Psicodélico: Redução de danos para o uso da Cannabis - Texto Completo

quinta-feira, 9 de agosto de 2007

Redução de danos para o uso da Cannabis - Texto Completo

Redução de danos para o uso da Cannabis
Edward MacRaei
O uso generalizado da Cannabis parece remontar ao período neolítico, existindo
evidências de seu emprego freqüente nessa época em rituais xamânicos no nordeste
asiático.
Desde então vem ocorrendo uma difusão do uso dessa planta por todo o planeta,
para uma grande variedade de finalidades. Segundo a antropóloga Vera Rubin, dois grandes
complexos culturais se formaram ao seu redor que ela chama de “complexo da ganja” e
“complexo da marihuana.”;a primeira corrente, de natureza folk, demonstrando grande
continuidade em suas tradições, que remontam a tempos imemoriais, e a segunda de
configuração mais circunscrita à atualidade e originalmente mais disseminada entre grupos
mais elitizados, antes de se difundir por setores mais amplos da sociedade.

O “complexo da ganja” seria muldimensional e multifuncional, envolvendo usos
sagrados e profanos, e geralmente baseado no cultivo de pequena escala. Encontramos
assim o emprego da planta na manufatura de cordame, na alimentação, na medicina, na
religião e na vida social, em geral, como euforizante e símbolo de companheirismo.Com a
exceção do uso ritual, envolvendo sacerdotes, o uso regular dentro dessa corrente
tradicional geralmente se deu no âmbito das classes populares.

Já a segunda corrente de difusão do uso da planta abrange duas grandes linhas
onde desempenha funções diferentes. A primeira, precedendo a descoberta da América,
baseia-se no uso do cânhamo para fins industriais e comerciais a partir de grandes
plantações localizadas principalmente na Rússia, no Canadá e nos Estados Unidos.
Essa mercadoria deu grande ímpeto às empreitadas colonizadoras das metrópoles européias e ao
capitalismo mercantilista.A segunda linha, remonta ao século XIX, à formação do Club des
Hachichins por artistas e intelectuais de Paris e é associada principalmente à busca por
experiências psicodélicas. Difundida durante o século XX entre a juventude ocidental ou
ocidentalizada em numerosos países, tem sido um fenômeno freqüentemente caracterizado
como de classe média, limitada à exploração de seus aspectos psicoativos, geralmente
recreacionais( Rubin 1975:3).

No Brasil encontramos a presença dos dois complexos culturais. O da “ganja” foi
introduzido pela população de origem africana,sendo, até recentemente, identificado com
os negros e sua cultura, sofrendo, consequentemente a repressão exercida pela sociedade
racista. O segundo é de introdução mais recente e tornou-se mais difundido na década de
1970, no bojo da contracultura. A sua grande expansão abarcou todos os setores
populacionais e acabou por levar ao esquecimento quase total das antigas práticas
originárias da África.

A partir do contato mais freqüente com o emprego das propriedades psicoativas
da Cannabis por parte das populações ocidentais, ocorrendo no século XIX, diferentes
administrações públicas, instadas a tomar uma posição sobre o uso e comercio da
substância,vêm optando pela constituição de comissões de especialistas para investigar o
seu impacto sobre a saúde dos indivíduos e da sociedade. Assim, já se realizaram pesquisas
sobre o tema em muitas regiões do mundo e em quase todas se chegou à conclusão de que a
Cannabis é uma droga relativamente segura, embora muitos tenham recomendado que a
permissão para seu uso devesse ser limitada a finalidades medicinais e que mesmo essas 3
deveriam continuar restritas até que sejam realizados todos os testes costumeiramente
exigidos para a aprovação de novos medicamentos. Apesar das importantes credenciais
científicas e políticas de seus proponentes e integrantes, nenhuma das recomendações
dessas comissões chegou a induzir mudanças significativas na legislação, revelando a
preponderância nessas discussões de outros fatores de ordem moral e política sobre
considerações que se apresentam como estritamente científicas.

Entre esses estudos oficiais o pioneiro, e um dos mais importantes, foi realizado
pelo Indian Hemp Drugs Commission, empreendido de forma minuciosa pelo governo
britânico na Índia. Seu relatório final , publicado em 1894, considerava injustificada e
desnecessária a proibição do uso da substância em suas várias formas.

Outro foi o da comissão nomeada pelo prefeito de nova-iorquino Fiorello La
Guardia que, em 1944, publicou seu relatório ‘O Problema da Marihuana na Cidade de
Nova York’. Seus estudos incluíam pesquisas clínicas feitas em voluntários assim como
investigações sociológicas onde se concluiu que :
‘o consumo prolongado desta droga não produz degeneração física, mental ou
moral e que também não se observa nenhum efeito deletério permanente como
conseqüência de seu uso prolongado.’

Até então, no Ocidente, o uso da Cannabis em busca de seus efeitos psicoativos,
apresentava-se como circunscrito a certos grupos étnicos ou categorias profissionais
minoritários .Mas, a partir da década de 1960, ocorreu um repentino e vertiginoso aumento
do seu consumo recreacional na América do Norte e na Europa, associado ao
reposicionamento juventude em relação aos valores e práticas tradicionais. O alarme social
provocado por isso entre a geração mais velha levou à criação de várias comissões oficiais 4
de inquérito, incluindo a da Grã Bretanha, (Wotton Committee, 1968), a da Organização
Nacional de Saúde(1971), a do Canadá (Le Dain, Bertrand e outros, 1972) e a dos Estados
Unidos (National Comission, 1972).

Essas comissões produziram extensos e bem pesquisados relatórios que
enfatizavam a baixa periculosidade apresentada por esse consumo, embora apontassem para
a necessidade de um aprofundamento das pesquisas sobre o tema. Durante certo tempo
houve um aumento no interesse científico pelo assunto, mas este entrou em declínio quando
o uso por parte da juventude ocidental deixou de ser novidade , o consumo começou a
diminuir e verbas para pesquisa começaram a escassear. Porém, na década de 1990 o
interesse dos cientistas e do público voltou a crescer, devido a novas descobertas
envolvendo receptores de canabinóides no cérebro e os canabinóides endógenos, apontando
para a possibilidade de novos usos terapêuticos dos canabinóides. Outro fator importante
foi a crescente preocupação com os custos sociais e econômicos da manutenção de políticas
proibicionistas , que pareciam superar aqueles gerados pelo uso em si .

A própria Organização Mundial de Saúde sentiu a necessidade de atualizar seus
pareceres sobre o tema convocando um novo painel de pesquisadores que acabou por
publicar um relatório final em 1997. Este, porém, omitia alguns dos estudos inicialmente
encomendados que apontavam para uma menor periculosidade do uso da Cannabis, em
comparação com os do álcool e tabaco. Isso foi objeto de um artigo publicado pela
prestigiosa revista inglesa de divulgação científica “ New Scientist”, que atribuía essa
omissão a pressões exercidas pela National Institute on Drug Abuse (NIDA) dos Estados
Unidos e pelo Programa Internacional das Nações Unidas para o Controle das Drogas
(UNDCP). Esse artigo teve repercussão internacional e a polêmica levantada acabou
ensejando, em 1999, a publicação de uma coletânea, mais completa e atualizada, de todos
os estudos produzidos por essa comissão, incluindo as considerações que haviam sido
excluídas do relatório oficial. A ela foi acrescentada uma introdução onde se afirmava que,
embora representando os julgamentos e interpretações científicos de seus autores, ela não
deveria ser tomada como representando as posições ou políticas oficiais da Organização
Mundial da Saúde ou dos outros órgãos patrocinadores dos estudos originais (Kalant et ali,
1999).

Apesar de indicar que , dentro dos atuais padrões de uso, a Cannabis apresentasse
um problema de saúde pública muito menor do que as drogas lícitas, esses estudos apontam
para a existência de alguns riscos para a saúde nesse uso. Segundo eles, os mais prováveis
riscos atribuíveis ao uso crônico e pesado da Cannabis seriam: o desenvolvimento de uma
síndrome de dependência, o aumento do risco de envolvimento em acidentes com veículos
motorizados, um aumento no risco de desenvolver bronquite crônica, câncer no aparelho
respiratório, o nascimento de crianças abaixo do peso normal entre mães que fumam
durante a gestação e um aumento do risco de esquizofrenia entre indivíduos já propensos a
essa condição(Kalant et al. 1999:495).

De todos esses riscos, o mais potencialmente prevalente seria o da dependência.
Ao pensar sobre esse tema deve-se levar em conta as dificuldades que a medicina vem
encontrando em definir “dependência a uma substância”. Atualmente os critérios mais
utilizados para o reconhecimento científico de sua ocorrência são os elaborados pela
Associação Americana de Psiquiatria e publicados nos seus manuais DSM III-R (1987) e
IV( 1999).Esse enfoque difere bastante de concepções anteriores, dispensando-se agora a
obrigatoriedade de se constatar a presença de tolerância ou dependência, bastando a 6
referência a certas dificuldades de ordem psicológica e social_ii. Mas, em alguns casos, este
tipo de dificuldade poderia ser mais decorrentes do status ilícito de certas substâncias do
que de suas atuações sobre o organismo, levando ao risco da medicalização de problemas
de ordem sócio-cultural.

A nova classificação levou a um aumento na constatação de prevalência de
dependentes de Cannabis, o que vem sendo contestado por aqueles que sustentam que ela
não deve ser considerada como provocadora de dependência ou adicção, uma vez que seus
consumidores podem deixar de usá-lo a qualquer momento, por sua própria vontade. De
fato, poucos usuários parecem procurar tratamento para esse tipo de dependência,
ocorrendo também uma alta taxa de remissão espontânea dos sintomas (Kalant et ali,
1999:483 e 491). O próprio critério de “uso freqüente”, ( ou seja, que o indivíduo costuma
fazer uso da substância), que o senso comum pareceria exigir na atribuição de
“dependência”, deixa de ser considerado essencial, segundo essa nova forma de
classificação. Assim, por exemplo, o I Levantamento Domiciliar Sobre o Uso de Drogas
Psicotrópicas no Brasil sóregistra um total de de 6,9% de “uso na vida” de maconha ( o
que pode incluir um ou poucos incidentes,de pequeno ou nenhum impacto, ocorridos em
qualquer momento, em toda a vida do respondente). Esse relatório do levantamento deixa
de fornecer os dados sobre “uso freqüente”, que seriam os verdadiramente significativos na
discussão sobre efeitos do uso. Segundo explicação da publicação : “Os dados de maconha
referentes ao uso freqüente não estão apresentados devido às prevalências serem muito
baixas em todas as faixas etárias”. Algo que pode ser interpretado como falta de
significância estatística. Porém, isso não impede o registro de 1% de casos de
“dependência”, avaliados segundo critérios do National Household Surveys on Drug Abuse (NHSDA), derivados do DSM-III-R (Carlini et al 2002:68). Ao leitor resta a indagação
sobre a pertinência de se classificar como “dependente” alguém que faz pouco uso da
substância.

Mas, até mantendo-se como referência esses critérios, o perigo de criação de
dependência dessa substância é relativamente baixo. Kalant (1999:489), resenhando
diversas pesquisas científicas cita estudo de Anthony, Warner e Kessler de 1994,
realizados nos Estados Unidos e que indicam que 9 % dos que fizeram “uso na vida”da
maconha naquele país tornam-se “dependentes”em comparação com os 32% do tabaco,
23% dos opióides e 15% do álcool.

Esse grau de risco é tão baixo que muitos autores têm considerado a Cannabis
como não causadora de dependência. Outros, porém, sem se alinharem no campo dos que
se opõe a qualquer tipo de uso da Cannabis, têm chamado atenção para a pertinência da
questão da dependência à substância. Especialmente relevantes nesse ponto são as
considerações do médico naturalista americano, Andrew Weil, conhecido por sua
abordagem tolerante a respeito do uso de psicoativos e outras técnicas de alteração da
consciência. Embora reconheça que a síndrome de abstinência da maconha seja pouco
intensa ou duradoura e que sua dependência seja bastante diferente daquela de qualquer
outro psicoativo, considera que ela certamente ocorre e tem se tornado mais comum com o
crescimento do seu uso. Na sua forma mais aguda ela se manifestaria como um hábito de
fumar incessantemente durante o dia inteiro, num padrão de uso parecido ao de muitos
dependentes de nicotina.

Também ocorreria um processo de tolerância à maconha. Neste até as variedades
mais fortes parecem perder sua força, quando fumadas incessantemente. Isso levaria usuários a buscar variedades com ainda maiores concentrações de THC, para atingirem o
mesmo nível de “barato”. Mas, ocorrendo isso, ele sugere que tudo que esse indivíduos
precisariam fazer seria diminuir sua freqüência de uso, já que até um intervalo de vinte e
quatro horas no consumo pode restabelecer a sensibilidade aos efeitos dessa substância
(Weil e Rosen 1998:120). Outra pesquisa, realizada no Brasil, relata que usuários registram
o surgimento de tolerância em relação a amostras específicas da planta, não deixando,
porém, de sentir efeitos prazerosos com erva de outra procedência ou então após breve
interrupção no uso (MacRae e Simões 200:99).

Embora existam relatos apontando para a ocorrência, entre usuários pesados, de
uma chamada “síndrome amotivacional” caracterizada por apatia, reclusão e falta de
motivação, não há documentação convincente de uma verdadeira síndrome o que tem
levado pesquisadores a considerar que ao invés de inventar uma nova síndrome
psiquiátrica, seria mais razoável considerar uma motivação diminuída como sintoma de
intoxicação crônica pela Cannabis (Kalant 1999:277). Mas, indivíduos com propensão a
doenças mentais como a esquizofrenia devem evitar o consumo da Cannabis, pois estudos
tem mostrado que esse uso pode exacerbar os sintomas da doença em indivíduos já afetados
(Kalant 1999:282).

Apesar dos diversos posicionamentos a favor, até recentemente somente um país,
a Holanda, havia despenalizado o uso e o pequeno comércio da Cannabis.Lá, a partir de
1976, passou-se a permitir que certos cafés vendessem pequenas quantidades de maconha
ou de haxixe, para serem consumidos no local ou em casa. Essa política, um exemplo
clássico de redução de danos, procura, através da regulamentação do tráfico, separar o
consumo de produtos canábicos daquele das drogas vistas como mais pesadas, como os
opiáceos.Hoje existem mais de mil desses estabelecimentos , onde não se permite que se
estoque mais de 500gr. de Cannabis e onde não se pode vender bebidas alcoólicas ou
outras drogas psicoativas. Também estão vedados: a publicidade, a venda para menores e
qualquer incômodo aos vizinhos.

Após vinte anos de despenalização, os níveis atuais de consumo da Cannabis entre
jovens holandeses é comparável ao de outros paises europeus e mais baixo que o
americano. Por outro lado, o consumo de opiáceos na Holanda, parece ter se estacionado
em uma determinada geração, que está envelhecendo sem conseguir recrutar muitos novos
adeptos entre os mais jovens. Além disso, enquanto em 1995 o número de dependentes de
heroína holandeses para cada 100.000 habitantes era de 160, nos Estados Unidos era de
430. Mas continua a existir um problema relacionado à venda por atacado dos produtos, já
que o dono do café não dispõe de respaldo legal para compra seu próprio suprimento, uma
vez que acordos internacionais dos quais a Holanda é signatária não permitem a plena
legalização do tráfico. Conseqüentemente o país ainda tem dificuldades com a economia
paralela que se desenvolve em torno do mercado atacadista de produtos canábicos. (Iversen
2001:304-318).Mesmo assim, seu exemplo tem estimulado outros paises a discutir a adoção
de políticas semelhantes e hoje, alguns cantões da Suíça, por exemplo, já permitem uma
comercialização controlada da Cannabis.
Controles sociais informais do uso da Cannabis
O conhecimento mais detalhado da psicofarmacologia da Cannabis ainda
apresenta muitas lacunas, sabendo-se pouco, por exemplo sobre os efeitos em longo prazo
das diferentes maneiras de se consumir essa substância. Assim, persiste a polêmica sobre
políticas oficiais a serem adotadas a respeito da criminalização ou liberação do seu uso. A
discussão desse tema torna-se ainda mais difícil devido à natureza ampla dos efeitos a
serem apreciados e que extrapolam considerações puramente fisiológicas. Abordagens mais
completas do tema exigem também considerações de natureza psicosociocultural .A
discussão sobre o uso de substâncias psicoativas inevitavelmente tem que lidar com temas
relacionados à questão dos valores relativos da saúde física individual vis-à- vis aqueles da
paz social, da autonomia do sujeito vis-à- vis aqueles das normas da moral hegemônica.
Nestes campos não há soluções consensuais e é difícil escapar do de noções preconcebidas.
Os aspectos psicosocioculturais da questão nem sempre podem ser detectados
pelas metodologias quantitativas, consideradas as únicas verdadeiramente científicas por
uma grande parcela dos praticantes das ciências da saúde, a quem atualmente costuma-se
atribuir a primazia do discurso legítimo sobre o tema. Mas isso não tem impedido que
diversos estudiosos de outras áreas de conhecimento discutam a relevância de fatores que
extrapolam o âmbito daquelas ciências.

Richard Bucher defende a idéia de que não existe droga a priori, considerando
que, no estudo da evolução da toxicomania, mais do que o efeito puramente fisiológico da
droga, o que importa é compreender a interpretação que o indivíduo dá à sua experiência,
ao seu estado e à motivação que o impele a um consumo repetido da droga. (Bucher et al
;1992:160-162). Ou seja, ao estudar o efeito de drogas como a Cannabis, não se poderia
considerar a substância isolada da subjetividade do usuário.

Mas, além dos aspectos diretamente relacionados à psique dos usuários, Bucher,
assim como outros autores, como o antropólogo Gilberto Velho, têm chamado atenção para
a relevância de considerações de ordem política e social tais como a maneira como o ‘mito
do maconheiro’ tem servido para fins conservadores, criando bodes expiatórios apontados
como inimigos públicos, utilizando-os para desculpar os mal-estares na sociedade e para
justificar os esforços de controle e repressão como garantia de segurança pública. Segundo
diz Richard Bucher:
“No uso desse mito, denuncia-se a máfia das drogas, mas para colocar-se ,
paradoxalmente , ao serviço de uma outra, merecendo o apelido de ‘máfia antidroga’
operando nos bastidores dos poderes constituídos. Infiltrando-se ali com tentáculos
astuciosamente articulados, ela consegue, hoje ainda, angariar para os seus propósitos
defensivos (se não belicistas) o grosso dos parcos recursos disponíveis.”(Bucher 1996:59).
Gilberto Velho, por seu lado, aponta a dimensão política da acusação de ‘drogado’
que também seria utilizada com a finalidade de manter o status quo servindo à clássica
tentativa de gerações mais velhas exercerem controle social sobre as mais novas (Velho
1981:58)

Adiala, discutindo o processo que levou à criminalização da maconha confirma
que no Brasil, assim como nos Estados Unidos, ela teria servido, em sua época para
reforçar medidas repressivas cujo objeto eram determinadas minorias étnicas identificadas
com o seu uso. Enquanto lá se tratava da população de migrantes de origem mexicana, aqui
os visados eram os negros quando, em 1936, a promulgação ocorreu, após violentas
campanhas de cunho declaradamente racista. Estas retratavam o costume de fumar
Cannabis como a “vingança do derrotado”, enfatizando a sua origem africana. Associavam
seus efeitos aos dos opiáceos (daí a utilização da expressão “ópio do pobre”) e
apresentavam-no como uma ameaça à “raça brasileira”. Muniu-se, assim, as autoridades de
novos pretextos para manter a população negra, então considerada “classe perigosa”, sob
vigilância. Qualquer negro tornava-se suspeito de ser maconheiro ou traficante e, portanto,
passível de ser revistado e detido (Adiala 1986).

Posteriormente, na década de 1970, quando os jovens de classe média se
apresentavam como importantes contestadores do ethos conservador que a ditadura militar
procurava impor ao país, a identificação do uso dessa substância com a chamada “cultura
alternativa”, serviu a propósitos repressivos semelhantes direcionados contra esse segmento
da população (MacRae e Simões 2003:96).A Lei 6368, promulgada em 1976, não fazia
uma distinção clara entre o tráfico de drogas (posteriormente classificado como “crime
hediondo”, radicalizando seu potencial repressivo) e porte para uso próprio, sujeitando uma
grande parcela da população, em sua maioria cidadãos honestos e produtivos, a graves
riscos de danos físicos, psíquicos e sociais, muito maiores que os se alega resultarem do uso
da Cannabis. . Isso dificulta o desenvolvimento de maneiras mais tranqüilas dos usuários
conseguirem seus suprimentos, penalizando severamente, por exemplo, sua prática
corriqueira de formar cooperativas para realiza uma compra coletiva maior, com a intenção
de reduzir os contatos com o submundo do crime e seus perigos. Pequenas plantações
caseiras, objetivando uma produção isenta de aditivos químicos, também expõem seus
cultivadores à acusação de tráfico. Outro conceito jurídico deixado pouco claro nessa lei é o
de “apologia do uso de drogas”, cuja apenação dificulta muitas iniciativas de redução de
danos ao ameaçar qualquer discussão ou divulgação de formas menos danosas de uso.

Os contextos sociais políticos e culturais desempenhariam também importante
papel nos próprios padrões de uso das drogas,assim como na determinação de muitas das
suas conseqüências. Becker discute a importância do saber sobre as substâncias que se desenvolve entre os usuários, influenciando como ele as usa, interpreta e responde aos seus
efeitos. Em um estudo sociológico pioneiro sobre usuários de maconha, inicialmente
publicado em 1953, ele chamou atenção para a necessidade de um aprendizado social para
que os seus efeitos pudessem ser obtidos, reconhecidos e apreciados (Becker 1966:46).
Além disso, haveria, segundo ele, a necessidade de se participar de um grupo que
incentivasse o usuário a enfrentar os interditos sociais e seguir pela ‘carreira do
maconheiro’, passando pelas etapas de ‘iniciante’,’usuário ocasional’ e ‘usuário regular’
(Becker 1976:60).

Uma vez que a difusão do saber sobre as drogas é função da organização social
dos grupos em que as drogas são usadas, os efeitos do uso refletirão ou estarão
relacionados de alguma forma com cenários sociais. Torna-se , portanto necessário refletir
também sobre o papel do poder e do conhecimento nesses cenários (Becker 1976:202).
Em outro estudo o autor comenta como mudaram as conseqüências relacionadas ao uso
massivo da maconha entre a juventude americana. Apesar de originalmente esse uso haver
levado a numerosos casos de psicose, com o passar do tempo, esses casos diminuíram em
termos relativos, devido à difusão do conhecimento sobre essa droga e a natureza
passageira de seus efeitos, tanto entre os médicos quanto entre os usuários (Becker
1980:183).

A importância dos aspectos psicosociais no uso de substâncias psicoativas foi
reconhecida nas pesquisas realizadas no final da década de 1970 pelo médico americano
Norman Zinberg entre usuários de opiáceos, cannabis e alucinógenos (Zinberg 1984). Ele
se interessou especialmente pelo que chamou de ‘uso controlado’ de psicoativos,
caracterizado por seus baixos custos pessoais e sociais e, em boa medida determinado por controles sociais organizados em torno de “sanções sociais” e “rituais sociais”."Sanções
sociais" seriam as normas que definem se e como determinada droga deve ser usada.
Incluiriam tanto os valores e regras de conduta compartilhados informalmente por grupos
(embora freqüentemente de maneira não explicitada) e as leis e políticas formais que
regulamentam o uso de drogas. Já os "rituais sociais" seriam padrões estilizados de
comportamento recomendado em relação ao uso de uma droga. Eles seriam aplicados aos
métodos de aquisição e administração da substância, à seleção do meio físico e social para
usá-la, às atividades empreendidas após o uso, e às maneiras de evitar efeitos indesejados.
Dessa forma, esses rituais reforçariam e simbolizariam as sanções sociais. Os controles
sociais para todas as drogas, lícitas ou ilícitas, atuariam em diferentes contextos sociais,
indo desde grupos muito grandes, representativos de uma cultura como um todo, até
pequenos grupos específicos. Sua vigência se aplicaria de maneira variada em diferentes
momentos.

Realizando sua pesquisa com usuários de maconha vinte cinco anos depois da
primeira publicação do estudo de Becker, Zinberg constatou que muitas das conclusões do
sociólogo continuavam válidas. Apesar do grande crescimento no uso da substância nos
Estados Unidos durante esse tempo, os usuários novatos continuavam a se mostrarem
apreensivos sobre suas primeiras experiências, refletindo os temores do grande público
sobre as possibilidades dessa droga os levarem à dependência e à loucura, assim como
continuavam preocupados com o seu status ilícito. Os novatos continuavam a depender de
alguém com mais experiência que os mostrassem como fumar corretamente e
freqüentemente relatavam terem ficado decepcionados ao não se sentirem ‘de barato’ na
primeira vez que usaram a substância.(Zinberg 1984:83).

Nesse estudo o uso encontrado da maconha era pouco ritualizado, podendo
ocorrer numa grande variedade de ambientes e circunstâncias. Usuários controlados podiam
fumar a sós ou acompanhados. Estes não se reuniam especificamente para fumar, mas pela
sociabilidade sendo que a droga era simplesmente vista como um acessório para a ocasião.
Tal flexibilidade do ritual seria parcialmente explicada pela leveza e transitoriedade dos
efeitos e pela maneira mais tranqüila de amplos setores sociais conceberem o seu uso. Este,
embora ainda ilícito, era visto como envolvendo uma “droga leve”de amplo uso na
população. Havendo perdido muito de sua aura “desviante”, o uso de Cannabis agora
prescindiria dos antigos rituais determinados principalmente pela necessidade do
ocultamento dessa prática. Ao mesmo tempo ‘sanções sociais’ para o uso controlado
haviam se consolidado e eram encontradas entre a maior parte das subculturas usuárias.
Nessas condições, atualmente muito já pode ser aprendido sobre o uso controlado, antes de
uma primeira experiência de consumo da substância.

Embora os rituais de iniciação ao uso continuassem a existir, os novatos
rapidamente ultrapassavam essas primeiras situações altamente estruturadas e adaptavam
seu uso a uma variedade de diferentes situações sociais. Isso não significava que os
usuários controlados faziam um uso desordenado e perigoso, mas que os antigos controles
externos rígidos haviam sido substituídos por sanções sociais mais gerais, embora ainda
efetivos. Tampouco ocorrereria um descarte total dos rituais sociais de consumo. Embora o
compartilhar de um baseado entre um grupo de amigos tenha deixado de ser visto como
essencial,essa prática ainda era muito comum e continuava a ter uma função na redução de
danos, servindo para ajudar o usuário a ajustar a intensidade do barato. O tempo que
transcorre entre as inalações permite-lhe monitorar seu grau de intoxicação.

Com o desenvolvimento de maior familiaridade com todos os aspectos do uso da
maconha, estas sanções, assim como as para o uso de álcool, foram internalizadas e os
rituais que se desenvolveram para apoiar as sanções não precisam mais ser seguidos de
forma tão rígida. .Significativamente, os pesquisadores tiveram muito mais dificuldades em
encontrarem usuários de maconha “abusadores” do que “controlados” (Zinberg 1984:136-
137).

Pesquisa realizada em São Paulo e Salvador, entre usuários de Cannabis
considerados socialmente integrados, também detectou a formação e a vigência de uma
‘cultura da maconha’. Assim como fez Zinberg nos EUA, esse estudo demonstrou uma
tendência no Brasil à internalização das ‘sanções sociais’, que tem permitido um
afrouxamento dos ‘rituais sociais’. O contato com seus pares nas ‘rodas de fumo’ajudaria
os indivíduos a desenvolverem suas estratégias de consumo controlado. Através da troca de
experiências, os usuários aprenderiam a distinguir as atividades em que a maconha servia
como facilitador, inspirador ou complemento agradável, daquelas em que agia como
perturbador ou empecilho.

No curso da carreira desses fumantes brasileiros, constatou-se o estabelecimento
de um crescente autocontrole sobre os efeitos e sensações proporcionados pela substância,
até seu uso integrar-se plenamente à vida cotidiana. Nesse momento a ‘roda de fumo’
deixava de ser importante como ritual de controle, para ser substituída por sanções
internalizadas, passando a ser comum o uso solitário. Além disso, o contato com seus pares
da ‘roda de fumo’ serviu para lhes transmitir novas formas de perceberem a si mesmos e ao
mundo. Em todos os casos estudados, essa experiência era vista como referência importante
para a orientação da conduta dos sujeitos, mesmo que posteriormente deixassem de emprestar ao ato de fumar maconha qualquer significado especial ou transcendente.
(MacRae e Simões 200:136).

Mais recentemente, o modelo de Zinberg para o uso controlado de substâncias
psicoativas foi retomado por um cientista social holandês, Jean-Paul Grund, em pesquisa
realizada sobre os rituais de uso de heroína e cocaína em Rotterdam. Mas, para este, esse
modelo não explicaria satisfatoriamente as variações intragrupais encontradas na habilidade
de seus sujeitos de estudo em se beneficiarem efetivamente desses controles sociais.
Tampouco dava conta da natureza multidimensional dos processos de autoregulação, pois
além das normas e rituais a teoria deixava de tratar de maneira explicita de outros fatores
que podem ter impacto sobre os controles sociais. Grund considera a teoria de Zinberg
demasiadamente estática e propõe, portanto, algumas adaptações e elaborações.Assim, ele
introduz dois novos fatores ao modelo: ‘a estrutura de vida do usuário’e ‘a disponibilidade
da droga’.

Por "estrutura de vida" são entendidas as atividades regulares, tanto as
convencionais quanto as relacionadas à droga, que estruturam os padrões da vida
quotidiana. Aí também se incluem as relações pessoais, os compromissos, obrigações,
responsabilidades, objetivos, expectativas, etc., mesmo que não primariamente
direcionados à droga. Uma disponibilidade adequada das substâncias, que evitasse que a
sua simples aquisição se tornasse o único foco de interesse do usuário, também seria
importante para permitir o desenvolvimento das sanções e dos rituais sociais. As normas,
regras e rituais determinariam e constrangeriam os padrões de uso da droga, evitando uma
erosão na estrutura de vida, Uma vida altamente estruturada permitiria que o usuário
mantivesse a estabilidade na disponibilidade da droga, essencial para a formação e
manutenção de regras e rituais. A auto-regulação do consumo de drogas e seus efeitos
seriam, portanto, questão de um equilíbrio (precário) em uma corrente de retroalimentação
circular.

Em sua conclusão Grund enfatiza que o uso de drogas (mesmo as pesadas) não
leva, necessariamente, a padrões de uso descontrolados ou nocivos. Embora o uso de
psicoativos possa tornar-se uma atividade predominante, ela é raramente uma atividade
isolada e é, geralmente, social. Padrões de uso (quem usa o que e como) seriam sujeitos a
diversos determinantes como: disponibilidade, tendências pessoais e padronização cultural.
Alerta, também, para o fato de que embora o modelo seja circular, ele não é um circuito
fechado independente; os três elementos do trio (disponibilidade da droga; valores, regras e
rituais; estrutura de vida) sendo sujeitos a variáveis e processos externos distintos que vão
desde fatores psicológicos pessoais e culturais até regulamentos oficiais e considerações
mercadológicas. Grund considera que, portanto, o uso de psicoativos não pode ser isolado
do seu contexto social e, concordando com Zinberg, afirma que o controle sobre o uso
dessas substâncias é principalmente determinado por variáveis sociais (Grund 1993: 237-
254).

A perspectiva desenvolvida por Grund parece especialmente adequada para a
avaliação de certos grupos de orientação religiosa, como os rastafarianos (Barret1988:128)
e uma das “linhas” do Santo Daime (MacRae, 1992:73 e 1998), cujas doutrinas admitem o
uso sacramental da Cannabis como propiciador de estados de transe místico.Essas religiões
promovem e regulamentam aspectos da vida pessoal e social dos seus adeptos referentes
aos elementos controladores do uso elencados por aquele pesquisador. Ao longo de sua
história elas desenvolveram uma série de normas e de rituais sagrados para nortear o consumo do enteógeno, mas o status ilegal dessas práticas impossibilita a consolidação de
rituais públicos de uso. Assim, mais uma vez, a política proibicionista acaba por dificultar o
controle do consumo. Deixa de mobilizar os poderosos controles normativos, rituais e
sociais em geral de que dispõe essas organizações religiosas. São bastante conhecidos os
seus princípios puritanos e a eficácia de sua regulamentação, às vezes um tanto rígida, de
outros aspectos do comportamento de seus adeptos: como no uso de bebidas alcoólicas e na
estruturação de suas vidas sexuais.
Desperdiça-se a importante contribuição que esses movimentos religiosos poderiam dar, ajudando a retirar do uso dessa substância sua atual conotação de “malandragem”ao enfatizar seus potenciais aspectos espirituais e ordeiros.
Algumas sugestões para reduzir danos decorrentes do uso da Cannabis
Transportando para a prática algumas das idéias desenvolvidas por Becker,
Zinberg e Grund, entre outros, podemos sugerir que seria importante adotar as seguintes
medidas para reduzir os danos associados ao uso de substâncias psicoativas em geral e da
Cannabis em particular:
a) Reconhecendo que os piores danos do uso da Cannabis advém do seu status
ilícito, defender a legalização e regulamentação da disponibilidade dessa substância e seus
derivados e, possivelmente, dos psicoativos em geral. Ajudaria-se, assim, a evitar o
desenvolvimento de estruturas criminosas e violentas associadas ao tráfico e a assegurar um
controle de qualidade. Valeria também reconhecer a importância de usos formais e
ritualísticos de enteógenos, como modelos de redução de danos.
b)Enquanto ainda predominam políticas proibicionistas, buscar parcerias com
faculdades de direito para constituir grupos de defesa jurídica para usuários presos pela
polícia, e procurar contatos com órgãos de defensoria pública, chamando sua atenção para
problemas específicos dos usuários de drogas em sua relação com a lei.
c)Fomentar a disseminação e a discussão em torno dos saberes eruditos e leigos
existentes a respeito dos psicoativos. Para tanto serviriam publicações dos mais diversos
tipos, a criação de sítios na Internet e a constituição de grupos de discussão para usuários.
d) Apontar que, embora relativamente inócuo, o uso da Cannabis não deixa de
apresentar seus perigos, assim como o de outras drogas, lícitas ou ilícitas, sendo indicada a
busca de estratégias para reduzir seus danos.
e)Reduzir o sensacionalismo em torno do tema, chamando atenção para aspectos
mais amplos do uso de psicoativos lícitos e ilícitos, deixando de enfocar exclusivamente a
Cannabis..s Paralelamente é importante desmitologizar a figura do “traficante”, já que sua
representação atual como uma poderosa ameaça à ordem social instituída o torna um
modelo extremamente atraente para aqueles que se sentem excluídos de seus benefícios,
além de dificultar abordagens mais eficazes para os diversos problemas que o uso de drogas
apresenta de fato para a saúde física, psíquica e social da população .
f) Incentivar discussões intere intrageracionais sobre o tema de maneira isenta de
preconceitos. Para tanto se podem incentivar debates nas escolas, famílias, grupo de jovens,
etc, sobre a questão, deixando aflorar novas perspectivas e sugestões.
g)Evitar posturas de censura, tanto em discussões familiares quanto públicas sobre
o tema e buscar incentivar o desenvolvimento de normas, regras de conduta e rituais sociais
relacionados aos: métodos de aquisição e consumo, à seleção do meio físico e social para o
uso, às atividades empreendidas sob o efeito da substância e às formas de evitar efeitos
indesejados.
h)Promover uma melhoria na estruturação da vida do usuário, combatendo sua
marginalização econômica, social e cultural. Tendo em vista a estrutura essencialmente
desigual e pouco democrática da nossa sociedade, isso pode parecer irrealista por ser
demasiadamente ambicioso, mas a instituição de programas, oficiais ou não, de redução de
danos e a criação de grupos de usuários são passos iniciais que podem ser tomados nessa
direção.
i)Promover serviços de atendimento psicológico e social especializados para
aqueles que apresentam dificuldades em estabelecer uma relação controlada com a
substância. Estes poderiam visar o deslocamento do lugar ocupado pela droga na vida do
usuário, de maneira a retirar a sua centralidade e diminuir sua carga simbólica e afetiva.
Mais concretamente, em relação à abordagem direta de usuários da Cannabis
podemos fazer algumas sugestões complementares:
Primeiramente, sempre adotando uma posição de diálogo franco e democrático,
lembrar a eles a natureza ilícita de suas práticas e as severas sanções penais às quais se
expõe. Na persistência da intenção de uso, sugerir e reforçar normas, regras de conduta e
rituais sociais condizentes com o uso controlado, incluindo modos de evitar efeitos
indesejados e a importância de se escolher ambientes físicos e sociais de natureza tranqüila
e protetora para o uso.

Incentivar debates sobre as melhores maneiras de fazer frente aos piores perigos
apresentados pelo uso ilícito da Cannabis: a violência da repressão e do submundo do
tráfico de drogas ilícitas. Conscientizar os usuários de seus direitos legais e discutir formas
de evitar contato desnecessário com os traficantes; levantar os prós e contras de estratégias como a formação de cooperativas de compradores ou o desenvolvimento de pequenas
plantações caseiras.

Promover a conscientização do usuário sobre quais os benefícios que busca, e
atentar para a importância de se impor limites ao uso, para que este não se torne um simples
hábito acompanhado de tolerância aos princípios ativos da Cannabis e deixando de prover
satisfação. Quando isso ocorre o usuário pode considerar mudar seu padrão de uso,
buscando a potencialização dos efeitos através da redução no consumo e não na busca
incessante por variedades mais potentes ou no aumento da sua freqüência. Na persistência
de problemas na relação com a substância o usuário deveria considerar a possibilidade de
buscar o auxílio de profissionais especialistas no tratamento de toxicomanias.

Além de evitar usar o psicoativo por simples conformismo a padrões de
comportamento grupais ou só porque está disponível, o usuário deve pensar sobre o melhor
momento para seu uso, levando em conta as suas necessidades de estudo e trabalho.Para
isso pode também procurar identificar as atividades são mais adequadas ao seu estado de
“barato”, evitando, assim, o uso dessa substância quando isso possa ser um fator de
perturbação.Alguns usuários alegam poder ler, estudar e se concentrar melhor sob efeito do
Cannabis, outros dizem o contrário. Certas atividades simples e repetitivas como varrer a
casa ou capinar um terreno podem se tornar mais agradáveis, outras, requerendo precisão e
coordenação psicomotora, reflexos rápidos e orientação espacial, como a condução de
veículos, são dificultadas e devem ser evitadas. A ingestão de bebidas alcoólicas e a
sonolência agravam ainda mais essas perturbações. Assim, cada um deve buscar um autoconhecimento em torno dessas questões, uma vez que os efeitos de psicoativos tendem a
variar de indivíduo para indivíduo.

Embora pesquisas médicas tenham demonstrado uma relativa inocuidade da
Cannabis, é indubitável o efeito danoso ao sistema respiratório de se inspirar grandes
volumes de fumaça, seja qual for a sua origem e composição. Assim, torna-se importante
discutir maneiras de se realizar o consumo de formas mais eficientes e menos agressivas
para o organismo.Com essa finalidade, se pode discutir a relevância de diversas sugestões
de redução de danos como as seguintes, colhidas entre usuários e em documentos que
circulam nos ambientes onde se usam produtos canábicos na Europa e na Austrália.
Evitar reter o fumo no pulmão mais que alguns segundos. Isso basta para absorver
grande parte do THC, o resto do tempo representando uma exposição desnecessária aos
componentes cancerígenos do fumo como o alcatrão.

Evitar a presença de fungos que possam afetar o sistema respiratório (pode-se
sugerir deixar a Cannabis ao sol ou aquecê-la no forno brando), assim como produtos
químicos, como amônia, que podem vir misturados com a droga (nesse caso recomenda-se
deixar o produto imerso em água durante algumas horas e depois secá-lo ao ar livre ou em
forno brando).Igualmente, ao enrolar baseados, seria recomendável usar papel fino,
desprovido ao máximo de corantes e outros produtos químicos, sendo também importante
evitar “maricas” e cachimbos de plástico ou outros materiais que possam soltar vapores
tóxicos ao serem aquecidos.

Evitar um fumo demasiadamente quente, deixando de fumar pontas, utilizando
cachimbos de água, ou, mais simplesmente, improvisando um cachimbo com a mão
(prendendo o baseado entre os dedos, fazendo um oco com a mão fechada e aspirando
através dele).

Não usar filtros de cigarros em baseados, já que eles podem reter muito do THC e
aumentam a absorção de tóxicos como o alcatrão.Atualmente já existem na Europa
vaporizadores e outros produtos que permitem inalar os vapores de THC sem levar a
Cannabis à combustão. São especialmente recomendados para usuários debilitados que
consomem a substância com fins medicinais.

Aqueles com a imunidade prejudicada ou que estejam consumindo maconha na
companhia de pessoas sofrendo de doenças transmitidas pela saliva, devem evitar a
exposição a patógenos, deixando de colocar a ponta do baseado diretamente na boca. Isso
pode ser feito da maneira já descrita acima, onde o baseado é fumado através de um oco
formado com a mão fechada.

O aparecimento de dificuldades em respirar, tosses constantes ou outros
problemas do aparelho respiratório podem sinalizar danos sendo causados pelo fumo.

Nesses casos, tal como com tabagistas, é recomendável a cessação ou redução no uso e,
possivelmente, a adoção de outras vias de consumo, tal como a ingestão de comidas
preparadas com Cannabis.Esse antiqüíssimo método de consumo tem, porém, suas
especificidades e difere do fumar especialmente em relação ao controle da dosagem.

Quando se consome a Cannabis em bolos, doces, etc, os efeitos da ingestão levam entre 30
e 60 minutos para se manifestar. Isso torna fácil um consumo de quantidades excessivas do
produto por aqueles acostumados a sentir os efeitos imediatamente após as primeiras
inspirações de fumo. Além disso, o fígado produz um metabolito denominado 11-hidroxi-
THC, que é de 4 a 5 vezes mais potente que o THC. Embora a overdose de THC não seja
fatal, ela pode ser desagradável e durar várias horas.

Mulheres grávidas devem levar em conta os riscos ao feto apresentados pelo
hábito de fumar, tanto tabaco quanto maconha. Embora o tema ainda seja controverso, há
evidências de que o uso da substância durante a gravidez pode produzir efeitos sutis no
nascituro e até afetar suas capacidades de aprendizagem em anos posteriores (Kalant
1999:425).

Mesmo baixas doses de THC costumam causar dilatação nas veias sanguíneas nos
olhos, tornando-as mais visíveis. Embora não haja evidência de nenhum risco maior,
pessoas com conjuntivite, ou olhos inflamados, deveriam levar isso em consideração.Não é
recomendável o uso de colírios que constringem essas capilares para esconder a
vermelhidão “bandeirosa” (Conrad 2001:118).

Atentar para os efeitos sinergizantes da mistura da maconha com bebidas
alcoólicas e outras drogas, assim como para o efeito devastador da “larica” em programas
de regime alimentar, etc.

Lembrar que indivíduos com propensão a certas doenças mentais, como a
esquizofrenia, devem evitar o consumo de Cannabis que pode desencadear crises em
indivíduos suscetíveis.
Conclusões finais
Mas, apesar da relevância de várias das indicações voltadas para as minúcias das
práticas de uso da Cannabis, não parece demasiado reiterar os comentários a respeito da
relativa inocuidade da substância em si e dos perigos apresentados pela ilicitude do seu uso
e distribuição, tanto aos cidadãos em geral (sejam eles usuários ou não) quanto à
organização social como um todo, devido à corrupção e arbitrariedade que esse status legal
suscita. Assim, torna-se de suma importância mudar a maneira como a sociedade, vem se relacionando com as substâncias psicoativas em geral e com seus usuários. Ao discutir a
questão da descriminalização do uso não se pode deixar de lado a questão do fornecimento
da substância, o outro lado dessa moeda. Lembra-se também que a disponibilidade da droga
é um fator importante para o desenvolvimento de regras e rituais mais eficazes em
assegurar um uso mais controlado e menos danoso.

Igualmente, deve-se lembrar que em grande parte as dificuldades encontradas no
uso de drogas são devidas a problemas sociais de ordem mais ampla. O reconhecimento da
importância do usuário ter uma vida bem estruturada, em termos de ocupação de tempo,
renda, obrigações sociais e afetivas, deve voltar nossa atenção para a necessidade de se
prover melhores condições de emprego, saúde, educação e inclusão social para as
populações que demonstram maiores dificuldades em suas relações com as substâncias
psicoativas. Ao invés de concebidas como perigosas ameaças à ordem institucional, seriam
mais bem vistas como suas grandes vítimas.

Como último ponto, levando em conta o papel importante no agravamento da
crise de saúde nacional desempenhado pelas péssimas condições em que são submetidas as
populações confinadas, devemos reavaliar, de maneira radical, as noções que norteiam as
atuais políticas de encarceramento dos que infringem as leis. Afinal, muitas das sugestões
acima, que foram inspiradas por práticas já bastante comuns e recomendados como sensatas
em diversos paises, ainda podem acarretar, entre nós, severas penas de prisão sob o regime
proibicionista atualmente em vigor.
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