Psicodélico: Entrevista com o Chefe da Secretaria Nacional Antidrogas do Uruguai.

quarta-feira, 9 de janeiro de 2013

Entrevista com o Chefe da Secretaria Nacional Antidrogas do Uruguai.

Uruguai chama a atenção por políticas de vanguarda, que contrariam grandes interesses

 Fonte : Revista Galileu
Editora Globo
Divulgação
Famoso pela qualidade de suas carnes e doces de leite, o Uruguai pode parecer, à primeira vista, um pequeno rancho gaúcho. Nem tanto. Sob a batuta do ex-guerrilheiro e atual presidente José “Pepe” Mujica, o país tem chamado atenção com políticas de vanguarda, especialmente nas áreas de direitos humanos e saúde, como fez ao descriminalizar o aborto em outubro.
Em relação às drogas, o país é o único das Américas que nunca criminalizou o uso, e é famoso pelo pioneirismo no controle do tabaco. Em 2006, foi o primeiro do continente a proibir o fumo em locais públicos fechados, proibiu totalmente a propaganda e aumentou os impostos para triplicar o preço do maço. Em três anos, o número de enfartos caiu 17%. Nesta entrevista, o chefe da Secretaria Nacional Antidrogas do Uruguai, Julio Calzada, explica porque agora o governo está decidido a regulamentar o comércio de maconha. 

Por que regulamentar a venda de maconha? 
Porque o consumo de maconha é um problema de saúde, mas a forma como ela está regulada gera um problema adicional de segurança pública. A política quase universal que se reproduziu nos últimos 50 anos fez aumentar o consumo, o crime organizado, o número de pessoas presas, a lavagem de dinheiro e ações violentas. Ela não deu o resultado que se esperava, sem dúvida. Então é melhor mudar, buscar uma política alternativa. E tentar controlar o mercado, e não ignorá-lo. 

O governo não teme que o consumo aumente? Sim, mas há experiências de outros países. A Holanda legalizou, na prática, e em 30 anos tem menos pessoas que consomem maconha do que vizinhos como Espanha e Itália. Aqui teremos um amplo controle do estado. Temos a capacidade para fazer isso, pensando numa população de 3,5 milhões de habitantes. 

Mas a disponibilidade comercial e a queda na percepção de risco não podem fazer o consumo aumentar? Sim, por isso elaboramos um projeto em que não existe propaganda. E o mercado vai ser regulado para que não exista lucro nem qualquer promoção de consumo. Esse é um marco da estratégia: reduzir o consumo, em geral, e, particularmente, retardar a idade que se inicia o uso. Hoje, se começa por volta dos 15 anos e queremos que isso aconteça mais tarde, pois teríamos um impacto menor para a saúde. 

Também se trata de um ataque ao tráfico? 
Sim, mas não é uma medida isolada. Note que não falamos em liberação ou legalização, mas de regulamentação do mercado. Hoje ele está totalmente desregulado, o Estado não pode interferir sobre o financiamento, a produção, a distribuição nem nada. Temos capacidade para controlar isso e assim atacar o que mais sustenta o tráfico, que é a venda dessa mercadoria. 

Mas acha que tráfico acabaria por completo? Não vai ser de um dia para o outro, é uma estratégia progressiva. E sempre vai haver algum aspecto do mercado negro em funcionamento. Hoje temos um amplo controle sobre o mercado de tabaco. No entanto, sempre existe um contrabando de cigarros. Assim como aqui no Uruguai temos contrabando de pinga e de outros produtos brasileiros. O que pensamos é que é possível reduzir exponencialmente o volume de dinheiro que hoje o crime organizado tem nas mãos. 

Quanto vale o mercado de maconha uruguaio para eles? Considerando o consumo estimado de 20 toneladas de maconha e os preços praticados no país, são cerca de 12 milhões de dólares. Outras substâncias têm muito menos consumidores. 

Quanto a maconha representaria do total do mercado de drogas proibidas? Metade? Acho que mais da metade. 

Como o governo lida com a falta de apoio da população uruguaia ao projeto? O governo tem que fazer o que está convencido de que tem que fazer. Hoje estamos trabalhando para mudar a principal preocupação da opinião pública, de que a medida faria disparar o consumo, como você insiste. Não queremos isso, ao contrário. E ele vai se reduzir, ainda que não significativamente. Também queremos mostrar que podemos acabar com o efeito colateral do desenvolvimento do tráfico. 

O governo não teme que algo não funcione? Sim, claro. Por isso vamos monitorar o cumprimento da lei e estabelecer as correções que a experiência mostre necessárias. Isso me parece muito importante, especialmente se comparamos com as políticas dos últimos 50 anos, que não foram avaliadas. Ou que, quando foram avaliadas, não foram modificadas, mesmo quando se constatou que produzia resultados inversos do que se desejava. 

Estamos propondo implementar outra política porque acreditamos que esta não funciona, então obviamente estamos totalmente abertos, dispostos e interessados em monitorar e ir modificando nossa estratégia para atingir o resultado proposto. Caso não os conquistemos, vamos nos certificar sobre as razões disso, e, se for preciso mudar a política, é claro que podemos modificá-la. 

Estudou-se muito para formular esse projeto? Sim, porque toda política pública, nas apenas as que falam sobre drogas, tem que ser realizada com base na ciência. Toda substância que altera consciência é algo que pode proporcionar risco para as pessoas e não podem ter propaganda do mesmo modo que sapatos ou gravatas. Ainda que uma pessoa possa se enforcar com uma gravata, é obvio que o uso da gravata em si não gera nenhum dano a terceiros. Sabemos que álcool e tabaco tem riscos para saúde. Não são proibidos, mas precisam ser regulados. A política de regulação precisa ser baseada em evidências, e a evidência diz que a maconha tem riscos específicos, diferentes do de outras substâncias. Não se pode levar em conta um parâmetro geral, comparando-a, por exemplo, com a heroína ou a cocaína. 

O que acontecerá se algum Uruguai for flagrado vendendo drogas a um menor de idade ou a um turista? Será processado pela lei atual, que continuará valendo, respondendo ao crime de tráfico, com pena de prisão de 2 anos ou mais.

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