Alguns apontamentos sobre o consumo de
substâncias psicoativas como objeto antropológico
por Maurício Fiore (*)
publicado em http://www.antropologia.com.br/, Coluna (ed. n. 51)
Dentre às ciências sociais, a Antropologia tem, nas últimas décadas, se destacado no estudo das questões relativas às substâncias psicoativas – aquelas que, de diversas formas, interferem nas atividades cerebrais humanas, alterando o comportamento e a consciência. Embora muitas substâncias possam ser consideradas psicoativas, algumas delas foram, ao longo do século XX, proibidas e consideradas problemas sociais, recebendo a alcunha cotidiana de “drogas”.
Desde os estudos pioneiros de Howard Becker, na década de 1950, muitos trabalhos foram realizados sobre o tema em diferentes perspectivas. Ainda que seja bastante arriscado, nesse curto espaço, sintetizá-los, é possível apontar algumas conclusões mais gerais que, de alguma maneira, configuram pressupostos para se compreender o tema:
1. Diferentemente do que uma análise superficial pode indicar, o estatuto legal e social das diversas substâncias não diz respeito somente às suas características farmacológicas, ou seja, sua produção e consumo foram e são permitidos, controlados ou proibidos por conta processos históricos complexos, que envolvem questões econômicas, políticas, religiosas, étnicas e morais. Desse ponto de vista, ainda que o consumo sistemático de substâncias psicoativas seja imemorial, a questão das “drogas”, enquanto problema social, é bastante recente, tendo pouco mais de um século.
2. Algumas substâncias psicoativas são utilizadas tradicionalmente ao redor do mundo, muitas vezes em rituais de origens milenares (como no caso da coca nos Andes). Embora sejam permanentemente “reiventadas”, como qualquer prática humana, essas formas de consumo tradicionais de substâncias psicoativas, entre as quais podemos citar o Ayahuasca como exemplo brasileiro, se inserem num estruturado e sofisticado repertório religioso.
3. O consumo de substâncias psicoativas não se esgota na interação entre um organismo humano genérico e determinadas moléculas: um amplo leque de fatores sociais, psicológicos e culturais confere formas e sentidos à ingestão de drogas. Não se trata de negar a objetividade farmacológica, mas colocá-la em questão frente aos mais diversos sentidos e dimensões que interferem, inclusive, nos efeitos esperados e obtidos no consumo de determinadas substâncias.
4. A relação entre consumo de algumas drogas e violência não deve ser tomada como intrínseca. Ainda que existam algumas evidências sobre o aumento da propensão para atitudes violentas sob o efeito de algumas drogas (álcool e crack, especialmente), é o tráfico e não o consumo o motivador da violência e da criminalidade nas últimas décadas.
Essas constatações são importantes para balizar não apenas o debate público sobre drogas, mas também uma pauta de pesquisa nas ciências sociais. Aliás, de maneira equivocada, a participação dos pesquisadores no debate público é considerada, por alguns, diminuidora da relevância científica dos trabalhos sobre o tema. Ora, o crescimento do interesse pelo tema nas ciências sociais é proporcional às expectativas para o subsídio do debate público e a sua presença deve ser comemorada, já que o debate tem sido conduzido, academicamente, sob a hegemonia biomédica.
No entanto, é importante que as pesquisas se apartem, do ponto de vista epistemológico, das controvérsias cotidianas do debate público. Por ser um tema polêmico, é comum que alguns pesquisadores confundam o posicionamento político com questões teóricas. Longe de defender a impossível e indesejada neutralidade científica, é importante que não se perca de vista as discussões teóricas, pois a questão do consumo de psicoativos além de ser um problema social candente, é uma via de acesso privilegiada a diversos desafios do conhecimento sócio-antropológico.
Exemplo de relevante discussão teórica, para ficar num único exemplo, é tensão que o consumo de psicoativos apresenta à dicotomia Natureza e Cultura. Diferentes abordagens vêm questionando a repartição do trabalho científico que confere às ciências sociais apenas os aspectos culturais do fenômeno. Ou seja, questiona-se o fato de se dividir o tema em aspecto que seria eminentemente natural e, assim, inquestionável, já que englobaria os efeitos farmacológicos das substâncias e um outro aspecto, que poderia ser definido como sócio-cultural. Aos antropólogos e outros cientistas humanos caberia apenas o estudo do segundo, sendo esse, conseqüência direta do primeiro. Essa discussão, que põe em questão conceitos fundamentais da sociologia e da antropologia, como indivíduo e sociedade, escapa aos propósitos desse pequeno texto, mas revela como o estudo do consumo de substâncias psicoativas não pode ser visto desimportante ou encerrado em si próprio.
Um marco importante, não apenas para as ciências sociais, mas para todas as humanidades, é o recente lançamento do livro Drogas e Cultura: novas perspectivas (EDUFBA/Ministério da Cultura/Fapesp). Independente de sua qualidade, que sou impedido de avaliar por ser um dos cinco organizadores do volume, o livro agrupa um conjunto de importante atores do conhecimento sobre o tema produzido no Brasil. Mesmo que a perspectiva antropológica seja, no livro, mais numerosa, reforçando minha convicção da importância crescente da disciplina no tema, sociólogos, cientistas políticos, historiadores e juristas contribuíram para fazer uma obra que tem como um de seus principais objetivos consolidar a importância da pesquisa e do debate acadêmico e político sobre o tema.
(*) Maurício Fiore é graduado em Ciências Sociais e mestre em Antropologia Social pela USP. Atualmente é doutorando em Ciências Sociais pela UNICAMP, pesquisador do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (CEBRAP) e do Núcleo de Estudos Interdisciplinar sobre Psicoativos (NEIP). É autor e organizador de livros e artigos sobre o tema, entre os quais Uso de “drogas”: controvérsias médicas e debate público (Mercado de Letras/Fapesp, 2006).
Atualizado em 24/11/09
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