retardava o reconhecimento do efeito de qualquer remédio, mesmo quando o efeito estava certamente ali; a não ser que o efeito fosse mu!to, muito forte, ele dizia que não. Agora a expressão de seu rosto estava começando a ficar como quando ele tinha tomado a medicina-moksha, quando esta imensa expressão de contentamento completo e amor o dominava. Não era o caso agora, mas havia uma mudança em comparação com o que seu rosto era duas horas antes. Deixei passar mais meia hora e então resolvi aplicarlhe mais 100p. Disse a ele que ia fazer isso e ele concordou. Dei-lhe outra injeção, e então comecei a falar com ele. Ele agora estava muito quieto; estava muito quieto e suas pernas estavam ficando frias, cada vez mais eu podia ver as áreas púrpura da cianose. Então comecei a falar com ele, dizendo “Leve e livre”.

Algumas dessas sugestões eu tinha lhe dado à noite, nessas últimas semanas, antes que ele conseguisse dormir, e agora recitei-as mais convincentemente, mais intensamente.

– Leve e livre você vai, querido; para a frente e para o alto. Você está indo para a frente e para o alto; você está indo na direção da luz. De bom grado e conscientemente, e voeè está indo muito bem; você está indo tão bem, está indo na direção da luz. Você está indo na direção da luz. Está indo na direção de um amor maior. Está indo para a frente e para o alto. É tão fácil, tão bonito. Você está indo muito bem, tão fácil. Leve e livre Para a frente e para o alto. Você está indo na direção do amor de Maria com o meu amor. Você vai na direção de um amor maior do que você já conheceu. Você está indo na direção do amor maior, melhor, e é fácil, é tão fácil, e você está indo muito bem.

– Acho que comecei a falar com ele – deve ter sido mais ou menos uma ou duas horas. Era muito difícil ter consciência da hora. Eu estava muito perto do ouvido dele, e espero que tenha falado de modo claro e compreensível. Uma vez perguntei: “Você está me ouvindo?” Ele apertou minha mão; estava me ouvindo. Eram 3:15h, de acordo com o registro da enfermeira. Fiquei tentada a fazer mais perguntas, mas de manhã ele tinha me pedido para não fazer mais perguntas, e toda a sensação era de que as coisas estavam certas. Não ousei perguntar, perturbar. E essa foi a única pergunta que fiz: “Você está me ouvindo?”

Mais tarde fiz a mesma pergunta, mas a mão não se moveu mais. Agora, das duas horas até a hora em que ele morreu, que foi às 5:20 da tarde, houve paz total, exceto uma ocasião. Deve ter sido por volta das três e meia ou quatro horas, quando vi o início de uma luta em seu lábio inferior. Seu lábio inferior começou a mexer-se como se estivesse lutando por ar. Então dei a instrução com mais energia ainda:

– É tão fácil, e você está fazendo isso linda e conscientemente, com a atenção total, com a atenção total, querido, você está indo na direção da luz.

Repeti essas palavras, ou outras semelhantes, durante as últimas três ou quatro horas. De vez em quando minha própria emoção me dominava, mas então eu me afastava da cama imediatamente, por uns dois ou três minutos, e só voltava quando conseguia controlar a emoção. O frêmito do lábio inferior durou apenas um pouquinho, e ele parecia reagir inteiramente ao que eu estava dizendo.

– Calma, calma, você está fazendo isso de bom grado e consciente e lindamente. Indo para a frente e para o alto, leve e livre, para a frente e para o alto na direção da luz, para a luz, para o amor completo.

O frêmito cessou, a respiração tornou-se cada vez mais lenta, e não houve absolutamente o menor indício de contração, de luta. Apenas a respiração tornou-se mais lenta – e mais lenta – e mais lenta; a cessação da vida não foi absolutamente como um drama, mas como um trecho de música cessando tão levemente num sempre piìì piano, dolcemente… e às 5:20 a respiração

E agora, depois de ter passado esses poucos dias sozinha, e menos bombardeada pelos sentimentos de outras pessoas, o significado desse último dia torna-se para mim cada vez mais claro e cada vez mais importante. Aldous ficou apavorado, eu acho (e eu certamente estou) porque o que ele escreveu em A ilha não foi levado a sério. Foi tratado como um trabalho de ficção científica quando não era ficção, porque cada uma das maneiras de viver que ele descreveu em A ilha não era um produto de sua fantasia, mas algo que tinha sido experimentado em algum lugar, e algumas delas em nossa própria vida cotidiana. Se fosse conhecida a maneira como Aldous morreu, isso poderia despertar as pessoas para a consciência de que não apenas este, mas muitos outros fatos descritos em A ilha são possíveis aqui e agora. O fato de Aldous pedir a medicina-moksha ao morrer não é apenas uma confirmação de sua abertura e sua coragem, mas um último gesto de importância duradoura. Tal gesto pode ser ignorantemente mal interpretado, mas é histórico que os Huxley detêm a ignorância, antes que a ignorância detenha os Huxley.

Agora, seu modo de morrer vai continuar a ser para nós, e apenas para nós, um alívio e um consolo, ou outras pessoas deveriam beneficiar-se dele? Não somos todos nobres de berço, e dignos de uma morte nobre?

Nenhum comentário: