Aprendiz de feiticeiro
O diretor teatral e escritor Fauzi Arap conta como experiências com LSD e estudos de Jung e de astrologia o ajudaram a chegar mais perto de Deus
MARTA GÓES
Não é comum que o mesmo diretor seja capaz de encenar um show de Maria Bethânia tão bem quanto um drama de Plínio Marcos (Navalha na carne) ou uma comédia de Juca de Oliveira (Caixa 2). E que esse diretor tenha começado a vida estudando Engenharia na Escola Politécnica da USP o torna um tipo ainda mais intrigante. Mas isso é apenas uma parte da história de Fauzi Arap, 60 anos, ex-ator, diretor teatral, dramaturgo, estudioso de astrologia e escritor. Em busca de autoconhecimento, Fauzi, que se define como um aprendiz, viveu experiências com LSD, nos anos 60, estudou Jung obsessivamente e trabalhou com a psiquiatra Nise da Silveira. Embora contemporânea da geração flower power, essa história, contada no livro Mare nostrum (Editora Senac, 265 págs., R$ 28) não é um exemplo do desbunde da época – descreve, em vez disso, um caminho angustiado, místico e profundamente responsável. O LSD saiu de sua vida quando Fauzi quis dar o exemplo a pessoas desestruturadas pelo uso deslumbrado da droga e tentavam aprisioná-lo no papel de guru. Para desgosto dos espectadores que o viram representar nos anos 60, em peças como Pequenos burgueses, de Gorki, Fogo frio, de Benedito Ruy Barbosa, e O inspetor geral, de Gogol, ele deixou para sempre o palco, por não querer ficar reduzido à imagem do ator famoso. O teatro e a astrologia são hoje suas ferramentas. "Conhecer o seu lugar no universo é chegar mais perto de Deus", diz.
ISTOÉ – Como você classifica seu livro?
Fauzi Arap – Inicialmente, pensava em só autorizar a publicação depois da minha morte. Mas quando dirigi A quarta estação, há quatro anos, o Juca (de Oliveira) descobriu que eu escrevia à máquina e me obrigou a escrever no computador. Então comecei a passar o livro a limpo, e achei que estava bom, que estava claro, que podia ser útil a outras pessoas. Menos até àquelas que passaram pelas experiências da contracultura e das drogas nos anos 60 e 70 e mais a quem nunca ouviu falar nisso. Acho que meu livro talvez seja um testemunho de fé.
ISTOÉ – Fé em quê?
Fauzi Arap – Na capacidade do homem de desenvolver a sua espiritualidade, encontrar seu lugar no universo. Para algumas correntes do espiritualismo como a teosofia, criada pela escritora russa Helena Petrovna Blavatsky (1831-91), por exemplo, o mundo seria originalmente um campo energético que se poderia chamar de Deus e o homem seria uma alegoria incorpórea de uma raça. A expulsão do paraíso seria uma necessária condenação à materialidade. A meta de Deus seria que o homem voltasse a conquistar, pela autoconsciência, a sua espiritualidade e a sua integração com o universo. Para os teosóficos, nós estaríamos vivendo um pico de materialismo e prestes a retomar uma ascensão.
ISTOÉ – Qual a sua afinidade com a Nova Era?
Fauzi Arap – Tem muita coisa interessante, talvez ela represente os primeiro passos, a preparação para um salto de consciência grupal, aquariano. Mas talvez pelo meu caminho ter passado pela psicanálise e ter sido tortuoso, nem sempre consigo me sentir identificado... Eu não consigo ser tão puro. Alguns caminhos que vivi não me permitem ser tão inocente.
ISTOÉ – Qual a sua afinidade com Paulo Coelho?
Fauzi Arap – Eu não tenho lido Paulo Coelho, mas me sinto amigo dele. Quando dei aula de teatro no Rio de Janeiro, em 1965, nós tínhamos muitos amigos comuns. Foi ele, aliás, quem batizou a minha peça Pano de boca. Em 1975, a Hildegard Angel, que era atriz, pretendia produzir minha peça. Eu tinha uns 12 títulos e estava indeciso. Ele escolheu para mim. Eu acompanhei com interesse todo o seu trabalho ao lado do Raul Seixas, e escolhi uma de suas músicas, Gita, para que Bethânia cantasse e faz sucesso até hoje. Li alguma coisa do Alleister Crowley, que era o guru dos dois, Raul e Paulo, à época da sociedade alternativa. Mas depois de algumas experiências que os assustaram, parece que o Paulo voltou ao catolicismo. Não tenho uma plena empatia com sua literatura, mas eu me identifico com o que ele prega e acredito piamente em sua integridade.
ISTOÉ – Pode-se dizer que você possui uma sensibilidade especial?
Fauzi Arap – Eu não nasci bem conectado ao corpo. Desde menino eu tinha uma espécie de consciência meio separada. Às vezes, jogando pingue-pongue, eu saía da competição e me via jogando. Depois vim a saber que a repetição é uma das técnicas da meditação para atingir outros estados de consciência.
ISTOÉ – Sobre seu livro, a atriz Myriam Muniz resumiu, brincando: "Você tomou ácido e encontrou Deus. Também quero." Isso é verdade?
Fauzi Arap – É uma simplificação, claro. Deus sempre está lá para todo mundo, até para os desatentos. Aprendi que encontrá-lo é só uma questão de chamar corretamente. Pode ser pela oração, pode ser pela meditação, pelo que você preferir. Ele atende por todos os nomes
ISTOÉ – Você pode ser definido como um iniciado?
Fauzi Arap – Eu não passo de um aprendiz. O universo tem seus arquivos, que são chamados de akasha, pelos hindus, e de insconsciente coletivo, por Jung. E para consultá-los você tem que se habilitar para isso, preparar-se. No meu caso, tive alguns contatos esporádicos, facilitados quimicamente pelo LSD. Houve um momento, nos anos 60, em que eu estudava Jung adoidado, tomava ácido e refletia muito e, sobretudo, tentava ajudar os pacientes da Casa das Palmeiras, criada pela psiquiatra Nise da Silveira, no Rio. Naquele período, tenho a impressão que me deixaram dar uma espiadinha.
ISTOÉ – E você sempre acreditou na existência de Deus?
Fauzi Arap – A certa altura, eu não sabia mais. Embora na infância eu fosse religioso e embora a educação religiosa fosse uma coisa horrorosa, que ameaçava com o inferno o menino que apenas ouvisse um palavrão, mesmo assim eu tentava me enquadrar. Quando eu entrei na faculdade, na época em que Sartre veio ao Brasil, como toda a minha geração, eu aderi ao pensamento marxista, procurava ver tudo só pela dimensão política e econômica. Mas o marxismo até que serviu para me limpar dos resíduos daquela educação religiosa opressiva.
ISTOÉ – E aí alguém lhe falou sobre o ácido lisérgico...
Fauzi Arap – Como eu conto no livro, uma amiga atriz me levou a um psiquiatra que trabalhava com ácido no consultório. Eu estava em busca de me conhecer, de procurar o meu próprio centro. E isso tem tudo a ver com se aproximar de Deus, mas eu não sabia. Já da primeira vez, vivi uma espécie de êxtase, como se eu tivesse saído do meu corpo. Embora no começo eu tenha associado esse estado apenas ao fato de ter experimentado o ácido, depois pude me lembrar de que, como ator, em alguns exercícios teatrais dirigidos por (Augusto) Boal, quando eu conseguia me soltar completamente me vinha um bem-estar parecido.
ISTOÉ – O que é esse bem-estar?
Fauzi Arap – É uma espécie de êxtase, porque parece independer da sua responsabilidade e da sua vontade. E há um sentimento de que tudo está certo, não se duvida de nada nem se critica nada. Esses momentos não duram para sempre, os livros e os sábios nos ensinam, e acontecem poucas vezes na vida. Mas a memória deles permanece como uma referência que te guia e te alimenta. É impossível não sentir nostalgia desse sentimento de plenitude e o desejo de repeti-lo se parece com um vício.
ISTOÉ – De que maneira o teatro pôde lhe proporcionar tamanho êxtase?
Fauzi Arap – Quando comecei como ator eu era muito tímido e no Oficina eles eram meio reticentes a meu respeito. Nos laboratórios do Boal, eu descobri uma fonte de inspiração e uma estrutura que dava suporte à minha espontaneidade. Numa das peças, Fogo frio, do Benedito Ruy Barbosa, eu conseguia representar cada dia melhor, eu sentia um barato representando. Fui ficando tão afinado, tão pleno que assistia ao meu corpo fazer o gesto correto como se não fosse eu que estivesse fazendo. Passei do último para primeiro da classe. No momento de pico dessa experiência era como se minha consciência estivesse dois palmos acima da minha cabeça, assistindo à representação e por duas ou três vezes me senti fora do meu próprio corpo. Quando vivi com o ácido, esse mesmo estado de dualidade de consciência já era meu conhecido.
ISTOÉ – Então a interpretação também o fez encontrar Deus?
Fauzi Arap – Eu não pensava em Deus. Nós éramos marxistas. A gente estudava com o Boal as leis da dialética, comprávamos uma quantidade de livros que eu nem cheguei a ler, Lúkacs de capas lindas. Na verdade, o que esses estudos me deram foi um instrumento de penetração no texto, uma nova ferramenta de compreensão. Só mais tarde, com outras leituras sobre o espiritualismo, eu descobri que o método Stanislávsky (técnica de interpretação criado no começo do século pelo ator russo Constantin Stanislávsky), que era a base do método do Boal, é absolutamente análoga a muitas técnicas da ioga, como a concentração, a visualização. Talvez tenha sido por isso que minha entrega e dedicação plenas tenham resultado algumas vezes naquela sensação de sair do corpo.
ISTOÉ – E você enterrou para sempre o marxismo?
Fauzi Arap – Por muitos anos. Mas percebi que o espiritualismo mais alto recoloca a questão do marxismo ao afirmar que sozinho você não atinge a plenitude. Chegar sozinho ao êxtase é coisa da magia negra, em que você pode chegar ao nirvana, mas não ao infinito. A magia branca é absolutamente altruísta. Os verdadeiros magos são pessoas que agem esquecidas de si e compartilham tudo. Chegam a adiar a própria ascensão para primeiro ajudar aos outros. Esse é o verdadeiro sentido daquela frase "os últimos serão os primeiros".
ISTOÉ – Você conta em seu livro que ao ler Paixão segundo GH, de Clarice Lispector, teve uma prova de que não era louco. Que tipo de experiência você compartilhou com Clarice?
Fauzi Arap – Na época do show Rosa dos ventos, Clarice me levou a uma missa de páscoa Rosacruz que me descortinou um mundo. Era numa casinha modesta, com umas 20 ou 30 pessoas numa sala e os oficiantes. Quando começou, eu senti uma certa opressão, mas logo experimentei um intenso bem-estar. Era como se dali irradiasse algo como um ar-condicionado. Mas Clarice, pelo contrário, pingava de suor a ponto de termos de sair no meio. Eu acho que Clarice era um pouco vidente e ela confundia isso com loucura. Ela devia estar enxergando mais do que eu naquela cerimônia e não suportou a carga. Voltei muitas vezes lá. Para mim, era uma espécie de casa bem-assombrada.
ISTOÉ – Por que você interrompeu a experiência de autoconhecimento via LSD?
Fauzi Arap – Meu projeto, ao me mudar para o Rio, na época do Arena, era apenas estudar Jung e trabalhar com a Nise da Silveira. Mas como o primeiro show da Bethânia, Rosa dos ventos, estourou, eu fiquei muito em evidência e caí na armadilha de tentar ajudar as pessoas, de corresponder à expectativa delas de que eu fosse uma espécie de guia espiritual. Minha força eram justamente o isolamento e a reflexão que o LSD me propiciava e eu me deixei invadir pelos anseios dos outros. Assumi uma tarefa acima das minhas forças e fui ingênuo quanto às verdadeiras intenções das pessoas que me cercavam. Às vezes não era nada espiritual o que as fazia se aproximar de mim, era apenas a fantasia de que eu serviria de ponte para um trabalho no teatro ou alguma coisa assim. Olhando de hoje, vejo que eu me comportei como um super-herói.
ISTOÉ – E a gota d’água foi atribuírem a você o papel de vidente, que teria previsto o desastre com o avião de Leila Diniz...
Fauzi Arap – Eu tinha organizado uma reunião para tentar dar alguma referência àquelas pessoas que me procuravam e que estavam muito perdidas. Aí alguém me perguntou se era verdade que eu tinha tido um pressentimento sobre um desastre com o avião em que a Marília Pêra ia viajar nos dias seguintes. Naquele momento eu percebi o quanto tinha me desviado do meu caminho e que, se eu respondesse, nunca mais eu ficaria livre daquele papel de super-herói, e eu tive uma explosão. Foi uma explosão tão violenta e me fez tão mal que acho que nos últimos 20 anos eu não fiz nada além de me recuperar do trauma daquele momento.
ISTOÉ – E você se recuperou?
Fauzi Arap – Eu me reeduquei para caber no mundo como ele é. Mas também caí em outra armadilha, que foi me condenar a uma excessiva caretice, a ficar mais crítico e a duvidar de tudo. Eu parei o LSD para dar o exemplo. Também não fumei mais. E me reencontrei com a minha impaciência, com a minha exasperação. Eu tentei me aproximar de algumas fraternidades, de grupos que cultivam um trabalho espiritual, mas compreendi que sou diferente. As fraternidades são rígidas, fechadas. Descobri que dominando uma linguagem mais aberta, sendo artista, eu posso ser muito mais útil.
ISTOÉ – Hoje a arte é seu único caminho para o autoconhecimento?
Fauzi Arap – A astrologia me ofereceu um sistema que atende ao meu anseio de liberdade individual. É uma coisa que eu adoro. Eu sou uma pessoa original e preciso de um espaço individual. Eu era presa de chantagens, do medo de dizer não. Não sabia me proteger. A astrologia é um filtro para me proteger disso e um instrumento de aceitação mais plena do outro.
ISTOÉ – Hoje ainda lhe custa muito ser uma pessoa adaptada às regras da maioria?
Fauzi Arap – Começar a escrever e a dirigir foram maneiras de me adaptar ao mundo como ele é. E aprendi a não criticar superficialmente. Os testemunhas de Jeová, por exemplo, que pagam o dízimo. A gente não paga a sessão de análise para tentar se sentir bem? E análise é tão cara...É claro que pessoalmente eu prefiro o analista ou, sei lá, a ioga àquela aeróbica que passa na televisão, mas eu me digo: aeróbica é bom para um outro tipo de pessoa.
ISTOÉ – Você tem um notório horror a ser fotografado. Por que isso acontece?
Fauzi Arap – A luz forte sempre me incomodou e eu detesto me sentir dirigido. Além do que meu ideal é não ser o garoto-propaganda de mim mesmo. Adoraria não ir ao Jô, não aparecer em revistas. Será uma estupidez da minha parte? As coisas, no caso o livro, deveriam ser verdade pelo que elas são, sem necessidade de você ficar falando. Eu sou um apaixonado por um tipo de anonimato, pelo não ser, para poder vivenciar o outro. Isso me dá grande prazer. Sinto mais desejo de sumir, de migrar para o interior de mim
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