Psicodélico: março 2007

domingo, 25 de março de 2007

Experiência com Ayahuasca.

Segue um relato sobre uma experiência com Ayhuasca retirado do livro : Ayahuasca - Alucinógenos, Consciência e o Espírito da Natureza. Organizador : Ralph Metzer.

Estamos Experimentando o Maravilhoso Fenômeno da Re-criação

Cristina Santos

Nesta narrativa, uma escritora e terapeuta de shiatsu, de 29 anos de idade, faz uma reflexão sobre suas experiências de adolescência com as drogas psicoativas, e ainda sobre suas vivências tardias em torno da meditação iluminadora do budismo, comparando-as com a profunda união com as árvores e com a manifestação intensa de força vital vivenciadas por ela através da ayahuasca.


Meu trabalho com enteógenos começou quando eu estava com 15 anos de idade. Eu, meu irmão mais velho, e Will, nosso melhor amigo, tínhamos o hábito de tomar LSD para depois sairmos a pas­seio no bosque que ficava atrás da nossa casa num subúrbio de Connecticut. A caminhada terminava ao chegarmos ao nosso cantinho favorito: uma clareira aconchegante cravada no meio da mata, que possuía um delicioso laguinho. A melhor época para tais aventuras era o verão, quando podíamos pernoitar, vestidos com roupas leves e esti­rados confortavelmente na relva. Nossas viagens eram cercadas de aro­mas e abrigadas pelas estrelas que nos serviam de guias. Depois que saí do ginásio continuei minha exploração em companhia da ma­conha, do PCP (pó de anjo) e do ópio, além de nesta época ter iniciado um namoro com o MDMA (Ecstasy), que durou até os anos da universidade.

Minha universidade ficava em Minnesota, e lá acrescentei a mescalina e a psilocibina à minha crescente lista de companheiros de viagem. Nas férias de verão do meu primeiro ano, Will me chamou a atenção para um curso de meditação budista que ele havia feito em Shelburne Falls, Massachusetts. Ele me convenceu a fazer o curso: "Pode acreditar que vai ser uma viagem incrível! A fragmentação do seu corpo em minúsculas partículas subatômicas será a melhor coisa que você vai sentir!" Obvia­mente, para quem já estava apaixonada pelos enteógenos, a promessa de tal meditação era um convite para lá de sedutor.

Telefonei, então, para o Centro de Meditação Vipassana, e reser­vei minha vaga no curso de dez dias que viria a seguir. Depois desse período de completo silêncio e de meditação ao longo de 12 horas por dia, descobri que o curso não era apenas de uma viagem. Porque me foi extremamente doloroso ter de ficar sentada para meditar por perí­odos seguidos de uma a duas horas, fazendo com que minha agitação mental chegasse ao limite. Por ter me sentido um fiasco como budis­ta, e a despeito de ter prometido a mim mesma que concluiria aqueles dez dias, jurei que nunca mais passaria de novo por uma meditação.

No último dia do curso, no ápice de minha angústia, revelei meu sentimento para Paul, meu instrutor (psiquiatra e mestre experimen­tado de Vipassana). Seu jeito tranqüilo me deixou inteiramente rela­xada, e assim ele me convenceu a meditarmos juntos por algum tem­po. Coloquei-me frente a ele na posição de lótus, e passei à técnica de explorar sensivelmente meu corpo, da cabeça aos pés. Passados alguns instantes, percebi uma sólida energia azul a se movimentar na minha cabeça. Ela atingiu minha garganta, provocando uma sensação de es­talo semelhante ao desarrolhar de uma garrafa de champanhe, que me fez chorar descontroladamente. Deixei a sala, onde umas cem pessoas meditavam em silêncio, e fui para o lado de fora da casa, e ali acolheu­-me a brisa morna do pôr-do-sol de Berkshires.
Eu estava tomada por algo que hoje consigo identificar como um tremendo pesar, ou melhor, uma profunda e extática conexão com o sofrimento deste planeta; embora, tenha sido gratificante e poderosa a satisfação de matar minha fome de algo do qual até então eu não estava consciente. Os budistas chamam a isso de dukkha, ou seja, a experimentação direta do sofrimento universal, e este é o primeiro passo no caminho da iluminação.

Apesar de ter jurado nunca mais meditar, embarquei em uma prá­tica de meditação que já vem durando mais de uma década com lon­gas horas diárias de dedicação, além de todo ano me inscrever em cur­sos de dez dias. Desde então, a técnica da vipassana, isto é, o próprio dharma, tem sido um grande mestre nestes meus 29 anos de vida. Aos 20, abandonei todas as drogas, primeiramente pela minha intenção de explorar a Vipassana de acordo com os seus mais puros preceitos, que excluem os agentes intoxicantes, e, depois, porque o tempo me fez sentir que eu não precisava dos enteógenos para investigar ou expandir a consciência. Contudo, no último inverno, depois de mais de uma década na prática pura do dharma, e seis meses antes do meu trigési­mo aniversário, as plantas mestres surgiram inesperadamente no ca­minho do meu autoconhecimento.

Eu e um amigo chegamos em Coba no final de uma tarde, ambos exaustos devido a uma viagem através do Iucatã. Burt, este meu ami­go químico, perguntou-me se eu queria experimentar a pharmahuasca [uma combinação de duas drogas sintéticas, similar à beberagem da ayahuasca] que ele havia preparado no seu laboratório. Expli­cou-me que a viagem duraria umas três horas, e que só então poderí­amos nos alimentar e dormir. Aceitei a proposta, ingerimos com água a cápsula que continha a pharmahuasca (150 mg de harmina + 100 mg de DMT pura), e nos pusemos à vontade naquele quarto confor­tável de hotel à espera do início da viagem.
Como já era previsto, levou uma hora para que tal acontecesse. E tudo começou de forma adorável, logo surgiram algumas cores líqui­das que se misturavam, suspiros profundos e extasiados que indicavam a perda do soma, e ainda uma forte sensação de que havia sido remo­vido o teto da minha psique, abrindo assim um espaço infinito sobre minha cabeça. Esta experiência, porém, não me agradava de todo, pois sua ação era a de uma droga de laboratório. Eu me sentia intoxicada, ao invés de me sentir iluminada, e me via inebriada, em vez de estar conectada, e também fiquei tão entediada que comecei a contar os minutos para que as três horas passassem depressa. Sugeri que fôsse­mos para o lado de fora, achando que perto do lago, e a céu aberto, talvez eu pudesse vivenciar a comunhão que havia planejado quando resolvi ingerir a pharmahuasca.

Andamos até o final de um pier que se estendia ao longo das águas do lago, e ali nos acomodamos em silêncio, abrigados pelo brilhante minueto das estrelas no céu. No instante em que as três horas já quase chegavam ao fim, sem que tivesse havido qualquer sinal de comunhão, falei para meu amigo: “Acredito que você já saiba da enorme diferença entre tomar esta droga química e ingerir o material da planta que lhe serve de base!" Havia nesta afirmativa uma convicção que vinha de algum lugar que eu não conseguia identificar, mas eu não deixava de estar certa. O meu leal amigo cientista emitiu um resignado "hum, hum", demonstrando assim que já tinha ouvido os inumeráveis argu­mentos dos organófilos em favor das substâncias naturais, e não nu­tria qualquer intenção de defender sua criação. Depois, me dei conta de uma árvore iluminada pela luz de um poste na entrada do hotel, que também estava situada à beira do lago, e isto me fez expressar a intenção de ir até lá para mirá-la. Nossa viagem já tinha mesmo ter­minado, e retomamos ao ponto de partida, caminhando pelo pier de­baixo do céu índigo do Iucatã, para visitar aquele majestoso vegetal.

Aproximei-me daquela árvore da mesma forma que me aproxima­ria do meu amado, ou seja, em um clima de enorme intimidade. Dis­pus delicadamente minha mão sobre seu tronco, pois eu queria acariciá­-la com todo meu afeto, de tal maneira que as linhas dos meus dedos pudessem explorar cada um dos nós de sua superfície, depositando meu carinho em cada casquinha do seu corpo. Por fim, as graciosas curvas convidaram-me a escalar seu tronco; uma vez aí, apoiei meu peso so­bre seus galhos bifurcados, colocando os braços ao redor de um enorme galho, com isso as batidas do meu coração começaram a reverbe­rar na sólida estrutura daquela árvore. De repente, comecei a chorar, deixando extravasar o mesmo pesar, ou melhor, a mesma dukkha pela qual passara, uma década antes, naquela sala de meditação. Meu peito sacudiu em espasmos e as lágrimas rolaram pela minha face, como se as múltiplas formas do sofrimento do planeta estivessem vertendo sobre mim.

Meu profundo pesar dirigia-se a todo aquele que vive a vida sem jamais experimentar a verdadeira paz da mente e do coração. Assim fiquei até que este sentimento diminuiu de intensidade, fazendo com que eu percebesse que meus dedos encontravam-se sobre o nó de um galho que possuía a forma de uma vulva. E, para a minha surpresa, aquele galho estendia-se até o limite de uma forma ovular, dando a impressão de ser uma mulher de cabeça para baixo, tendo as pernas ligeiramente abertas e os pés esticados para o céu. Comecei outra vez a chorar, agora com um sofrimento muito particular, isto é, o de uma mulher que havia sido estuprada.
Nos quatro anos anteriores, eu tinha trabalhado com sobreviventes de abusos sexuais na minha prática privada do shiatsu. O que a árvore me dizia tinha a ver com o meu trabalho, e concluí que a partir dali não deveria mais fazer um simples acompanhamento do sofrimento das mulheres, - minha função mais importante teria de ser a de ajudá-las a se tornarem capazes de celebrar e criar. A própria árvore parecia querer ilustrar esta evidência, pois logo retirou-me do sofrimento, fa­zendo com que eu deslizasse a mão suavemente por aquela pequena vulva, de maneira a deslocar a atenção para outro galho. E o sentimento que este novo galho transmitia era o de espontaneidade e criatividade, ou seja, de muita alegria! Todas as imagens que vieram à minha men­te estavam relacionadas com a poesia, a dança, a escultura, e o riso.

Esta nova experiência, porém, que também dizia respeito à dukkha não me era familiar, por isso, eu insistia em retornar ao pesar intenso e profundo já conhecido por mim. Contudo, paciente e persistentemente, a árvore voltava a redirecionar meu foco de atenção para a alegria do outro galho que expressava o mundo da criação e da renovação. Sua mensagem era bem clara: você já conhece a ladainha lamuriante de cor e salteado, agora é o momento de ensinar a si mesma uma nova canção!

Fui desenvolvendo minhas forças para mergulhar no ritmo da alegria, mesmo porque eu já estava maravilhada com aquela árvore, por ela ser capaz de um ato tão criativo. Passei a examinar os intrincados padrões de enroscamento do seu córtex, e a sentir a aspereza das pre­gas em torno da sua estrutura lisa. Fiquei admirada diante da estupen­da ascensão sensual dos seus galhos, que se esticavam para o alto como se quisessem abraçar o espaço infinito. E, então, aproximei os lábios da casca áspera do seu tronco, para lhe sussurrar: "Olha só a forma que você mesma se deu! Menina, você é absolutamente linda!" Neste ins­tante, a lição de criatividade tornou-se mais clara ainda. Cada um de nós se desenha a si próprio a partir de uma energia imensamente pura, e por isso existem tantos olhos maravilhosos, um sem fim de mãos educadas, e este planeta verdejante que respira através dos seus pulmões também verdes. Entretanto, sobre-sob-dentro-e-fora de tudo isso algum ato irresistível de criatividade quis que existíssemos, e todos nós passamos a vivenciar o divino e maravilhoso fenômeno da re-criação. Enfim, a vida é por si mesma uma obra de arte indescritivelmente magis­tral que está sempre a estimular as raízes desta florida e humana criatura.

Meu amigo e eu retomamos ao quarto de hotel; ele, para dormir um pouco, e eu para viajar com o espírito da ayahuasca por mais oito horas. Assim, comecei a vivenciar os movimentos do planeta à medi­da que passei a sincronizar o ato de inspirar e expirar com o fluxo da teia de Gaia. Desci até um recanto de argila vermelha, situado no cen­tro da terra e abaixo do meu umbigo, onde a Mãe Terra falou comigo. Ela acariciou a ruga de preocupação das minhas sobrancelhas e repe­tiu a mesma mensagem que eu havia sussurrado para a árvore: "Olha só a forma que você se deu! Menina, você é absolutamente linda! Veja só como você já se tornou paciente, gentil e adorável aos 29 anos de idade!" Lembrou-me ainda o quanto eu havia amado, o quanto fora leal e, o mais importante, o quanto eu havia mantido minha identida­de, apesar das vicissitudes de minha vida. Esta mensagem penetrou­ me tão profundamente que não tive outra coisa a fazer senão aceitar seu amor incondicional na posição de um quase absoluto relaxamen­to, e de tal maneira que pude me sentir segura e completamente feliz pela primeira vez na vida. Aproximei os lábios na direção do meu amigo adormecido, o bastante para roçar sua doce face, para sussurrar: "Muito obrigada por trazer de volta a minha magia!"

Hoje, passado o verão da minha experiência com a ayahuasca, sigo interpretando e entendendo mais ainda a lição que me foi dada naquelas oito horas intensamente envolventes. Acredito que tal ensinamento tenha chegado à minha vida para que eu refletisse sobre todo o traba­lho anterior que já havia realizado no fundo da minha alma, sobretu­do as assíduas tentativas, que fiz e ainda faço a cada instante, para ver a beleza onde ninguém consegue enxergá-la. Estou certa de que a planta conseguiu me falar com clareza e amor porque passei os últimos dez anos cultivando estas qualidades na minha prática de meditação. E mesmo que minhas primeiras experiências com as drogas tenham se apoiado exclusivamente no "barato da viagem", depois que adquiri disciplina e paciência através de um trabalho constante e diário com a meditação, o espírito da ayahuasca passou a responder ao meu chama­ do com a voz da maturidade. Mas, acima de tudo, creio que esta voz veio a mim para que eu não esquecesse do veículo que serviu à minha magia, ou seja, os enteógenos, e mais ainda para me estimular a inves­tigar a relação de sinergia entre minha magia, meu processo meditati­vo baseado no caminho do dharma e meu trabalho de cura.

Sugestões e precauções para o uso de psicodélicos

1. Conhece as tuas fontes. Existem muitas drogas psicadélicas adulteradas e falsificadas à venda nas ruas.

2. Nunca tentes apanhar cogumelos psilocibes no campo sem saberes o que estás a fazer.
3. Cogumelos psilocibes cultivados variam muito em potência. Informa-te sobre a dose adequada antes de os comeres.

4. Não tomes drogas psicodélicas a não ser que te encontres em boa forma física e psicológica.

5. Se estás a tomar drogas psicadélicas pela primeira vez, fá-lo com a companhia de alguém experiente.

6. Toma drogas psicodélicas somente em locais confortáveis e em ocasiões em que não tenhas responsabilidades até pelo menos nas próximas doze horas.

7. Lembra-te que poderás sentir-te cansado ou esgotado energeticamente no dia seguinte.

8. Não tomes drogas psicodélicas com o estômago cheio; estarás menos propenso a sentir náuseas e desconforto se o teu estômago estiver relativamente vazio.

9. Não misteres drogas psicodélicas com qualquer outro tipo de drogas. Os efeitos interessantes dos psicadélicos por vezes desaparecem enquanto a sua estimulação continua. Se te sentires agitado, cansado e incapaz de dormir no final da experiência, será apropriado (e somente neste caso) tomar um comprimido para dormir ou um tranquilizante ligeiro.

10. Lembra-te que as drogas alucinogénicas podem afectar a percepção e o pensamento. Não guies, operes maquinaria, ou efectues actividades perigosas sob a sua influência.

11. Toma as drogas psicodélicas pela boca. Elas têm mais probabilidade de causar más reacções se forem administradas por outras vias.

12. As melhores experiências com estas drogas resultam do facto de serem guardadas para ocasiões especiais e pelas correctas circunstâncias. Se forem tomadas apenas porque estão disponíveis são mais prováveis de não produzir resultados positivos. Tomá-las frequentemente e sem cuidado reduz o seu potencial de te mostrar aspectos interessantes de ti mesmo e do mundo à tua volta.

Fonte:
From chapter eight of From Chocolate to Morphine: Everything You Need to Know About Mind-Altering Drugs, by Andrew Weil, M.D. and Winifred Rosen, Houghton Mifflin 1993.

Origem das palavras Enteógeno e Enteogénico

O neologismo enteógeno ou enteogénico do inglês entheogen ou entheogenic foi proposto em 1973 por uma série de investigadores entre os quais Wasson como o termo apropriado para descrever estados xamânicos ou de possessão extática induzidas pela ingestão de substâncias alteradoras da consciência. Existem autores que consideram que a expressão enteogénico um mero sinónimo de psicadélico, mas existem outros que consideram que tal não se verifica, já que nem todas as substancias usadas num contexto sagrado provocam alucinações, julgando pejorativo o uso de alucinogénicos psicomiméticos e os seus congéneres, prejudicando "os estados transcendentes e beatíficos de comunhão com a divindade" característicos do uso tradicional de drogas visionárias. Estes termos estão tão revestidos com conotações à cultura pop que consideram incongruente dizer que um xamã ingere uma droga psicadélica. De certo modo a distinção reside exclusivamente no contexto em que se enquadra o seu uso, se for dentro de uma realidade religiosa, sagrada e tradicional a experiência e a substancia são consideradas enteogénicas se for num contesto recreativo e associado à moderna cultura pop elas são consideradas psicadélicas. A palavra enteógeno significa literalmente: "manifestação interior do divino", deriva de uma palavra grega obsoleta, que se refere à comunhão religiosa com drogas visionárias, ataques de profecia, e paixão erótica, e está relacionada com a palavra entusiasmo. Se bem que na etnografia com este termo se tenha resolvido de forma elegante o problema constituído pela necessidade de encontrar um termo culturalmente apropriado e não pejorativo para descrever o contexto do uso destas substancias, a farmacologia ainda não chegou a acordo sobre o termo para descrever as suas acções farmacológicas. O uso do termo alucinógeno continua a designação predominante entre os cientistas mais idosos, apesar da maioria das substancias não provocar alucinações no sentido clínico. O termo psicadélico continua muito utilizado pelos jovens cientistas, mas geralmente referindo-se apenas a substancias cujos efeitos são semelhantes aos do LSD ou da mescalina.

As portas de uma outra dimensão

Os enteógenos e os psiconautas: a expansão da
consciência través de plantas chega ao século XXI


DÉBORA LERRER


Plantas alucinógenas têm sido usadas em ritos religiosos por várias culturas ao longo dos séculos. Ao promoverem estados alterados de consciência, estas plantas agem como mediadoras entre o mundo da experiência imediata e as infinitas dimensões espirituais que permeiam toda a existência. Por esta razão são vistas por algumas culturas como portadoras de inteligência e são consideradas fontes de uma profunda e misteriosa sabedoria, instrumentos do divino, fontes de beleza e inspiração, assim como meio para manter a integridade cultural.
Hoje em dia os devotos das experiências visionárias abastecidas por plantas e químicos preferem denominá-las "enteógenos", palavra originada a partir do grego e que quer dizer "tornar-se divino interiormente". Para esses modernos "psiconautas", a palavra psicodélico carrega demasiada bagagem cultural. O objetivo deles, ao embarcarem em viagens com os enteógenos, é acessar outros planos de consciência, entender mais amplamente seu processo de vida e se conectar com a natureza. Mas há que se ter cuidado. Embora não haja efeito colateral conhecido, nem registro de dependência química ou dano cerebral, há alguns riscos psicológicos, particularmente para aqueles com histórico de problemas mentais. Os portais da consciência só devem ser abertos em contextos seguros, para que eles promovam um encontro iluminador e não desestruturante.
O médico Otávio Castello de Campos, que toma chá de ayuasca regularmente dentro dos rituais da União Vegetal, explica: "Uma coisa é você pegar uma substância dessas, sintetizá-la e distribuí-la em uma danceteria na cidade. Outra coisa é você usar esta substância dentro de um contexto ritual, onde ela não é a finalidade em si e é encarada como um veículo sagrado, que está dentro de uma esfera cultural, um conjunto de valores".
Uso moderno de ritos antigos
Na Grécia Antiga, durante a celebração dos Mistérios de Elêusis, dedicada à Deusa Deméter, na primavera, o iniciado bebia uma poção, o Kykeon. Em vários povos ameríndios, a ingestão de substâncias alucinógenas é parte fundamental de seus rituais religiosos. Os povos Huichol e Tarahumaras do México e vários povos indígenas da América do Norte usam o cacto peyote em rituais que duram a noite toda, extensamente descritas por antropólogos. Para numerosos grupos indígenas da Amazônia o uso da ayahuasca, o "vinho da alma", é parte fundamental de sua concepção de mundo. Em geral, é através do uso ritual de plantas alucinógenas que os xamãs vão se treinando para adquirir seus poderes.
No início do século XX, os dadaístas e surrealistas, seguindo o escritor e teatrólogo Alfred Jarry, exploraram o uso de haxixe e da mescalina, princípio ativo do peyote, para aumentar a criatividade. A experiência com o peyote, junto ao povo Tarahumaras, no México, também teve um lugar importante na obra do ator e escritor francês Antonin Artaud, que escreveu vários textos inspirado por esta experiência. Esta experiência com os indígenas mexicanos também teve considerável influência na concepção artaudiana do Teatro da Crueldade, pois seu objetivo era conseguir elevar os espectadores a uma espécie de transe teatral.
A aversão de Artaud ao teatro tradicional, que ele chamava de burguês, retoma uma concepção elaborada por Nietzsche, em seu livro de estréia, "O Nascimento da Tragédia", em que ele advoga que nos primórdios dos ritos teatrais gregos não havia espectadores passivos. Segundo o filósofo, os espectadores também ingeririam substâncias e em contato com a máscara de Dionísio, Deus que simboliza o espírito teatral, se sintonizavam com a mensagem trágica. Em 1954, o escritor inglês Aldous Huxley narrou as percepções provocadas por sua experiência com a mescalina em seu livro "As portas da percepção". Huxley também teve experiências com o LSD, que ele considerava particularmente útil para alcançar percepções espirituais. Mas foi na década de 70, a partir dos cultuados livros do antropólogo Carlos Castañeda, que o uso ritual de plantas se tornou conhecido em todo o mundo. Grande parte da obra de Castañeda, inclusive seu primeiro livro "A erva do diabo", é derivada das experiências de ampliação da percepção motivadas pelo peyote, ao qual ele foi iniciado pelo xamã Don Juan.
A invenção, a popularização e o ostracismo do LSD
O uso de substâncias alucinógenas se popularizou no Ocidente a partir da década de 60, embalado pela revolução de costumes que caracterizou a década. A mais popular delas, o LSD, foi resultado de uma pesquisa farmacêutica de rotina, no laboratório Sandoz, na Suíça, em 1938. O farmacêutico Albert Hoffman tentava produzir um novo remédio que facilitasse o trabalho de parto, quando sintetizou o primeiro LSD (Lysergic Acid Diethylamide ou Dietilamida do Ácido Lisérgico). Anos mais tarde, em 1943, sem perceber que havia absorvido uma dose de LSD ao trabalhar sem luvas, Hoffman sentiu os efeitos do alucinógeno que havia criado e que o tornou reverenciado por psiconautas de todo o mundo. Inicialmente, o Sandoz distribuiu o LSD para pesquisas científicas. Eram os primórdios da psiquiatria farmacológica e não havia remédios desenvolvidos para tratar doentes mentais que lotavam hospitais e asilos psiquiátricos. A carreira do LSD como experimento de pesquisa gerou bons resultados. Os psiquiatras canadenses Abram Hoffer e Humphrey Osmond tabularam resultados de 11 diferentes estudos de alcoolismo e concluíram que 45 % dos pacientes tratados com LSD melhoraram.
Quem o tirou do meio científico e o levou para as ruas foi o psicólogo norte-americano Thimoty Leary, PhD de Harvard que ficou conhecido como o "guru do LSD". Ao obter resultados positivos em sessões de LSD com presos, Leary passou a elaborar várias teorias sobre substâncias psicoativas, sua função social dentro da cultura, da arte e da ciência. A partir disso, impressionado com o potencial de abertura da consciência que o LSD proporcionava, Leary começou a propagar seu uso em sessões grupais guiadas pelo Livro Tibetano dos Mortos que caiu como uma luva na atmosfera da contra-cultura norte-americana. Em 1966, entretanto, o LSD foi proibido e Leary, preso. A popularidade e o uso indiscriminado do LSD acabou mostrando seu lado obscuro e todas as pesquisas que o utilizavam foram abandonadas.
Psicodélicos e tecnologia
A proibição do uso de alucinógenos, entretanto, não diminuiu sua procura, inclusive em circuitos plenamente incorporados ao status quo, como é o caso do Vale do Silício, meca da indústria informática norte-americana. Por razões óbvias, estatísticas confiáveis sobre a extensão do uso de psicodélicos naquela área não existem, mas há pelo menos um dado que revela seu interesse pelo assunto. Rick Doblin, o fundador do MAPS, uma associação multidisciplinar para o estudo de psicodélicos, diz que mais de 50% de seus recursos vêm de dirigentes do Vale do Silício. Embora não goste de falar sobre isso, Bill Gates, o dono da Microsoft, admitiu em entrevista à revista Playboy que teve experiências com o LSD quando estudava em Harvard. Outro membro fundador da Microsoft, Bob Wallace, é menos comedido. Ele acredita que o caos criativo e o potencial visionário proporcionado pelo uso recreacional de LSD foram responsáveis por inspirações cruciais no desenvolvimento de programas de informática. Logo, não é exagerado atribuir às experiências psicodélicas a criação das janelas do tão usado Windows.
Já o Nobel de Química de 1993, Dr. Kary Mullis, é ainda mais enfático. Ele atribui ao uso de LSD a criação do PCR, uma técnica biológica molecular sofisticada que permite a multiplicação de pequenos fragmentos de DNA, descoberta científica que lhe valeu a indicação para o prêmio. Segundo Terence McKenna, autor de vários livros em torno de xamanismo e uso de psicodélicos, não seria a primeira vez que estas substâncias teriam contribuído para a evolução humana. Em seu livro "The Food of Goods", de 1992, McKenna, que morreu no início de abril, defende que a ingestão de cogumelos mágicos propiciou que nossos ancestrais aumentassem suas capacidades lingüísticas e visuais.
Combustíveis para a outra dimensão
DMT - Um dos alucinógenos mais poderosos, o DMT (Dimetiltriptamina) é uma substância química produzida por diversos animais e vegetais, inclusive pelo próprio homem. Alguns pesquisadores apontam que ele seria o responsável pelas visões nos nossos sonhos. O DMT foi sintetizado pela primeira vez em 1956, pelo químico checo Steven Szara. Ao ser fumado, seus efeitos alcançam o pico em dois minutos e enfraquecem depois de dez, mas injeções de DMT produzem viagens mais prolongadas.
Peyote - O cacto peyote (Lophophora williamsii), foi apresentado para a ciência pelo farmacologista alemão Lewis Lewin, que o conheceu em uma viagem pelos Estados Unidos em 1887. Em 1897, Arthur Heffer isolou a mescalina, poderoso princípio ativo presente no topo do peyote, capaz de produzir visões e outras evidências de natureza mística. Assim como outras drogas alucinógenas, o peyote não vicia e, longe de ter uma influência destrutiva, seus usuários e alguns observadores atribuem a ele a promoção de moralidade e comportamento ético entre os indígenas que o utilizam ritualmente. Por esta razão o uso do peyote nos rituais da Igreja Nativa Americana, fundada por índios norte-americanos, é hoje reconhecido e permitido pelo governo federal norte-americano.
Ayahuasca - Bebida usada em rituais na América do Sul, sobretudo na Bacia Amazônica. Conhecida também como daime e huasca, caapi, ou yagé, é obtida a partir da fervura de duas plantas amazônicas, o cipó jagube ou mariri (Banisteriopsis caapi) e o arbusto chacrona (Psychotria viridis). Indígenas e seguidores das religiões União Vegetal e Santo Daime sustentam sua virtude, que inclui poderes de cura e de clarividência. Pesquisadores já provaram que a bebida produz efeitos notáveis que envolvem freqüentemente a sensação de voar. O nome ayahuasca vem de palavras em quechua, língua dos povos indígenas do Peru. Aya pode ser traduzido como "alma" ou "espírito" e "huasca", vinho. Pesquisadores que desenvolveram um estudo com os freqüentadores da seita União do Vegetal, em 1993, concluíram que o uso do chá ayahuasca não gera dependência química e teria, inclusive, ajudado alguns deles a superar o alcoolismo.
Cogumelos Mágicos - Certos cogumelos são usados em cultos entre povos indígenas da América Latina, especialmente no Estado de Oaxaca, no Sul do México. A espécie principal é a Psilocybe mexicana, cujo princípio ativo é o psilocibina e seu derivado psilocina. Mas existem vários tipos de cogumelos alucinógenos. O mais comum no Brasil é o Psilocybe cubensis. Há uma variação desta espécie, o Psilocybe subcubensis e diversos outros Psilocybes: semilanceata cyanescens, azure. Depois de colhidos, estes cogumelos são comidos crus, ou consumidos em forma de chá. Também podem ser secados para serem ingeridos depois. Os efeitos dos cogumelos são muito similares ao de um ácido, apesar de alguns relatarem uma viagem mais "natural" e a sensação de descolamento da realidade. Pequenas doses podem trazer excitação e euforia, enquanto que doses altas podem trazer distorções de formas e cores e alucinações.
LSD - O LSD altera a percepção da realidade. Ele pode levá-lo a ver o mundo como um lugar mágico, sublime e engraçado. Durante uma viagem, as cores podem parecer mais intensas, os objetos são vistos de maneiras bizarras ou maravilhosas e todos os sentidos podem se tornar confusos e distorcidos. Sintetizado por acaso, a partir de substâncias vasoconstritoras derivadas do ergot, o LSD vem usualmente em pequenos quadradinhos de papel. Ele pode demorar de 20 min a 2 horas para dar um efeito que dura de 7 a 12 horas. Não há como saber o quão forte é uma dose ou o quanto ela pode afetar o usuário. Algumas pessoas voltaram a sentir os efeitos do LSD dias ou mesmos semanas depois de tomá-lo.

A mente de Gaia

Por Terence Mckenna:

"Natureza é a materialização da espiritualidade"

Nosso planeta possui um tipo de inteligência organizada. Ele é muito diferente de nós. Ele teve cinco ou seis milhões de anos para criar uma mente que funciona lentamente, que é feita de oceanos, rios, florestas e gelo. Ele está se tornando consciente de nós, a medida em que nos tornamos conscientes dele. E porque a vida de um depende da vida do outro, temos um sentimento sobre essa imensa, estranha, sagaz, velha, neutra, esquisita coisa, e tentamos descobrir por que seus sonhos estão tão atormentados, e por que tudo está tão desequilibrado.

A Terra tem uma forma de inteligência capaz de abrir um canal de comunicação com os seres humanos individualmente.

A mensagem que a natureza nos manda é: transforme tudo através da sinergia que existe entre a cultura eletrônica e a imaginação psicodélica, entre dança e idéia, entre compreensão e intuição, e dissolva as amarras em que a sociedade o prendeu. Assim você será parte integrante da supermente de Gaia.

A experiência psicodélica é muito mais do que psicoterapia instantânea ou regressão, mais do que um simples tipo de superafrodisíaco, mais do que uma ajuda para formular idéias ou descobrir conceitos artísticos. A experiência psicodélica é, na verdade, o corredor que nos leva a um continente perdido da raça humana, um continente do qual não temos mais nenhuma conexão. E a natureza deste continente perdido da mente humana é o próprio intelecto de Gaia. Se confiamos nas evidências da experiência psicodélica descobrimos que não somos a única forma de vida inteligente neste planeta; descobrimos que compartilhamos com a Terra um tipo de consciência.

Chame essa consciência de Gaia, chame-a de Zeta Reticulians, que esteve aqui há milhões de anos atrás, chame-a de Deus Todo Poderoso, não importa do que você a chama! O fato é que as alegações religiosas de que existe um tipo de poder superior pode ser verificada através dos psicodélicos. Mas isto não é, como Milton diz "O Deus que segurou as estrelas como lâmpadas no céu"; não tem nada a ver com isso. Não é cósmico em escala, e sim planetário em escala. Existe um tipo de inteligência desencarnada... está na água, está no solo, está na vegetação, está na atmosfera em que respiramos.

E nossa infelicidade, nosso desconforto, emerge do fato de que nos perdemos na história, considerando que história é um estado de ignorância originada pelos fatos ditos "reais" de como o mundo funciona.

Agora, por que será que quando ingerimos um neurotransmissor humano como o DMT, encontramos exércitos de gnomos nos ensinando uma forma perfeita de comunicação? Esta é uma pergunta muito difícil. Quando você visita culturas tradicionais como a cultura xamânica da Amazônia e pergunta isto para eles, eles respondem sem hesitação que essas pequenas entidades "são o espírito de nossos ancestrais, pelos quais trabalhamos toda a nossa mágica". Isto acontece no mundo inteiro, é a resposta clássica que os xamãs dão… é através da intersecção dos espíritos, que é uma criatura de outra dimensão, que eles vivem em harmonia com a natureza.

Nós imaginamos muitos cenários diferentes, um futuro tecnológico cheio de inovações sociais, mas acredito que muito poucos de nós consideram seriamente o xamanismo. Xamãs são pessoas que aprenderam a penetrar em outra dimensão, onde nossos ancestrais estão presentes. Não é, vocês sabem, ir ao mundo dos mortos, e sim a descoberta de que esse tal mundo é o lugar de reencarnação dos mortos, um tipo de dimensão superior com altos graus de liberdade, com um senso maior de espontaneidade e de menor dependência do entorpecente mundo material. Este outro universo tenta influenciar o nosso universo, talvez para tentar nos resgatar de nosso drama histórico. Talvez os xamãs tenham estado desde sempre envolvidos com esses mundos invisíveis, e que é apenas o triste destino da cultura ocidental ter perdido contato e consciência com este universo, a ponto dele surgir para nós como uma revelação. Eu acredito que sucumbimos à masculina dominância do patriarcado quando quebramos vínculo com a mente de Gaia, a qual os xamãs acessam através de plantas psicoativas (sem elas o acesso é apenas um rumor inconfirmável).

A mente de Gaia é o que chamamos a experiência psicodélica. É uma experiência sobre o fato de que o intelecto do planeta está vivo, e que sem esta experiência nós vagamos num deserto de ideologias furadas. Com esta experiência o compasso do Eu Superior existente em cada ser humano pode ser acertado.

Nota: (Fonte: www.deoxy.org)

O PODER DO SILÊNCIO

(...) Escrevi dessa maneira sobre as premissas da feitiçaria exatamente como Don Juan as explicou para mim, dentro do contexto de seus ensinamentos.
Em seu esquema de ensino, o qual foi desenvolvido por feiticeiros de tempos antigos, havia duas categorias de instrução.

Uma era chamada "ensinamentos para o lado direito", desenvolvida no estado normal de consciência. A outra era chamada "ensinamentos para o lado esquerdo", posta em prática apenas em estados de consciência intensificada.

Essas duas classes permitiam que os professores ensinassem a seus aprendizes em três áreas de habilidades: a maestria da consciência, a arte da espreita e a maestria do intento.

Essas três áreas de habilidades é o enigma da mente; a perplexidade que os feiticeiros experimentam quando reconhecem o espantoso mistério e propósito da consciência e da percepção.

A arte da espreita é o enigma do coração; o desconcerto que os feiticeiros sentem ao se tornarem conscientes de duas coisas: primeiro, que o mundo parece para nós inalteravelmente objetivo e factual, por causa das peculiaridades de nossa consciência e percepção; segundo, que se deferentes peculiaridades de percepção entram em jogo, as próprias coisas do mundo que parecem tão inalteravelmente objetivas e factuais mudam.

A maestria do intento é o enigma do espírito, ou o paradoxo do abstrato - os pensamentos e ações dos feiticeiros projetados além de nossa condição humana.

A instrução de Don Juan quanto à arte da espreita e a maestria do intento dependia de sua instrução sobre a maestria da consciência, que era a pedra fundamental de seus ensinamentos, que consistia das seguintes premissas:

I - O universo é uma aglomeração infinita de campos de energia, semelhante a filamentos de luz;
II - Esses Campos de energia, chamados de "emanações da Águia", radiam de uma fonte de proporções inconcebíveis, metaforicamente denominada Águia;
III - Os seres humanos também são compostos de um número incalculável dos mesmos campos de energia filamentosos. Essas emanações da Águia formam uma aglomeração encapsulada que se manifesta como uma bola de luz do tamanho do corpo da pessoa com os braços estendidos lateralmente, como um ovo luminoso gigante;
IV - Apenas um grupo muito pequeno de campos de energia no interior dessa bola luminosa são acesos por um ponto de intenso brilho localizado na superfície da bola;
V - A percepção ocorre quando os campos de energia desse pequeno grupo imediatamente ao redor do ponto de brilho estendem sua luz para iluminar campos de energia idênticos no exterior da bola. Uma vez que os únicos campos de energia perceptíveis são aqueles iluminados pelo ponto brilhante, esse ponto é chamado "o ponto onde a percepção é aglutinada", ou simplesmente "o ponto de aglutinação";
VI - O ponto de aglutinação pode ser movido de sua posição usual sobre a superfície da bola luminosa para outra posição na superfície ou no interior. Uma vez que o brilho do ponto de aglutinação pode iluminar qualquer campo de energia com o qual entra em contato, quando se move para uma nova posição ilumina de imediato novos campos de energia, tornando-os perceptíveis. Esta percepção é conhecida como ver;
VII - Quando o ponto de aglutinação se desloca, torna possível a percepção de um mundo inteiramente diferente - tão objetivo e factual como aquele que normalmente percebemos. Os feiticeiros entram nesse outro mundo para obter energia, poder, soluções para problemas gerais e particulares, ou para encarar o inimaginável;
VIII - Intento penetrante que nos faz perceber. Não nos tornamos conscientes porque percebemos; antes, percebemos como resultado da pressão e intrusão do intento;
IX - O objetivo dos feiticeiros é atingir um estado de consciência total de modo a experimentar todas as possibilidades de percepção disponíveis ao homem. Esse estado de consciência implica mesmo uma maneira alternativa de morrer.

Um nível de conhecimento prático era incluído como parte do ensino da maestria da consciência. Nesse nível prático Don Juan ensinava os procedimentos necessários a mover o ponto de aglutinação. Os dois grandes sistemas desenvolvidos pelos feiticeiros videntes dos tempos antigos para realizar isto eram: sonhar, o controle e utilização de sonhos; espreitar, o controle do comportamento.

Mover o ponto de aglutinação de um indivíduo era uma manobra essencial que todo feiticeiro tinha de aprender. Alguns deles, os naguais, também aprendiam a executá-lo para outros. Eram capazes de desalojar o ponto de aglutinação de sua posição costumeira, desferindo um forte golpe diretamente contra o ponto de aglutinação. Esse golpe, que era experimentado como um soco na omoplata direita - embora o corpo nunca fosse tocado - resultava num estado de consciência intensificada.

De acordo com essa tradição, era exclusivamente nesses estados de consciência intensificada que Don Juan executava a parte mais importante e dramática de seus ensinamentos: as instruções para o lado esquerdo. Por causa da extraordinária qualidades nesses estados, ele pedia que eu não os discutisse com outros até que tivéssemos concluído tudo no esquema de ensino dos feiticeiros. Esse pedido não era difícil de aceitar. Nesses estados únicos de consciência, minha capacidade de entender a instrução era inacreditavelmente aumentada, mas ao mesmo tempo minha capacidade de descrever ou mesmo lembrá-la ficava diminuída. Eu podia funcionar nesses estados com habilidade e segurança, mas não podia lembrar-me de coisa alguma a seu respeito depois de retornar a minha consciência normal.

Levei anos para me tornar capaz de fazer a conversão crucial da minha consciência aumentada para o normal. Minha razão e o bom senso retardavam esse momento porque colidiam com a realidade irracional e impensável da consciência intensificada e do conhecimento direto. Por anos o descompasso entre uma consciência e outra forçou-me a evitar o assunto, não pensando a respeito.

Tudo o que escrevi sobre o meu aprendizado de feitiçaria, até o presente, tem sido um relato de como Don Juan ensinou-me a maestria da consciência. Não escrevi ainda a arte de espreitar ou a maestria do intento.

Don Juan ensinou-me seus princípios e aplicações com a ajuda de dois de seus companheiros: um feiticeiro chamado Vicente Medrano e outro chamado Silvio Manuel, mas tudo o que aprendi deles ainda permanece nublado no que Don Juan chama de complexidades da consciência intensificada. Até agora foi impossível para mim escrever ou mesmo pensar com coerência sobre a arte da espreita e a maestria do intento. Meu engano foi encará-las como temas de memória e reminiscência normais. São, e ao mesmo tempo não são. Para resolver esta contradição, não persegui os temas diretamente - uma imposição virtual -, mas lidei com eles de modo indireto através do tópico conclusivo da instrução de Don Juan: as histórias dos feiticeiros do passado.
Ele contava essas histórias para tornar evidente o que chamava 'os cernes abstratos de suas lições'. Mas eu era incapaz de perceber a natureza dos cernes abstratos, apesar de suas minuciosas explicações, as quais, agora sei, destinavam-se mais a abrir minha mente do que explicar tudo de modo racional. Seu modo de falar fez-me acreditar por muitos anos que suas explicações dos cernes abstratos eram como dissertações acadêmicas; e tudo que fui capaz de fazer, sob essas circunstâncias, foi tomar suas explicações como eram dadas. Elas tornaram-se parte da minha aceitação tácita de seus ensinamentos, mas sem o comprometimento completo de minha parte, essencial para compreendê-las.

Don Juan apresentou três conjuntos de seis cernes abstratos cada, arranjados num nível crescente de complexidades. Lidei aqui com o primeiro conjunto, que é composto do seguinte: as manifestações do espírito, o assalto do espírito, as artimanhas do espírito, a descida do espírito, os requisitos do intento e a manipulação do intento.

O Poder do Silêncio

ENTREVISTA: TERENCE MCKENNA



Terence McKenna foi um pesquisador de plantas psicodélicas de projeção internacional. Nasceu no Colorado (Estados Unidos) em 1946, graduou-se pela Universidade de Berkley e obteve mestrado em Xamanismo e Conservação de Espécies Botânicas. Em 1992 publicou o livro "Food of the Gods" ("Comida dos Deuses"), onde descreveu a evolução humana a partir do consumo de substâncias como o DMT e a psilocibina, encontrada em cogumelos alucinógenos. McKenna morreu em 2000 e é considerado por muitos como um "cientista da Nova Era". Esta entrevista foi concedida a revista OMNI em 1993.



OMNI: Para que servem suas pesquisas com substâncias psicodélicas?

MCKENNA: É uma tragédia pensar que alguém pode ir para o caixão ignorante das possibilidades da vida. E faço analogia com o sexo. Poucas pessoas podem evitar, em suas vidas, uma experiência de natureza sexual, já que sexo é uma das informações de que a condição humana dispõe. Sexo é um grande prazer, sexo liberta. Detesto pensar que alguém pode morrer sem experimentar sexo! O mesmo acontece com a experiência psicodélica. Ela é parte legítima da condição humana. Ela disponibiliza uma infinidade de informações fundamentais que perdemos quando o homem passou a se distanciar da natureza.

OMNI: "Food of the Gods" liga DMT à psilocibina. Qual a relação?

MCKENNA: A psilocibina (presente em alguns cogumelos e no LSD) e o DMT são quimicamente da mesma família. Meu livro é sobre a história das drogas; mostra o impacto cultural e o poder de desenhar a personalidade que elas possuem. As pessoas têm tentado, sem sucesso, responder como nossas mentes e consciências podem derivar do macaco. Já formularam todo o tipo de teoria sobre isso, mas para mim a chave que destranca este grande mistério é a presença de plantas psicoativas na dieta do homem primitivo.PS: A um tempo atrás eu perguntei se o LSD tinha algo haver com os cogumelos e me disseram que não tinha nada a ver... então, oq me dizem?
OMNI: O que o levou a concluir isto?

MCKENNA: A teoria ortodoxa da evolução nos diz que pequenas mudanças adaptativas de uma espécie acabam sendo geneticamente impressas em seu DNA. Os descendentes da espécie vão acumulando novas mudanças adaptativas, até que o conjunto de mudanças gere outra espécie. Pesquisas de laboratório mostram que a psilocibina, mesmo ingerida em quantidades muito pequenas, é capaz de imprimir mudanças em nós. Nos anos 60 Roland Fisher, do National Institute of Mental Health, deu psilocibina a voluntários, e então realizou testes oftalmológicos. Os resultados indicaram que a visão periférica aumenta quando havia psilocibina no organismo do voluntário.Bem, o aumento da visão periférica seria de grande ajuda adaptativa para o hominídeo, pois caçavam com mais sucesso e se defendiam melhor, também!Então aqui temos o fator químico: quando adicionado à dieta, psilocibina resultou num excelente "artefato" de sobrevivência.Quando os macacos desceram das árvores encontraram cogumelos no solo. Em pequenas quantidades aumentou sua capacidade visual periférica; em maiores quantidades, aumentou as atividades de seus sistemas nervosos centrais, que resulta em maior atividade sexual e, conseqüentemente, descendentes que carregam genes modificados pela psilocibina.

OMNI: Como as informações disponíveis sobre a psilocibina sustentam sua teoria?
MCKENNA: Bem, este é o problema: a psilocibina foi descoberta em 1953, e não foi totalmente caracterizada até ser proibida, em 66. A janela de oportunidade que se abriu para estudá-la foi de apenas nove anos. Quem pesquisava a psilocibina nem sonhava que os estudos seriam proibidos pelo governo americano! Quando o LSD foi apresentado à comunidade psicoterapêutica, e uma grande esperança de estudos dos processos mentais e psicológicos se abriu, o governo suprimiu as pesquisas com drogas psicodélicas. A conseqüência disto é que a comunidade científica está capenga, pois não pôde cumprir sua missão de conhecer profundamente os mistérios da mente humana. A ignorância e o medo do governo atrapalharam o trabalho dos cientistas.












OMNI: Você está dando uma enorme quantidade de poder a uma droga. O que você pode dizer sobre a psilocibina?
MCKENNA: Ainda não sabemos tudo o que a psilocibina e o DMT podem oferecer. É como quando Colombo avistou terra, e alguém disse, "Então você viu terra. Isso é importante?", e Colombo disse, "Você não entende: este é o Novo Continente". Então uns marinheiros, como eu, retornaram da viagem dizendo, "Não há bordas no planeta, ele é redondo. E mais: não há monstros marinhos, e sim vales, rios, cidades de ouro". É duro de engolir, mas caso possam voltar a estudar a psilocibina, os cientistas poderão revolucionar a forma com que lidamos com o ser humano e com o universo. Nos últimos 500 anos a cultura ocidental suprimiu a idéia de inteligências desencarnadas, da presença real de espíritos. Mas trinta segundos de viagem com DMT acabam com a dúvida. Esta droga nos mostra que a cultura é um artefato, que você pode ser um psiquiatra em Nova York ou um xamã em Ioruba, mas que essas realidades são apenas convenções locais que organizam as pessoas em sociedade. A experiência com DMT é universal, pois mostra do mesmo modo, para qualquer pessoa de qualquer cultura, a legitimidade do universo espiritual.
OMNI: Bem, mas a cultura nos dá alguma coisa para fazer, Terence.

MCKENNA: Sim, mas a maior parte das pessoas acha que cultura é o que é real. A psilocibina mostra que tudo o que você sabe está errado. O mundo não está sozinho, não é tridimensional, o tempo não é linear, não existem coincidências. Existe, sim, um nexo interdimensional.
OMNI: Se tudo o que sei está errado, então o que está certo?

MCKENNA: Você precisa reconstruir. É, no mínimo, uma tremenda permissão para sua imaginação. Você não tem que seguir Sartre, Jesus, ninguém. Tudo se esvai, e só o que você pensa é, "Sou apenas eu, minha mente e a Mãe Natureza". Esta droga mostra que o que existe do outro lado é uma impressionantemente real forma de vida auto-consistente, um mundo que permanece o mesmo toda vez que você o visita.




OMNI: E o que está lá nos esperando? Quem?

MCKENNA: Você cai num espaço. De alguma forma, você pode dizer que é subterrâneo. Existe uma sensação de enclausuramento, mas ao mesmo tempo o espaço é amplo, aberto, caloroso, confortável de uma forma muito sensual, material. Há entidades totalmente formadas, não há dúvidas de que essas entidades estão lá. Enquanto isso você diz, "Batimentos cardíacos? Normais. Pulso? Normal." Mas sua mente está dizendo, "Não, eu devo ter morrido, é muito radical, muito, muito radical. Não é a droga, drogas não fazem coisas assim", e você continua vendo o que está vendo. A droga nos tenta revelar qual a verdadeira natureza do jogo. Que a dita realidade é uma ilusão teatral. Então você quer encontrar seu caminho até o diretor que produz a realidade, e discutir com ele o que acontecerá na próxima cena.

OMNI: Você dedicou boa parte de sua vida no mapeamento do DMT e da psilocibina. Como você os interpretaria?
MCKENNA: Estas substâncias podem dissolver numa única viagem toda a sua programação mental até então. Elas te levam de volta à verdade do organismo - a que diz que idioma, condicionamento e comportamento são totalmente desenhados para mascarar. Uma vez dopado, você renasce para fora do envelope da cultura. Você chega literalmente nu neste novo lugar.
OMNI: Você acha que realmente existe algo como uma "bad trip"?

MCKENNA: Uma viagem que acaba te fazendo aprender mais rápido do que você quer é o que as pessoas chamam de bad trip. A maior parte das pessoas tenta dosar o aprendizado inerente às drogas, mas às vezes a droga libera mais informação do que você é capaz de aprender. Para piorar, a mensagem pode ser, "Você trata mal as pessoas!", e ninguém quer escutar isso.

OMNI: Como você pode defender as drogas com tanto entusiasmo quando elas estão associadas a tanto sofrimento e caos?
MCKENNA: Nós deveríamos falar da palavra êxtase. Em nosso mundo, comandado pela Madison Avenue, êxtase é aquilo que você sente quando compra uma Mercedes e pode bancá-la. Mas este não é o significado certo. Êxtase é uma emoção complexa que contém elementos de medo, triunfo, empatia e pavor. O que substituiu nosso pré-histórico conceito do êxtase é a palavra "conforto", uma idéia tremendamente asséptica, letárgica. Drogas não são confortáveis, e qualquer um que pense que elas são uma forma de conforto ou escapismo não deveria tomá-las até que tenham coragem de lidar com as coisas como elas realmente são.

OMNI: Que tipo de pessoas não deveria tomar drogas?

MCKENNA: Pessoas mentalmente instáveis, sob enorme pressão, ou operando equipamentos dos quais dependem as vidas de outros seres humanos. Ou pessoas frágeis, ingênuas, superprotegidas. Algumas pessoas foram tão estragadas pela vida que a dissolução de amarras não é boa para elas. Essas pessoas deveriam ser cuidadas com carinho, e não encorajadas a arrebatar limites. Se por fatores genéticos, culturais ou psicológicos as drogas não são para você, então não são para você. Não estou pedindo para que todas as pessoas tomem drogas, mas acredito que assim como uma mulher deve estar livre para controlar sua fertilidade, uma pessoa deveria estar livre para controlar sua própria mente.Todos deveriam ser livres para tomar o que quisessem, e estar bem informados sobre o que cada opção envolve. Exatamente como acontece com educação sexual. Hoje a forma com que lidamos com informações sobre drogas é a mesma como fazíamos nos anos trinta com sexo. Você aprendia através de rumores! Então as pessoas acabam tendo idéias absurdas sobre as coisas.
OMNI: Onde está sua esperança?
MCKENNA: Está na psicologia e nos jovens. Eles têm o que nunca tivemos: pessoas mais velhas que já tiveram experiências psicodélicas. O LSD tomou, e ainda toma, de assalto nossa sociedade. Dois estudantes de bioquímica podem fazer um pequeno laboratório móvel e produzir, num final de semana, de 5 a 10 milhões de doses de ácido para distribuir em papel pelo mundo. Esta facilidade e discrição criou uma pirâmide de atividade criminal de tanta potência que o governo reage como se um revólver estivesse apontado para sua cabeça. O que, no fundo, é verdade! A estratégia certa é subversão, atenção e discreto não-conformismo contra o tédio e a opressão do mundo.

OMNI: Terence, meu amigo, existe alguma coisa que o deixa com medo?

MCKENNA: Loucura. As pessoas me perguntam, "Posso morrer tomando esta ou aquela droga?". É a pergunta errada. Claro que sempre existe algum risco em qualquer coisa, mas o que é realmente perigoso é a sua sanidade, porque como a desconstrução da realidade é infinita, você pode se mudar para algum outro lugar. Tenho medo de não ser capaz de contextualizar essa desconstrução, me perder e não retornar à comunidade humana. Estamos tentando construir pontes, não navegar infinitamente.

OMNI: Como você vê o futuro?

MCKENNA: Se a história seguir futuro adentro, será um futuro de escassez, preservação do privilégio, controle da população através do uso cada vez mais sofisticado de ideologia para acorrentar e iludir as pessoas. Estamos no limite exato. O que também potencialmente nos aguarda é uma dimensão de tanta liberdade e transcendência que, uma vez lá, viveremos de imaginação. Seremos rapidamente irreconhecíveis se comparados ao que somos hoje porque hoje somos definidos por nossas limitações: a lei da gravidade, a necessidade de comer, de ficarmos ricos. Temos o poder de nos expandir indefinidamente para o prazer, atenção, carinho e conexão. Só precisamos nos libertar e nos permitir.

O que é PSICODÉLICO ?

O termo "psicodélico" tem origem grega e quer dizer "o que faz brilhar a alma". Este termo foi criado e muitíssimo usado nos anos '60, com o aparecimento do LSD (ácido lisérgico) e a difusão do uso de outras drogas psicoativas como fonte de prazer. O milenar uso da Cannabis sativa (cânhamo indiano ou maconha) conheceu seu apogeu e se consagrou como droga psicodélica mais utilizada no mundo. A cocaína, super-extrato da Erythroxylon coca (coca) sintetizada pela Bayer no século XIX, também passou à moda, conhecendo um uso crescente. Igualmente o antiqüíssimo ópio, extraído da Papavere somnifera (papoula), levou à síntese de alcalóides muito mais potentes, dentre os quais o grande destaque é aheroína. Desde esta época, novas drogas apareceram e muitas outras tiveram seu uso amplamente difundido. Outra substância muito popular, foi introduzida na Humanidade nos anos '80 a droga MDMA (metil-metilenodioxiamfetamina) criada em 1913 pela Merck e que acabou ficando conhecida como XTC (ecstasy ou êxtase). Finalmente, ao lado destas drogas, apareceu o uso psicodélico da quetamina (Ketalar® ou spacial K) e do GHB (gama-hidroxibutirato). Há uma grande diferença entre elas, mas uma coisa há em comum: sempre o que é prometido é o prazer artificialmente produzido através da manipulação bioquímica do cérebro.





É evidente que a humanidade sempre fez uso de diversas substâncias psicoativas de diferentes espécies ao longo de toda sua existência de forma muitíssimo variável. A mais tradicional droga psicoativa que se conhece em todo o mundo é o álcool em todas as suas apresentações (destilados e fermentados). O uso do álcool está intimamente incorporado à sociedade ocidental, indo desde seu uso hedonístico eventual, até o uso religioso ritual (como o vinho na Missa, por exemplo), passando pelos horrores da dependência química e o flagelo do alcoolismo. Também parte inseparável de nossa cultura está o uso da cafeína (café e chá preto), substância psicoestimulante de uso legal e totalmente corriqueiro. O tabaco (Nicotiana tabacco), sob forma de cigarros, charutos ou fumo, é igualmente substância largamente difundida e que tem sido alvo de diversas ações governamentais de saúde pública devido aos altos índices de lesões irreversíveis e graves de múltipla ordem (respiratórias, cardiovasculares, cerebrais, cancerígenas, etc.). Mas nenhuma outra substância criou alterações sociais tão grandes em tão pouco tempo de uso em larga escala quanto o ecstasy. Toda uma cultura "neo-psicodélica" foi criada em torno desta droga. A transformação nos hábitos sociais e nos valores adotados pelos jovens de nossa sociedade é apenas comparável ao "boom" psicodélico dos anos '60, mesmo assim, guardando, ao meu ver, um impacto mais contundente sobre os rumos da juventude.





Desde o filme "Barbarella", onde Jane Fonda aparece no esplendor de sua juventude usando uma pequena pílula que a leva imediatamente ao êxtase, que a idéia de uma "pílula do amor" habita o imaginário humano. Com o aparecimento da MDMA, seu efeito foi imediatamente associado à idéia de "pílula do amor" e foi batizada pelo nome XTC (em inglês lê-se "ecs-ti-ci"). O ecstasy promete alterações da sensopercepção, euforia prolongada, sociabilidade, extroversão e diversão por períodos de 8 horas, o que acaba seduzindo milhares de jovens alucinados, cujo slogan é "Set U Free" ("liberta você"). Porém, após algum tempo de super-estimulação pela droga, o estoque de serotonina (5-HT, um neurotransmissor cerebral) vai acabando e a biossíntese não atende a demanda. Chega-se ao estado de depressão e esgotamento, que ocorre entre 6 a 8 horas após a ingestão da droga e o que era para ser pura alegria e diversão se torna um pesadelo que pode durar alguns dias. Este efeito ficou conhecido como "blue Monday" (segunda-feira depressiva) em virtude do freqüente uso de ecstasy durante os finais de semana. Igualmente, a longo prazo e com o uso freqüente, há a necessidade de uma dose progressivamente maior de MDMA para que se consiga os mesmos efeitos que inicialmente eram obtidos. Isto é chamado de "tolerância" e significa que o organismo reage à presença constante desta substância com diminuição do sistema neuronal conhecido como serotoninérgico, que pode ser químico e reversível ou com destruição irreversível destes neurônios. A destruição em massa de neurônios serotoninérgicos leva a pessoa a um estado constante de depressão resistente ao uso de qualquer medicação conhecida.



Vias serotoninérgicas cerebrais,
sobre as quais o ecstasy atua.
Toda uma cultura foi criada em torno do ecstasy. Conhece-se a "e-music", que tanto pode ser sigla para eletronic music, quanto para ecstasy music. Ritmos específicos como o trance (transe) e o psychodelic (psocodélico) foram criados para aumentar a sensação provocada pelo ecstasy. A decoração de ambientes onde o uso de psicodélicos é incentivado sempre traz um excesso de estímulos visuais (luzes psicodélicas e fluorescentes), sonoros (som eletrônico altíssimo e repetitivo) e táteis (paredes revestidas com diferentes texturas, ambientes com divãs, camas e muitas almofadas), propiciando as alterações sensoperceptivas. Apesar de que a sociabilidade esteja aumentada e haja uma tendência à sensualidade, a sexualidade propriamente dita encontra-se diminuída com o uso do ecstasy e há uma espécie de alienação e desligamento do mundo. O resultado final desta combinação, sob um ponto de vista sociológico, é o aparecimento de uma sub-cultura característica chamada de cultura "clubber". Os clubbers de maneira geral acabam desenvolvendo uma dependência química múltipla e tendo uma visão psicodélica do mundo, não percebendo a realidade como ela é. O consumismo é característica marcante deste grupo social, bem como um culto exagerado à estética, paradoxalmente acompanhada de uma deterioração na capacidade crítica e criativa relacionada às artes, uma vez que devido ao efeito psicodélico, qualquer estímulo possa ser entendido como prazeroso. Ocorre também uma espécie de segregação e preconceito contra qualquer proposta que fuja à proposta psicodélica, só interessando aos clubbers aquilo que é clubber ou correlato.
A cultura clubber aparece então como o movimento de contra-cultura do século XXI. Gerado pela frustração do pós-tudo (pós-moderno, pós-hippie, pós-punk, pós-dark), o impulso clubber é uma proposta sem proposta, uma pura e simples alienação do tempo e do espaço, impulsionado pelos psicodélicos. A fuga da realidade, o hedonismo exacerbado de um pensamento cape diem, o desdém pela cultura, pelos valores sociais e pelo conhecimento, a simples auto-anestesia como solução e o repúdio a tudo e a todos que os possam fazer acordar deste transe perpétuo são suas marcas registradas. Incrivelmente, a cultura clubber englobou em si elementos desconexos herdados de movimentos de contra-cultura anteriores, tais como o misticismo e a espiritualização hippies, a estética do modernismo, do psicodelismo e do Sci-Fi e a depressão e o tédio dark, usando estes atributos no entanto, de forma esvaziada de seus significados culturais originais. Em última análise, o movimento clubber tenta desesperadamente resgatar o glamour próprio das gerações anteriores, perdendo-se cada vez mais em um mundo fictício e ilusório de prazeres artificiais e plásticos, apartando-se de si mesmo e alienando-se da vida. Estas características de nosso jovens é utilíssima à sociedade de consumo capitalista que se utiliza delas para manter sua manipulação e seu controle sobre uma população que deveria ser caracteristicamente a fonte de críticas sociais e a origem das mudanças e transformações do status quo. Alguém precisaria despertá-los desta hipnose coletiva urgentemente!
Saiba mais:
Revista eletrônica do Departamento de Química - UFSC/Brasil

Narconon Arrowhead - USA

Ecstasy Effects - USA
http://www.ecstasy-effects.com/
National Institute on Drug Abuse - USA

E for Ecstasy by Nicholas Saunders - UK

sábado, 24 de março de 2007

Entrevista de Terence Mckenna à revista High Frontiers.

Entrevista de Terence Mckenna à revista High Frontiers.

Entrevista, concedida a Will Noffke, que foi publicada no n° 1 da revista High Frontiers ("uma revista de ciência psicodélica, potencial humano, irreverência e arte moderna"), em 1984. Esta revista se fundiu com a Reality Hackers e fundou a revista Mondo 2000 tendo William Gibson e Timothy Leary como seus gurus. Trata-se de uma revista com a seguinte proposta: “Mondo 2000 está aqui para cobrir a vanguarda em hipercultura. Nós traremos para você as novidades nas formas de mutação interativas entre o humano e o tecnológico. Estamos falando Cyber-Chautauqua: trazendo a cibercultura para as pessoas! Módulos de conhecimento artificiais. Música visual. Tecnologias. A Matrix do ciberespaço de William Gibson – plenamente concretizada! As antigas elites de informação estão morrendo. As crianças estão no controle.Esta revista é sobre o que fazer até que o novo milênio venha. Estamos falando sobre possibilidades totais. Avanços radicais nos limites da biologia, gravidade e tempo. O fim da escassez artificial. O surgimento de um novo humanismo. Tecnologia para o poder individual, diversão e jogos. Tornando a felicidade máxima nosso estado de consciência normal.”.
A revista existiu até meados de 1989.


WILL NOFFKE: Fale-nos da experiência que moldou a sua vida e a sua obra - a viagem à Amazônia.

TERENCE MCKENNA: Na verdade, participei de várias viagens à Amazônia, a primeira em 1971, a mais recente em 1981. Em 1981, uma expedi­ção etnobotânica conjunta, composta de membros das universida­des de Harvard e Colúmbia Britânica, viajou até Iquitos, no extremo leste do Peru. O meu irmão, que trabalha como etnoquímico na Universidade da Colúmbia Britânica, também fazia parte dessa expedição. Estávamos estudando o ayahuasca, bebida alucinógena empregada em uma área muito extensa das selvas litorâneas do Equador, da Colômbia e do Peru, e também um alucinógeno pouco conhecido, chamado oo-koo-hey ou kuri-coo, que é usado pelos índios uitotos, boros e muinanes, tanto um quanto outro tendo por base o DMT ou o DMT combinado com algum outro produto químico que propicia a experiência alucinógena. Trata-se provavel­mente dos alucinógenos menos pesquisados de todos, embora o ayahuasca constitua importante religião popular em uma área bastante extensa. É utilizado em curas xamanistas e é bem conhe­cido pelas classes pobres das planícies litorâneas do Peru e da população de mestiços. Quanto ao kuri-coo, é substância bem menos conhecida. Estávamos estudando-o porque as teorias farma­cológicas ortodoxas dizem que ele não deve ser oralmente ativo, mas é. Portanto, havia um problema científico a resolver.

WILL NOFFKE: Algo como descobrir uma nova realidade para a ciência?

TERENCE MCKENNA: Bom, é preciso que haja um problema científico para justificar essas expedições. No fim, o que se estuda é a fenomeno­logia da droga, a droga tal como ela é experimentada - o que é bem diferente das questões farmacológicas que hoje estão sendo examinadas em laboratório. Mas a experiência de tomar essas drogas na Amazônia, subindo pequenos tributários do rio principal, entre pessoas pré-letradas, que definitivamente não pertenciam à classe média, e no ambiente da selva equatorial do continente, foi muito interessante, muito instrutiva.

WILL NOFFKE: Como você reagiu a ela? Suponho que, pouco antes de fazer essa viagem, já havia experimentado outros alucinógenos e, de fato, estava querendo conhecer o efeito, a reação psicofísica em seu próprio organismo. No entanto, parece que encontrou algo inteiramente inesperado.

TERENCE MCKENNA: Exato. Desde meados da década de 60, estávamos interes­sados na dimetiltriptamina, ou DMT, tanto em virtude da experiên­cia que ela proporciona como da rapidez de sua ação. Quando se fuma essa droga, o efeito se faz sentir em cerca de quinze a trinta segundos. O conteúdo da experiência parecia ir além da noção ortodoxa do que deve ser a experiência psicodélica. Em outras palavras, a experiência psicodélica tem sido discutida em termos da expansão da consciência, ou da exploração do conteúdo do inconsciente pessoal ou coletivo, ou ainda de grande empatia com obras de arte etc. O que verificamos no uso das triptaminas é que parece haver uma dimensão imprevista, envolvendo contato com uma inteligência alienígena. Uso essa expressão por não dispor de outra melhor. Enteléquias organizadas apresentavam-se na expe­riência psicodélica com informações que pareciam não provir da história pessoal do indivíduo e nem mesmo da experiência humana coletiva. Mais tarde, viemos a perceber que esse efeito era peculiar aos alucinógenos à base de triptamina. Em outras palavras, não só ao DMT, ao ayahuasca e às substâncias mais exóticas da Amazônia, mas também à psilocibina, que é provavelmente a mais empregada dessas drogas. Para mim, era espantoso que uma voz pudesse se dirigir a uma pessoa naquele estado e transmitir informações du­rante um diálogo. Gordon Wasson, que descobriu o cogumelo portador de psilocibina e o apresentou à ciência ocidental, também escreveu sobre esse fenômeno. O mesmo fez Platão, ao discutir a importância do Logos para a religião helênica.
Essa experiência de uma voz interior que nos guia, dotada de um nível superior de conhecimento, não é estranha à história do Ocidente, mas a aventura intelectual dos últimos mil anos fez com que tal idéia parecesse absurda, senão psicopatológica. Assim, na qualidade de farmacólogos modernos dedicados ao estudo dos alucinógenos, o meu irmão e eu nos deparamos com esse fenômeno. Nos anos seguintes, tratamos de estudá-lo e dirigir para ele a atenção de outras pessoas; diria que hoje há um consenso de que a experiência é real. Não existe, porém, um consenso a respeito do que ela é exatamente. Estaremos lidando com um aspecto - uma entidade psíquica autônoma, como diriam os adeptos de Jung -, um assunto que escapa ao controle do ego? Ou com algo semelhante a uma Supermente da espécie - um tipo de enteléquia coletiva? Ou, de fato, estaremos lidando com uma inteligência alienígena e com tudo o que isso implica? São perguntas difíceis de responder. Até mesmo abordar o assun­to é difícil, pois o fenômeno só se manifesta quando se tomam doses heróicas.


WILL NOFFKE: Existem paralelos bastante óbvios. Um dos que me ocor­rem é Santa Joana D'Arc ouvindo vozes e recebendo orientação. Acontece que ela era uma moça do campo, e talvez tivesse uma horta onde cultivasse cogumelos. A História está cheia de vozes que são ouvidas no contexto da experiência religiosa, vozes que são sempre atribuídas a um "deus", qualquer que seja a imagem que este conceito evoque na pessoa que as escuta. Essa experiência não resulta - pelo menos não necessariamente - da ingestão de drogas. Pode ocorrer através de alguma outra alteração da cons­ciência humana.

TERENCE MCKENNA: Certo. Sempre ocorre através de uma alteração da química interna do corpo e do cérebro. Mas essa alteração pode ser induzida por plantas ou por situações de estresse; ou uma pessoa ou linha hereditária pode simplesmente ser predisposta a esse tipo de coisa. Você tem toda a razão: a religião, como concebida em termos pré-modernos, é essencialmente a resposta humana ao problema do estímulo interno, embora muita gente afirme que se trata de um fenômeno que molda a cultura, ou mesmo dirige a cultura.
Infelizmente, nos últimos quinhentos anos a religião passou a ser uma pirâmide hierárquica em cujo topo os dogmas são interpre­tados por teólogos. As interpretações são transmitidas aos fiéis através de uma hierarquia. Acho que a noção de revelação direta perturba muito as hierarquias religiosas. Não obstante, a revelação direta é certamente bastante comum nas culturas pré-letradas de todo o mundo. Em tais casos, verificamos que os xamãs eram os únicos com os quais podíamos falar sobre o assunto ou que pare­ciam familiarizados com o fenômeno.
E o que eles nos dizem é: "Claro. Naturalmente. É assim que se obtêm informações: de espíritos que habitam aquela dimensão, espíritos que nos ajudam e espíritos que nos atrapalham." A idéia de inteligências alienígenas autônomas na dimensão mental é, para eles, lugar-comum. E creio que provavelmente é mesmo. Acho que a cultura ocidental fez um longo desvio idiossincrático para afas­tar-se do espírito, e só agora estamos começando a perceber que talvez nos falte alguma coisa. Na verdade, não representamos o máximo de conhecimento da natureza da realidade. Possuímos mapas muito interessantes, digamos, do interior do átomo ou de regiões longínquas do universo; mas, nas áreas que nos são mais próximas - nossa própria mente, a maneira como vemos a nós mesmos e aos nossos semelhantes -, acredito que essas culturas primitivas, por serem fenomenológicas, isentas do estorvo da téc­nica e de teorias abstratas de tudo o que acontece, aproximam-se mais da realidade. Em outras palavras, os xamãs são psiquiatras populares, psicanalistas populares, muito mais avançados que nós.
Os antropólogos já observaram a ausência de distúrbios mentais graves em muitas culturas pré-letradas. Acredito que a mediação do xamã e, através dele, o contato com o Logos centralizante, fonte de informação ou gnose, é provavelmente a causa dessa capacidade de curar ou minimizar distúrbios psicológicos.

WILL NOFFKE: Você mencionou algo em relação à religião organizada. Acho que o cristianismo ocidental foi muito bem-sucedido, na tarefa de garantir o seu território, infundindo medo, dúvida e desconfiança em relação a tudo o que provém de fontes internas. Estabeleceu um critério que diz: "Se não está nas escrituras, deve ser ignorado ou podemos suspeitar de que provém de alguma força malsã." Há aí uma clara negativa da validade da experiência pessoal. Acho que, para muitas pessoas, a experiência psicodélica é altamente suspeita, perigosa e incontrolável. Como você acha que as pessoas a encaram?

TERENCE MCKENNA: É incontrolável na medida em que não é compreendida. Essas culturas pré-letradas possuem uma tradição ininterrupta de conhecimentos e etnomedicina xamanistas, tão ou mais antigos que os tempos paleolíticos. Quanto a nós, não dispomos de nada pare­cido. Assim, em nossa cultura, a quem recorrem as pessoas que têm problemas com essas plantas? No Peru, vimos pessoas que eram inteiramente despreparadas em relação ao ayahuasca. Pessoas vin­das de Lima para fazer a experiência chegaram ao ponto em que estavam definitivamente tendo uma bad trip. Mas o xamã pode vir a elas, soprar-Ihes fumaça de tabaco e cantar - coisas que podem nos parecer simbólicas mas que, ainda assim, funcionam com a mesma eficácia de uma injeção de Demerol. Portanto, o simbolismo de uma pessoa é a tecnologia de outra. Devemos ter isso em mente ao lidarmos com essas culturas. A aparência que as coisas têm para nós não é a mesma que têm para os que estão intimamente envol­vidos com elas. A não ser que você se desfaça de sua linguagem e mergulhe inteiramente nessas culturas, o seu ponto de vista será sempre o ponto de vista de um estranho, de um forasteiro.

WILL NOFFKE: Mesmo naquele setor da sociedade que poderia ser clas­sificado de Nova Era, por falta de um termo melhor, onde há um afastamento em relação à educação dogmática e um movimento no sentido da experimentação direta, a experiência psicodélica é vista com suspeita. Coisas como a kundalini, a hipnose, os mantras, as atividades psíquicas - manipulações psicofísicas da consciência - são consideradas seguras e aceitáveis como áreas de investiga­ção. Mas há esse incrível preconceito contra o uso de meios químicos, até mesmo dos meios orgânicos a que você se refere.

TERENCE MCKENNA: Parece haver um preconceito muito forte contra tudo o que é gratuito. As pessoas repelem a idéia de que seja possível adquirir clarividência espiritual sem sofrimento, sem auto-análise, sem flagelação, pois acreditam que a visão dessas dimensões superiores deveria ser concedida somente aos bons, e provavelmente somente a eles depois que morrem. Acham alarmante pensar que se possa ingerir uma substância como a psilocibina ou DMT e ter esse tipo de experiência. No entanto, trata-se de uma realidade que agora começamos a aceitar. Não creio que essas coisas sejam um substi­tuto da prática espiritual. Por outro lado, não acho que a prática espiritual possa jamais substituir essas experiências. Percorri a índia, a Indonésia e muitos outros lugares, e encontrei as tradições que você menciona, inclusive o tantra da kundalini, a dança em transe de Bali, controlada por sacerdotes e fundamentada em tradi­ções cuja mentalidade você precisa aceitar para ter a experiência. São coisas extremamente impalpáveis. Já a experiência provocada pelas drogas é muito real. E irresistível. Certamente, nada há de impalpável nas triptaminas. A triptamina é o grande fator convin­cente. É preciso incorporar essas coisas à nossa cultura, e sem sentimento de culpa, com a certeza de que apontam o caminho que leva a algum lugar. Creio que foi Aldous Huxley que as chamou de "graças gratuitas", explicando que elas não são necessárias nem suficientes para a salvação, mas ainda assim constituem um mila­gre.

WILL NOFFKE: Você atribui grande importância aos fatores de estado de espírito e ambiente como parte da experiência, ao dizer que as drogas não devem ser usadas levianamente nem como recreação, e sim encaradas com respeito. E que é preferível ter alguém por perto para servir de guia. Pretendo ter uma entrevista também com Timothy Leary. Não sei bem qual a atitude dele, se procura diversão e prazer a qualquer preço ou se é mesmo sério.

TERENCE MCKENNA: Acho que ele é um homem que provavelmente teve ampla oportunidade de mudar de opinião. A euforia dos anos 60, a supo­sição dos intelectuais que rodeavam Huxley e Humphrey Osmond - de que bastava apresentar essas coisas às pessoas para que a humanidade se transformasse - era terrivelmente ingênua. No entanto, as pessoas jamais tinham se deparado com uma encruzi­lhada cultural como essa. Ouço dizer que talvez venha a ocorrer um retomo da experiência psicodélica como fenômeno social. Se ocor­rer, espero que os que viveram os anos 60 tenham processado essa experiência e aprendido suas lições. Não acho que essas coisas devam ser feitas em grupos muito grandes.
A maneira mais útil de se abordar a experiência psicodélica é em um ambiente de virtual - embora não formal - privação dos sentidos. Você deve deitar-se em completa escuridão e silêncio, e fixar o olhar na superfície interna de suas pálpebras. É espantoso como esse conselho parece exótico a certas pessoas. Trata-se ape­nas de bom senso.
Você está procurando observar um fenômeno mental. Para ver o fenômeno mental sem a contaminação
de fontes externas de informação, você deve colocar-se em uma situação na qual ele possa manifestar-se em sua totalidade. Se ingerir as doses eficazes dessas substâncias, posso garantir que a experiência não será monótona. Talvez um número muito grande de pessoas já tenha feito meditação e imagine que a experiência psicodélica seja como a meditação. Mas é a antítese exata da meditação. Trata-se, de fato, de sair do corpo e viajar no espaço mental - que é uma área pelo menos tão grande quanto o espaço. sideral. A diferença entre os dois pode ser apenas convenção cultural. Você viaja em um extenso campo de informação que parece medir anos-luz de comprimento. Isso só se torna possível quando os insumos externos são reduzidos ao mínimo. Nessas condições, você vê o que Blake viu, o que Meister Eckhart viu, o que São João da Cruz viu. Talvez não aprenda com essas coisas tanto quanto eles aprenderam, mas, por outro lado, ninguém pode medir o oceano, nem Meister Eckhart nem ninguém. Não é fácil medir o oceano, mas podemos ser medidos por ele, confrontá-lo, e estar dentro dele.
Acho que essas substâncias exerceram, exercem e continuarão a exercer grande impacto na história humana. Talvez elas sejam, de fato, a causa da história humana. Estamos tão habituados à doutrina da evolução - a idéia de que descendemos dos macacos – que tendemos a esquecer o fato de que o homem é, realmente, uma criatura estranha, muito estranha. Considerando que, em um milhão de anos, fomos desde a pedra lascada até o lançamento do ônibus espacial e a colocação de instrumentos fora do sistema solar, parece absurdo afirmar que as forças e fatos da natureza, tal como os conhecemos, nos permitiriam chegar a esse ponto. Prefiro optar por uma noção muito pré-modema: estamos mancomunados com o demiurgo. Somos filhos de uma força que mal podemos imaginar, uma força que nos chega das árvores e através das planícies da História, e que nos chama para ela. Esse processo está levando dez, vinte, cem mil anos - não mais que um instante. Os indivíduos vêm e vão, mas a natureza atua do ponto de vista da espécie, e, nessa escala, mal se passou um instante desde que só existiam neste planeta a pedra lascada e a farmacologia. A farmacologia precedeu a agricultura, uma vez que as propriedades das plantas vieram a ser conhecidas muito antes do seu cultivo. As visões transmitidas pela psilocibina - visões de enormes máquinas em órbita, de planetas distantes, de criaturas estranhas e vastas paisagens biomecânicas - mal podem ser processadas. A pessoa não sabe se está caminhan­do no interior de um enorme instrumento ou organismo. Mal podemos assimilar tais coisas. No entanto, essas visões constituem a imagem que nos guia no momento, a imagem que está sendo projetada no tempo histórico - da mesma forma como projetou o cálculo diferencial há cerca de duzentos anos, como projetou os grandes progressos da história humana. A história dos avanços científicos ou técnicos tem o caráter de revelação. Os homens aos quais esses avanços ocorrem costumam dizer: "Foi uma coisa que me veio, que me foi dada de repente." Leibniz inventou o cálculo diferencial quando estava estendido na cama, certa manhã. Newton fazia o mesmo a algumas centenas de quilômetros de distância, e os dois nem se conheciam. Ao longo dos milênios, tem havido um diálogo entre o eu individual e o Desconhecido, entre o eu coletivo e o Desconhecido. Demos a isso o nome de Deus. Os sacerdotes passaram a controlar esse diálogo e sobrecarregaram-no com todo tipo de "faça isso" e "não faça aquilo", coisas sem qualquer relação com a verdadeira experiência religiosa. Esta tem a ver com o diálogo com o Logos e aonde ele pode nos levar e o que pode nos mostrar. Hoje, portanto, quando nós, como espécie, estamos a ponto de abandonar ou destruir o planeta, o Logos ressurge com grande intensidade. Não sairemos deste planeta sem que a nossa mente seja transformada. O que está acontecendo é uma transformação global da humanidade em um tipo de criatura inteiramente diferente. Estamos saindo do invólucro do macaco. E essa coisa feita de linguagem, de imagem e de imaginação, que residiu nos macacos durante tanto tempo, está agora superando a evolução biológica e, através da cultura, assumindo as rédeas de sua própria forma e destino. O caos da nossa era, que tanto perturba a todos nós, não é absolutamente incomum. É o que normalmente acontece quando uma espécie se prepara para deixar o planeta. É o caos do fim da História.
Não resta a menor dúvida. Há sinais disso por toda parte. E os sinais que nem todos percebem, que somente os aficionados das substâncias psicodélicas conhecem, são as transformações da cons­ciência, simultaneamente com a transformação da cultura técnica. Essas duas transformações são, de fato, expressões uma da outra.
Os tempos atuais são as dores do parto de uma nova humanidade.

domingo, 18 de março de 2007

Fernando Gabeira responde a questões sobre a maconha em livro

Segue um artigo extraído do site da Folha, sobre o livro do Fernando Gabeira que fala da Maconhae o primeiro capítulo deste livro:


Fernando Gabeira responde a questões sobre a maconha em livro

da Folha Online


Muito mais que apenas apresentar os prós e contras acerca da maconha, o livro "A Maconha", da coleção "Folha Explica", procura entender os motivos pelos quais se ataca ou se defende um hábito disseminado pelo mundo inteiro.





Fernando Gabeira assina livro que explica o que é a maconha

No livro, cujo primeiro capítulo pode ser lido abaixo, Fernando Gabeira discute também o papel social que a planta desempenhou na escravidão e seu uso em rituais religiosos na selva amazônica.
Em linhas gerais, o livro responde às perguntas mais frequentes recolhidas por Gabeira nos debates que participou em torno da elaboração da política nacional de drogas. "As pessoas querem saber, por exemplo, se a maconha é uma escada para outras drogas, se provoca dependência física e psíquica, se causa perda de neurônios e da memória, e se tem poder medicinal", diz Gabeira.
Pessoalmente, Gabeira defende a legalização da maconha e seu uso industrial mais amplo possível. "São 350 subprodutos derivados da canabis", diz. A atual política nacional de drogas não separa a maconha de outras drogas. Pela lei, o usuário não é preso, mas arca com penas alternativas e multas.
Como o nome indica, a série "Folha Explica" ambiciona explicar os assuntos tratados e fazê-lo em um contexto brasileiro: cada livro oferece ao leitor condições não só para que fique bem informado, mas para que possa refletir sobre o tema, de uma perspectiva atual e consciente das circunstâncias do país.
Autor: Fernando Gabeira
Editora: Publifolha
Páginas: 80
Quanto: R$ 17,90
Onde comprar: nas principais livrarias, pelo telefone 0800-140090 ou pelo site da Publifolha
Dizer "maconha" é espalhar um rastro de discórdia. Há quem afirme que ela destrói o cérebro e conduz ao crime. Há quem, como o escritor Carl Sagan, a considere maravilhosa. Há os que duvidam, os que ignoram, os que pesquisam e chegam a resultados frontalmente antagônicos.
Nos primeiros meses de 2000, cientistas da Califórnia chegaram à conclusão de que maconha dá câncer e cientistas ingleses concluíram que maconha cura câncer(1) .
Enterrada num velho túmulo chinês, em forma de sementes na tanga dos escravos negros ou de tecido no corpo de uma garota egípcia, a maconha aparece em toda parte, mas ainda assim não há acordo sobre ela. Há quem ache que surgiu há 8 mil anos; a revista espanhola Cañamo (2) garante que foi há 5 mil. Talvez não seja possível definir precisamente quando a maconha entrou na história da humanidade; mas pode-se acreditar que tenha surgido há muitos séculos, embora reconhecendo que em 3 mil anos de imprecisão fumam-se milhões de baseados.
Em 525 d.C., as autoridades resolveram fazer grandes fogueiras públicas da maconha no Cairo. Em 1999, autoridades brasileiras queimaram toneladas de maconha diante das câmeras de TV. Isso dá idéia de como é antiga esta ambivalência diante de uma planta: uns querendo destruí-la, outros querendo cultivá-la. Do ponto de vista da maconha, a humanidade deve parecer muito louca.
Se a Cannabis sativa fosse uma família, teria dois filhos. São irmãos de sangue, com a diferença de que num deles os exames detectam níveis mais altos de THC --o tetraidrocanabinol. O cânhamo, que entra na produção de 20 mil produtos importantes para a humanidade, tem um nível de THC inferior a 3%. A partir daí, entra em cena sua irmã, a maconha, que produz toneladas de bons e maus sonhos, com um teor de THC em torno de 6%. Na maioria dos países, a plantação de cânhamo e de maconha é igualmente proibida, um irmão pagando pelo outro, o cordeiro pelo lobo.
Pensar que é ilegal plantar cânhamo nos Estados Unidos e que a Constituição dos Estados Unidos foi escrita em papel de cânhamo ajuda pelo menos a entender as grandes fogueiras que se fazem periodicamente para destruir a canábis. Já foi assim com os livros, com a diferença de que naquela época se queria matar a cultura e na nossa querem matar uma planta --sem perceber que se trata, também, de uma cultura, e não só de uma espécie vegetal que se possa levar à extinção.
Nem sempre cânhamo e maconha foram proibidos numa mesma época. No princípio do século 20, famílias norte-americanas se dedicavam à cultura do cânhamo; ainda encontramos cortinas de cânhamo no Nordeste brasileiro, e há referência de uma colônia agrícola no Rio do Grande Sul dedicada à sua produção. (3)
O cânhamo foi pego nessa fábula do lobo e do cordeiro quase no meio do século, a partir da década de 30. Dois fatores econômicos e sociais devem ser levados em conta para essa inflexão histórica. De um lado, a crise econômica; de outro, a presença crescente de imigrantes mexicanos nos EUA, o que ofereceu ao magnata da imprensa William Randolph Hearst a chance de estabelecer uma relação entre os perigos da alteração da consciência e os do excesso de mão-de-obra. Foi ele quem cunhou a palavra marijuana, associando o medo de uma droga ao medo dos imigrantes que cruzavam a fronteira.
Como sugere Jack Herer, no clássico The Emperor Wears No Clothes, (4) essa campanha contra a maconha pode ser vista de outro ângulo: o da guerra da indústria química e petrolífera contra o cânhamo. De fato, essa tese se fortalece com o exemplo de Henry Ford, que construiu um carro de fibra de cânhamo e iria movê-lo com combustível tirado da semente do próprio cânhamo. Era compreensível o embaraço que significava a existência de um versátil recurso renovável, quando se preparava a arrancada do petróleo como um produto estratégico para a humanidade.
O avanço da maconha sobre a juventude dos anos 60 teve peso na determinação de mantê-la proibida, mas também de impedir que o cânhamo saísse da marginalidade econômica a que foi relegado. Esse período marca uma espécie de encontro da maconha com a classe média, e observa-se uma mudança pendular naqueles que a atacavam. Antes dos 60, os ataques concentravam-se na influência da maconha entre os pobres e negros, abrindo-se com isso uma linha de pesquisa sobre o elo entre consumo e criminalidade. Uma linha bastante previsível, uma vez que não era difícil encontrar vestígios do consumo de droga entre os pobres, que além disso estavam desempregados e viviam uma atmosfera de desagregação familiar --enfim, um conjunto de variáveis que persiste até hoje, em muitos pontos do planeta.
A ascensão social da maconha implicou numa guinada, pois era descrita como uma droga que impulsiona o crime e agora se tornava um fator de apatia e desmotivação. Grandes dirigentes mundiais, como Bill Clinton (que "não tragou") e Fernando Henrique (que não gostou), confessaram ter experimentado a planta. As atenuantes que apresentam servem para mostrar como se toleram os excessos de uma época, desde que desvencilhados deles para cumprir as funções sociais.
As teses de que a maconha contribui para desmotivar as pessoas foram contestadas por pesquisas. Mais uma vez, observando pessoas num contexto cheio de variáveis complexas, chega-se a conclusões opostas. O Grande Livro da Cannabis, de Rowan Robinson, (5) cita um trabalho feito na Jamaica, demonstrando que filhos de mães que fumam maconha têm um desempenho melhor em dez das 14 características definidas na pesquisa, tais como vivacidade, robustez e orientação.
Num livro de defesa da maconha, Marijuana not Guilty as Charged (6), David R. Ford cita o caso de um jovem trabalhador que era extremamente produtivo e deixou de sê-lo quando parou de fumar.
Não confiar cegamente em pesquisas vale tanto para as que são contra quanto para as que são a favor. Resta a observação pessoal como um ponto de referência. Os efeitos mais comuns --relaxamento, alteração do humor, redução da agressividade-- nos autorizam a afirmar que a maconha leva a um estado contemplativo. Independentemente da presença de espiritualidade, é uma experiência humana para muitos indispensável.
Há gente, no entanto, que fuma o mesmo baseado diante do mesmo pôr-do-sol e reclama que nada de novo acontece. A maconha em si não é a resposta para isso. Ela tem de ser procurada no cotidiano da pessoa, em como enfrenta seus desafios, como capitula ou avança em suas decisões íntimas.
É compreensível que se tome a maconha como um sujeito com responsabilidade própria, capaz de ser julgado por seus atos ou contra quem devemos fazer uma guerra. A maconha tem mil e uma utilidades. A milésima primeira é, precisamente, servir de bode expiatório para nossas dificuldades de encarar o real.
Essa busca de estabelecer a linha divisória entre a maconha e as pessoas, tentando evitar que uma substitua as outras, tornou-se mais desafiadora a partir de 1992. Nesse ano, o cientista William Davane identificou um neurotransmissor com as características dos canabinóides, produzido pelo cérebro e dotado de efeitos idênticos aos do THC. Rigorosamente, se reduzimos a maconha ao seu efeito psicoativo, como fazem os seus adversários, pode-se afirmar que todos têm um pouco de maconha na cabeça, independentemente de fumarem ou não. (7)
A escolha do nome do neurotransmissor descoberto por Davane pode nos levar mais longe: anandamite, da palavra em sânscrito ananda, que significa êxtase. Já se pode dizer que existe uma concentração de receptores de canabinóides nas áreas do cérebro dedicadas a certos processos mentais, como memória, cognição e criatividade.
Uma descoberta desse tipo pode ser integrada aos estudos sobre maconha e espiritualidade, uma vez que a relação entre plantas e consciência religiosa é tão profunda que alguns autores radicais afirmam que sem plantas alucinógenas não teria emergido o sentimento místico.
É razoável admitir que os seres humanos tenham escolhido o segredo das plantas como uma das maneiras auxiliares de explorar o mistério divino. Elas vivem enraizadas na terra e se alimentam dos céus. Obras que traçam a história da planta, como o Grande Livro da Cannabis, (8) já mencionado, localizam a presença da maconha nas principais religiões antigas, ora utilizada secretamente por sacerdotes que temem sua difusão entre as massas, ora como um instrumento ao alcance de todos os seguidores.
As referências mais antigas da relação entre maconha e religião se encontram na Índia. Na religião hindu, a maconha está associada a Shiva, a mais paradoxal e completa figura de trindade. Shiva teria brigado com a família e estaria vagando nos campos quando, para buscar abrigo do sol, parou sob uma planta de canábis, esmagou suas folhas e comeu. Um documento colonial inglês sobre a maconha na Índia (Relatório da Comissão Indiana Para Drogas do Cânhamo) (9) afirma que a crença hindu era de que aquele que bebe bangue (o nome da canábis) bebe Shiva. "A alma em que o espírito do bangue encontra morada desliza para um oceano do Ser, livre do extenuante círculo de matéria em que se cegou."
O mesmo documento, um apêndice do relatório escrito por J.M. Campbell, adverte os colonizadores: "Proibir ou mesmo restringir seriamente o uso de uma erva tão benigna quanto o cânhamo causaria sofrimento e irritação generalizados e, para amplos grupos de ascetas venerandos, uma cólera profundamente arraigada. Seria roubar do povo um consolo no desconforto, uma cura na doença, um guardião cuja compassiva proteção os livra de ataques de influências malignas e cujo grande poder faz do devoto um vitorioso, superando os demônios da fome e da sede, do pânico, do medo, do feitiço de Maia ou da matéria e da loucura, capaz de meditar em paz no Eterno, até que o Eterno, possuindo-o corpo e alma, o liberte da obsessão do eu e o receba no oceano do Ser".
Essas crenças o devoto maometano partilha plenamente. Como seu irmão hindu, o faquir muçulmano reverencia o bangue como aquele que prolonga a vida, que liberta das cadeias do eu. O bangue traz a união com o Espírito Divino. Tomamos bangue, e o mistério "Eu sou Ele" fica claro. "Tão grande resultado, tão minúsculo pecado."
Para quem não se interessa por termos como espírito divino, oceano do Ser, feitiço de Maia e outras expressões da religião oriental, abre-se um outro caminho fascinante: o de comparar Shiva e a canábis e constatar que, às vezes, parecem feitos um para o outro. Wendy Doniger escreveu um longo ensaio mostrando que se tratava de uma divindade ao mesmo tempo erótica e ascética, combinando duas pulsões essenciais e antagônicas no ser humano. (10) As inúmeras versões do mito de Shiva servem para confirmar sua imprevisibilidade. Em quase todas as imagens que aparece, está com o pênis ereto. Alguns de seus seguidores vêem nisso um sintoma de pureza, pois a ereção indica que ele não verteu seu sêmen sagrado. Em certos momentos, entretanto, aparece dizendo que busca uma parceira que se entregue à meditação, como um grande mestre, mas que seja amante lasciva na cama do casal.
Essa ambivalência divina parece ter sido transmitida à maconha. Ela é acusada por seus adversários de reduzir a performance sexual e por seus defensores de ser uma erva afrodisíaca. Qualquer cientista sensato trabalharia a hipótese de que a maconha é inócua, logo pode ser considerada ora afrodisíaca, ora redutora, dependendo da vontade do observador.
Há, no entanto, um certo consenso de que a maconha retarda o orgasmo, e nesse ponto ela se mostra digna de sua associação mítica com Shiva. Muitos religiosos que seguem a linha kundalini da ioga, utilizando ou não a canábis, transformam o sexo numa relação ritual e longa, que às vezes dura todo um dia. Alguns pura e simplesmente retardam o orgasmo por horas. Outros negam o orgasmo como objetivo final e o substituem por uma sensação de unidade com o outro. Em ambos os casos, podemos imaginar Shiva com seu pênis ereto e lembrar a ambivalência da cultura hindu, para a qual a ereção simboliza também a castidade.
O objetivo deste livro é apresentar os debates mundiais, conclusivos ou não, sobre a canábis, respondendo às principais perguntas surgidas nas dezenas de encontros realizados para tratar do tema em universidades e escolas secundárias do Brasil. No primeiro capítulo, mostra-se como a maconha inspirou inúmeros mitos, alguns deles em contradição com os dados apresentados pela experiência científica. No segundo, tenta-se apresentar um histórico da visão brasileira sobre a maconha, sua chegada ao país e seu uso entre os setores populares do Nordeste. Num terceiro momento, busca-se situar a discussão política, procurando mostrar o que há de comum e singular na experiência dos grupos que lutam pela reforma da legislação proibitiva da canábis. Finalmente, um esforço mais árduo ainda, o de tentar descrever o efeito psíquico da maconha, através de fragmentos de escritores e registros de cientistas e pesquisadores.
1 "Maconha Pode Combater Câncer no Cérebro". O Globo, 29 fev. 2000.
2 Gaspar Fraga, Cañamo Especial 2000 - www.canamo.net
3 "Escravos Plantavam Maconha no RS em 1788". Zero Hora, 23 jun. 1996.
4 Jack Herer, The Emperor Wears No Clothes. San Francisco: Hemp Publishing, 1993.
5 Rowan Robinson, O Grande Livro da Cannabis. Rio de Janeiro: Zahar, 1999.
6 David R. Ford, Marijuana not Guilty as Charged. San Francisco: Good Press, 1997; p. 119.
7 Robinson, op. cit., p. 47.
8 Idem.
9 Idem, p. 55.
10 Wendy Doniger, Asceticism and Eroticism in the Mythology of Siva. London: Oxford University Press, 1981.