Psicodélico: As Portas da Percepção - Aldous Huxley

quinta-feira, 3 de janeiro de 2013

As Portas da Percepção - Aldous Huxley

Escrito em 1954 por Aldous Huxley, As Portas da Percepção é o relato da experiência do escritor com a mescalina.  A obra já foi chamada de "A Bíblia psicodélica" e foi escrita como resultado das experiências de Huxley com  alucinógenos. O resultado são idéias e estudos que anda hoje são considerados revolucionários e "perigosos demais para as pessoas comuns". 
O autor assume que a realidade é muito mais vasta do que o que é normalmente visto e sentido pelas pessoas. O cérebro humano filtra o universo de modo a não permitir a passagem de todas as impressões e imagens que existem efetivamente. Se isso acontecesse, o processamento de tal quantidade de informação seria algo entre o maravilhoso e o insuportável, podendo gerar místicos ou loucos depedendo do background em que a pessoa vive. 
O livro trás ainda uma crítica pesada à religião contemporânea, e traduz as religiões estitucionalisadas como um obstáculo que mais afasta o religioso do sagrado do que o une as pessoa a este princípio transcedente. A obra culmina no desenvolvimento de uma filosofia sobre a formação de uma religião peiotista.
No original o texto não possui divisões por capítulos, a divisão aqui apresentada serve apenas para facilitar a leitura do volume. O título vem de uma famosa citação do poeta inglês, William Blake: "Se as portas da percepção estivessem limpas, tudo apareceria para o homem tal como é: infinito."



Indice:


  1. A Experiência Com a Mescalina
  2. A Maior Drugstore do Mundo
  3. O Jardim que Adão Viu Quando Abriu os Olhos
  4. O Mar Vermelho de Tráfego
  5. Conclusão - Comunhão com o Deus Vegetal

1. A Experiência Com a Mescalina



FOI NO ANO DE 1886 que o farmacologista alemão Ludwig Lewin publicou o primeiro estudo sistemático do cacto que, depois disso, haveria de receber seu nome. O Anhalonium lewinü era novo para a ciência, embora fosse, na verdade, um amigo desde tempos  imemoriais  para  as  religiões  primitivas  e  para  os  índios  do  México  e  do Sudoeste dos Estados Unidos. Era até muito mais que um amigo. Segundo as palavras de  um dos  primeiros espanhóis  a visitar o Novo Mundo, "eles comem uma raiz a que chamam de peiote e que é por eles venerada como a um deus". 

O  porquê  de  tal  veneração  evidenciou-se  quando  psicologistas  eminentes,  tais como  Jaensch,  Havelock  Ellis  e  Weir  Mitchell,  começaram  suas  experiências  com  a mescalina — o princípio ativo do peiote. Não há dúvida de que eles as interromperam em  um  ponto  muito  aquém  da  idolatria,  mas  tudo  nos  leva  a  situar  a  mescalina  em posição  ímpar  entre  os  demais  alcalóides.  Administrada  em  doses  adequadas,  ela modifica  mais  profundamente  a  qualidade  da  percepção  que  qualquer  outra  droga  à disposição do farmacologista, a isso aliando o fato de ser menos tóxica que as demais. 

A pesquisa sobre a mescalina tem sido realizada esporadicamente, desde os dias de  Lewin  e  Havelock  Ellis.  Os  químicos  não  se  limitaram  a  isolar  o  alcalóide; conseguiram  também  realizar-lhe  a  síntese,  com  o  que  não  mais  ficaram  à  mercê  das escassas  e  problemáticas  coletas  de  um  cacto  do  deserto.  Os  alienistas  têm,  eles mesmos,  feito  uso  da  mescalina,  buscando  assim  conseguir  uma  melhor  e  mais  direta compreensão  dos  processos  mentais  de  seus  pacientes.  Infelizmente,  por  trabalharem baseados em um número muito reduzido de provas e dentro de uma faixa de condições por  demais  estreita,  os psicologistas apenas observaram e registraram alguns dos  mais impressionantes  efeitos  da  mescalina.  Os  neurologistas  e  fisiologistas  chegaram  a algumas  conclusões  a  respeito  do  mecanismo  de  sua  ação  sobre  o  sistema  nervoso central. E ao menos um filósofo militante tomou o alcalóide, ante a luz que este poderia lançar sobre antigos e insolúveis enigmas, tais como o lugar da mente na natureza e a relação entre a inteligência e o consciente. 

Assim  estavam  as  coisas  até  que,  há  dois  ou  três  anos,  foi  observado  um  fato novo[1], talvez de grande importância.   Na verdade, havia muitas décadas que esse fato se apresentava  ao  vivo,  diante  de  todos,  mas,  a  despeito  disso,  ninguém  se  havia  dele apercebido até que um jovem psiquiatra inglês, que atualmente trabalha no Canadá,  se  deu  conta  da  grande  semelhança  de  composição  química  existente entre a mescalina e a adrenalina. Pesquisas posteriores revelaram que o ácido lisérgico —  um  onírico  extremamente  poderoso,  derivado  da  ergotina  —  apresenta  afinidades com  essas  duas  substâncias,  em  suas  características  bioquímicas.  Veio  em  seguida  a descoberta  de  que  o  adrenocromo,  produto  de  decomposição  da  adrenalina,  pode produzir  muitos  dos  sintomas  observados  no  inebriamento  por  mescalina.  E  é  bem provável    que    o    adrenocromo    seja    o    fruto    de    uma    decomposição    realizada espontaneamente no corpo humano. Isto nos leva a concluir que cada um de nós é capaz de  produzir  uma  substância  química  da  qual,  como  sabemos,  doses  diminutas  podem criar profundas alterações na percepção. Algumas dessas alterações são semelhantes às que acompanham essa praga tão característica do século XX que é a esquizofrenia. Será essa   doença   mental   uma   decorrência   de   um   desequilíbrio   químico:    E   estará   o desequilíbrio químico, por seu turno, ligado a sofrimentos psíquicos que atuem sobre as glândulas  supra-renais?  Será  arrojado  e  prematuro  afirmá-lo.  O  máximo  que  podemos dizer  é  que  isso  constitui  uma  hipótese  plausível.  Entretanto,  o  mistério  vem  sendo sistematicamente  desvendado;  os  detetives  —  bioquímicos,  psiquiatras  e  psicologistas — acham-se em sua pista. 

Em razão de uma série de circunstâncias — que para mim foram extremamente favoráveis  —  vi-me,  na  primavera  de  1953,  situado  bem  no  meio  de  tal  busca.  Um desses  pesquisadores  tinha  chegado  à  Califórnia,  levado  por  suas  investigações.  A despeito dos setenta anos de pesquisas sobre a mescalina, o material psicológico de que se dispunha era ainda incrivelmente reduzido, e ele estava ansioso por ampliá-lo. Eu me atravessara  em  seu  caminho  e  estava  disposto  —  ou  melhor,  decidido  —  a  servir  de cobaia.  E foi assim que,  em uma  radiosa  manhã  de  maio,  tomei quatro decigramas de mescalina, dissolvidos em meio copo d'água, e sentei-me para esperar pelos resultados. 

Vivemos,  agimos  e  reagimos  uns  com os  outros;  mas  sempre,  e  sob  quaisquer circunstâncias, existimos a sós. Os mártires penetram na arena de mãos dadas; mas são crucificados  sozinhos.  Abraçados,  os  amantes  buscam  desesperadamente  fundir  seus êxtases  isolados  em  uma  única  autotranscendência;  debalde.  Por  sua  própria  natureza, cada  espírito,  em  sua  prisão  corpórea,  está  condenado  a  sofrer  e  gozar  em  solidão. Sensações, sentimentos, concepções, fantasias — tudo isso são coisas privadas e, a não ser  por  meio  de  símbolos,  e  indiretamente,  não  podem  ser  transmitidas.  Podemos acumular  informações  sobre  experiências,  mas  nunca  as  próprias  experiências.  Da família à nação, cada grupo humano é uma sociedade de universos insulares. 

Muitos  desses  universos  são  suficientemente  semelhantes,  uns  aos  outros,  para permitir  entre  eles  uma  compreensão  por  dedução,  ou  mesmo  por  mútua  projeção  de percepção. Assim, recordando nossos próprios infortúnios e humilhações podemos nos condoer  de  outras  pessoas  em  circunstâncias  análogas;  somos  até  capazes  de  nos pormos  em  seu  lugar  (sempre,  evidentemente,  em  sentido  figurado).  Mas  em  certos casos a ligação entre esses universos é incompleta, ou mesmo inexistente. A mente é o seu  campo,  porém  os  lugares  ocupados  pelo  insano  e  pelo  gênio  são  tão  diferentes daqueles onde vivem o homem e a mulher comuns que há pouco ou nenhum ponto de contato  na  memória  individual  para  servir  de  base  à  compreensão  ou  a  ligações  entre eles.  Falam,  mas  não  se  entendem.  As  coisas  e  os  fatos  a  que  os  símbolos  se  referem pertencem a reinos de experiências que se excluem mutuamente. 

Contemplarmo-nos  do  mesmo  modo  pelo  qual  os  outros  nos  vêem  é  uma  das mais confortadoras dádivas. E não menos importante é o dom de vermos os outros tal como  eles  mesmos  se  encaram.  Mas  e  se  esses  outros  pertencerem  a  uma  espécie diferente  e  habitarem  um  universo  inteiramente  estranho?  Assim,  como  poderá  o indivíduo, mentalmente são, sentir o que realmente sente o insano? Ou, na iminência de ser  reencarnado  na  pessoa  de  um  sonhador,  um  médium  ou  um  gênio  musical,  como poderíamos  algum  dia  visitar  os  mundos  que  para  Blake,  Swedenborg  ou  Johann  Sebastian Bach eram seus lares? E como poderá alguém, que esteja nos limites extremos do ectomorfismo e da cerebrotonia, pôr-se no lugar de outrem que ocupa o limite oposto do  endomorfismo  e  da  viscerotonia  ou  (a  não  ser  dentro  de  certas  áreas  restritas) compartilhar dos sentimentos de um terceiro que se situe no campo do mesomorfismo e da somatotonia?  Para o behaviorísta inflexível, tais proposições — suponho eu — são desprovidas de sentido. Mas para aqueles que aceitam, do ponto de vista teórico, aquilo que, na prática, sabem ser verdade — isto é, que a experiência possui dois aspectos, um externo e o outro interno —, os problemas apresentados são reais e tanto mais sérios por serem,   alguns,   inteiramente   insolúveis,   e   outros   só   poderem   ser   resolvidos   em circunstâncias  excepcionais  e  por  métodos  que  não  se  acham  ao  alcance  de  qualquer um. É, pois, quase certo que jamais poderei saber o que sentem sir John Falstaff ou Joe Louis.  Por  outro  lado,  sempre  me  pareceu  possível  que,  por  meio  do  hipnotismo,  do auto-hipnotismo, da meditação sistemática, ou ainda pela ação de uma droga apropriada, eu  pudesse  modificar  de  tal  forma  minha  percepção  normal  que  fosse  capaz  de compreender, por mim mesmo, a linguagem do visionário, do médium e até\ do místico. 

Baseado no que já havia lido a respeito das experiências com a mescalina, eu me convencera  antecipadamente  de  que  a  droga  haveria  de  garantir  minha  admissão,  ao menos por umas poucas horas, no tipo de mundo interior descrito por Blake e AE.[2] Mas o que eu esperava não aconteceu. Contava ficar, de olhos cerrados, a contemplar visões de  corpos  geométricos  multicores,  de  formas  arquitetônicas  animadas,  recobertas  de gemas  e  fabulosamente  belas,  de  paisagens  repletas  de  figuras  heróicas,  de  dramas simbólicos  e  perpetuamente  apaixonantes,  no  limiar  da  revelação  derradeira.  Mas  está claro  que  eu  não  levava  em  conta  as  idiossincrasias  de  minha  formação  mental,  as realidades de meu temperamento, educação e hábitos. 

Sou e, até onde minha memória alcança, sempre fui pouco dado a devaneios. As palavras, mesmo as mais evocativas, empregadas pelos poetas, não conseguem produzir imagens em minha mente. Não vêm ao meu encontro visões hipnagógicas no limiar do sono.  Quando  me  lembro  de  algo,  a  memória  não  se  me  apresenta  como  um  fato  ou objeto  vivido.  Por  um  esforço  da  vontade,  consigo  evocar  uma  imagem  não  muito vivida do que aconteceu na tarde da véspera, de como era o Lungarno antes de as pontes terem sido destruídas ou da estrada de Bayswater quando os poucos ônibus eram verdes e  pequeninos,  puxados por  velhos cavalos a  uns seis quilômetros por  hora.  Mas essas imagens terão pouca substância, e de forma alguma poderão ter vida própria. Guardam, para os objetos reais, a mesma proporção que os fantasmas homéricos apresentam com relação  aos  homens  de  carne  e  osso  que  vão  visitá-los  nas  sombras.  Só  quando  tenho febre alta é que minhas imagens mentais adquirem vida independente. Para aqueles cuja imaginação  é  fértil,  meu  mundo  interior  terá  de  parecer  curiosamente  monótono, limitado e desinteressante. Este era o mundo — um pobre mundo, porém meu — que eu esperava ver transformado em algo inteiramente diferente de si mesmo. 

A modificação que realmente ocorreu nesse mundo nada teve de revolucionária. Meia  hora  depois  de  ingerir  a  droga,  comecei  a  perceber  um  lento  bailado  de  luzes douradas.  Pouco  depois  surgiram  imponentes  superfícies  rubras  que  cresciam  e  se avolumavam a partir de brilhantes nódulos de energia a assumir continuamente as mais variadas  formas.  De  outra  feita,  ao  fechar  os  olhos,  se  me  deparava  um  complexo  de estruturas  cinzentas,  de  dentro  das  quais  brotavam,  incessantemente,  pálidas  esferas azuladas   que   se   iam   materializando   e,   à   medida   que   o   faziam,   deslizavam  silenciosamente para cima e fugiam de cena. Mas em tempo algum apareceram faces ou formas de homens ou animais. Nada de paisagens, espaços abissais, mágico crescimento e metamorfose de edificações, nada que lembrasse, por remoto que fosse, um drama ou uma parábola. O outro mundo ao qual a mescalina me conduzira não era o mundo das visões;  ele  existia  naquilo  que  eu  podia  ver  com  meus  olhos  abertos.  A  grande transformação  se  dava  no  reino  dos  fatos  objetivos.  O  que  tinha  acontecido  a  meu universo subjetivo era coisa que, relativamente, pouco importava. 

Eu ingerira minha poção às onze horas. Hora e meia mais tarde estava sentado em meu escritório, contemplando atentamente um pequeno vaso de vidro. Continha ele apenas  três  flores  —  uma  rosa-de-portugal,  inteiramente  desabrochada,  com sua  rósea corola  onde  a  base  de  cada  pétala  apresentava  um  matiz  mais  quente  e  brilhante;  um grande cravo creme e arroxeado; e, arrogante em sua heráldica beleza, de um púrpura pálido, a flor-do-íris. Por mero acaso, o pequeno ramalhete violava todas as regras do bom gosto tradicional. Pela manhã, ao desjejum, ferira-me os olhos a vivida dissonância de  suas  cores.  Mas  tal  já  não  era  mais  minha  opinião.  Não  contemplava  mais  uma esquisita combinação de flores; via, agora, aquilo mesmo que Adão vira no dia de sua criação — o milagre do inteiro desabrochar da existência, em toda a sua nudez. 

— Isso é agradável?  — perguntou alguém. (Durante essa parte da experiência, todas  as  conversas  foram  gravadas,  e  foi-me  assim  possível  refrescar  a  memória  a respeito do que fora dito.) 

— Nem agradável, nem desagradável — respondi. — Apenas existe. 

Istigkeit — "existência" —, não era essa a palavra que Meister Eckhart gostava de  usar?  O  Existir  da  filosofia  platônica  —  com  a  diferença  que  Platão  parecia  ter cometido  o  enorme,  o  grotesco  erro  de  separar  Existir  de  tornar-se  e  de  identificá-lo com a abstração matemática — a Idéia. Ele, pobre mortal, talvez jamais tivesse visto um ramalhete de flores a brilhar com sua própria luz interior, quase que estremecendo sob a tensão da importância do papel que lhes fora confiado; jamais deveria ter-se apercebido de  que  essa  tão  grande  importância  da  rosa,  do  íris  e  do  cravo  residia,  tão-somente, naquilo que eles representavam — uma efemeridade que, não obstante, significava vida eterna,  um  perpétuo  perecer  que  era,  ao  mesmo  tempo,  puro  Existir;  um  punhado  de pormenores  diminutos  e  sem  par  no  qual,  por  algum  indizível  paradoxo,  embora axiomático, encontrar-se-ia a divina fonte de toda a existência. 

Continuei  a  observar  as  flores  e,  em  sua  luz  vivida,  eu  parecia  captar  o equivalente  qualitativo  da  respiração  —  mas  de  uma  respiração  sem  retornos  a  um ponto de partida, sem refluxos periódicos, mas antes em um fluxo, repetido, da beleza para  uma  beleza  mais  sublime,  de  um  significado  profundo  para  outro  ainda  maior. Palavras tais como Graça e Transfiguração vieram-me à mente, e isto, sem dúvida, era o que, entre outras coisas, queriam elas significar. Meus olhos se encaminhavam da rosa para  o  cravo,  e  daquela  incandescência  de  plumas  para  as  suaves  volutas  de  ametista animada, que era o íris. A Beatífica Visão, Sat Chit Ananda — Existência-Consciência- Beatitude —, pela primeira vez entendi, não em termos de palavras, não por insinuações rudimentares, vagamente, mas precisa e completamente, o que queriam significar essas sílabas prodigiosas. E lembrei-me, então, de uma passagem que lera em um dos ensaios de  Suzuki:  "Que  é  o  Dharma-Corpóreo  do  Buda?".  (O  Dharma-Corpóreo  do  Buda  é outro modo de se referir à Mente, à Peculiaridade, ao Vazio, à Divindade.) A pergunta foi feita, em um mosteiro zen, por ardente e perplexo noviço. E, com a vivaz insensatez de  um  dos  Irmãos  Marx,  respondeu-lhe  o  superior:  "A  sebe  ao  fundo  do  jardim".  "E poderia  eu  perguntar"  —  retrucou  timidamente  o  noviço  —  "qual  o  homem  que  concebeu  essa  verdade?" A  que Groucho,  dando-lhe uma  pancada  nas costas com seu bastão, responde: "Um leão de cabelos de ouro!". 

Quando  li  esse  diálogo,  achei-o  pouco  mais  ou  menos  um  amontoado  de insensatez.  Agora,  porém,  tudo  está  tão  claro  como  o  dia,  tão  evidente  quanto  o postulado  de  Euclides.  Não  há  a  menor  dúvida  de  que  o  Dharma-Corpóreo  do  Buda seja a sebe do fim do jardim. Ao mesmo tempo, e com igual certeza, ele é estas flores, ele  é  qualquer  coisa  que  desperte  a  atenção  de  meu  ego  (ou  melhor,  de  minha  bem-aventurada  despersonalização,  liberta  por  um  momento  de  meu  abraço  asfixiante). Assim  também  os  livros,  que  recobrem  as  ,  paredes  de  meu  escritório:  tais  como  as flores, eles também luziam, quando para eles olhei, com cores mais brilhantes, com uma importância  mais  profunda.  Livros  vermelhos  de  rubi;  livros  de  esmeralda;  livros  de ágata,  de  água-marinha,  de  topázio;  livros  de  lápis-lazúli  de  cor  tão  intensa,  tão intrinsecamente importantes que pareciam a ponto de sair das estantes para melhor atrair minha atenção. 

— Que me diz das relações espaciais? — perguntou o investigador enquanto eu olhava os livros. 

Era difícil responder. Na verdade, a perspectiva se tornara bastante estranha e as paredes  da  sala  já  não  mais  pareciam  encontrar-se  em  ângulos  retos.  Mas  não  eram esses os fatos realmente importantes. O que mais ressaltava era a constatação de que as relações  espaciais  tinham  perdido  muito  do  seu  valor  e  de  que  minha  mente  tomava contato com o mundo exterior em termos de outras dimensões que não as de espaço. Em situações  normais  o  olho  se  preocupa  com  problemas  tais  como  Onde?  —  A  que distância?  —  Como  se  situa  em  relação  a  tal  coisa?.  Durante  a  experiência  com  a mescalina,  as  perguntas  tácitas  a  que  a  visão  responde  são  de  outra  ordem.  Lugar  e distância deixam de ter muito interesse. A mente elabora a compreensão das coisas em termos  de  intensidade  de  existência,  profundidade  de  importância,  relações  dentro  de um determinado padrão. Eu olhava para os livros, mas não me preocupava, em absoluto, com suas posições no espaço. O que notava, o que se impunha por si mesmo a minha mente,  era  o  fato  de  que  todos  eles  brilhavam com uma  luz  viva  e  que,  em alguns,  o resplendor era mais intenso que em outros. Nesse instante, a posição e as três dimensões eram questões de somenos. Não, evidentemente, que a noção de espaço houvesse sido abolida. Quando me levantei e pus-me a andar, eu o fiz com toda a naturalidade, sem erros de apreciação sobre a posição dos objetos. O espaço ainda estava ali; mas havia perdido  sua  primazia.  A  mente  se  preocupava,  mais  do  que  tudo,  não  com medidas  e lugares, e sim com a existência e o significado. 

E, de par com essa indiferença pelo espaço, adquiri um descaso ainda maior pelo tempo. 

— Parece haver bastante — foi tudo o que pude dizer quando o meu inquiridor me pediu que dissesse qual a noção que tinha dessa dimensão. 

Bastante; mas pouco se me dava saber, exatamente, quanto. Poderia, está claro, olhar  para  meu  relógio;  mas  ele,  sabia-o  eu, estava em outro universo. Essa minha experiência tinha sido, e ainda era, de duração indefinida, também  podendo ser considerada um perpétuo presente, criado por um apocalipse em contínua transformação.

Dos livros, meu interlocutor desviou-me a atenção para o mobiliário. No centro da sala havia uma pequena mesa para máquina de escrever. Junto a ela, do lado oposto ao  meu,  estava  uma  cadeira  de  vime  e,  além  dela,  uma  escrivaninha.  As  três  peças formavam  um  intricado  desenho  de  horizontais,  verticais  e  oblíquas  —  desenho  tanto mais  interessante  por  não  estar  sendo  interpretado  em  termos  de  suas  relações  de espaço. Mesa, cadeira e escrivaninha constituíam uma composição que se assemelhava a  algo  por  Braque  ou  Juan  Gris:  uma  natureza-morta  nitidamente  relacionada  com  o mundo  objetivo,  mas  onde  não  havia  profundidade,  nada  de  realismo  fotográfico.  Eu examinava  minha  mobília,  não  como  o  utilitário,  que  tem  de  sentar-se  em  cadeiras, escrever  em  escrivaninhas  e  em  mesas;  não  como  o  operador  cinematográfico  ou  o investigador  científico,  mas  como  o  esteta  puro,  cuja  única  preocupação  se  cinge  às formas  e  suas  relações  dentro  do  campo  visual  ou  dos  limites  de  um  quadro.  Mas,  à medida  que  prosseguia  em  minha  investigação,  essa  análise  puramente  estética  de cubista  foi  sendo  substituída  pelo  que  poderei  apenas  definir  como  sendo  a  visão sacramentai da realidade: voltei ao estado em que me encontrava quando contemplava as flores — a um mundo onde tudo brilhava, animado pela Luz Interior, e era infinito em sua importância. Assim, os pés daquela cadeira — quão miraculosa a sua tubularidade,  quão  sobrenatural  seu  suave  polimento!  Consumi  vários  minutos  —  ou foram vários séculos? — não apenas admirando aqueles pés de bambu, mas em verdade sendo-os, ou melhor, sentindo-me neles; ou, empregando linguagem talvez mais precisa (pois "eu" não estava em jogo, do mesmo modo como, até certo ponto, "eles" tampouco o estavam), sendo minha Despersonalização na Desindividualização que era a cadeira. 

Refletindo sobre minha experiência, vejo-me levado a concordar com o eminente filósofo de Cambridge, dr. C. D. Broad, "que será bom considerarmos, muito mais seriamente do que até então temos feito, o tipo de teoria estabelecida por Bergson, com relação à memória e ao senso de percepção. Segundo ela, a função do cérebro e do sistema nervoso é, principalmente, eliminativa e não produtiva. Cada um de nós é capaz de lembrar-se, a qualquer momento, de tudo o que já ocorreu conosco, bem como de se aperceber de tudo o que está acontecendo em qualquer parte do universo. A função do cérebro e do sistema nervoso é proteger-nos, impedindo que sejamos esmagados e confundidos por essa massa de conhecimentos, na sua maioria inúteis e  sem importância,  eliminando  muita  coisa  que,  de  outro  modo,  deveríamos  perceber  ou recordar   constantemente,   e   deixando   passar   apenas   aquelas   poucas   sensações selecionadas que, provavelmente, terão utilidade na prática". 

De  acordo  com tal teoria, cada um de nós possui, em potencial, a Onisciência. Mas,  visto  que  somos  animais,  o  que  mais  nos  preocupa  é  viver  a  todo  o  custo.  Para tornar possível a sobrevivência biológica, a torrente da Onisciência tem de passar pelo estrangulamento  da  válvula  redutora  que  são  nosso  cérebro  e  sistema  nervoso.  O  que consegue  coar-se  através  desse  crivo  é  um  minguado  fio  de  conhecimento  que  nos auxilia a conservar a vida na superfície deste singular planeta. Para formular e exprimir o conteúdo dessa sabedoria limitada, o homem inventou, e aperfeiçoa incessantemente, esses  sistemas  de  símbolos  com  suas  filosofias  implícitas  a  que  chamamos  idiomas. Cada um de nós é, a um só tempo, beneficiário e vítima da tradição lingüística dentro da qual  nasceu  —  beneficiário,  porque  a  língua  nos  permite  o  acesso  aos  conhecimentos acumulados oriundos da experiência de outras pessoas; vítimas, porque isso nos leva a crer que esse saber limitado é a única sabedoria que está a nosso alcance; e isso subverte nosso senso da realidade, fazendo com que encaremos essa noção como a expressão da verdade  e  nossas  palavras  como  fatos  reais.  Aquilo  que,  na  terminologia  religiosa, recebe o nome de "este mundo" é apenas o universo do saber reduzido, expresso e como que petrificado pela limitação dos idiomas. Os vários "outros mundos" com os quais os seres humanos entram esporadicamente em contato não passam, na verdade, de outros tantos elementos componentes da ampla sabedoria inerente à Onisciência. A maioria das pessoas,  durante  a  maior  parte  do  tempo,  só  toma  conhecimento  daquilo  que  passa através  da  válvula  de  redução  e  que  é  considerado  genuinamente  real  pelo  idioma  de cada  um.  No  entanto,  certas  pessoas  parecem  ter  nascido  com  uma  espécie  de  desvio que   invalida   essa   válvula   redutora.   Em  outras,   o   desvio   pode   surgir   em  caráter temporário,   seja   espontaneamente,   seja   como   resultado   de   "exercícios   espirituais" voluntários,  do  hipnotismo  ou  da  ingestão  de  drogas.  Mas  o  fluxo  de  sensações  que percorre  esse  desvio,  seja  ele  permanente  ou  temporário,  não  é  suficiente  para  que alguém  se  aperceba  "de  tudo  o  que  esteja  ocorrendo  em  qualquer  lugar  do  universo" (uma vez que o desvio não destrói a válvula de redução, que ainda impede que se escoe por ela toda a torrente da Onisciência), embora possibilite a passagem de algo mais — e sobretudo diferente — do que aquelas sensações utilitárias, cuidadosamente selecionadas, que a estreiteza de nossas mentes considera uma imagem completa (ou, no mínimo, suficiente) da realidade. 

O  cérebro  é  dotado  de  um  certo  número  de  sistemas  enzimáticos  que  servem para coordenar seu funcionamento. Algumas dessas enzimas visam a regular o fluxo de glicose  destinado  a  alimentar  as  células  cerebrais.  A  mescalina,  inibindo  a  produção dessas enzimas, diminui a quantidade de glicose à disposição de um órgão que tem uma fome constante de açúcar. E o que acontece quando o metabolismo do açúcar no cérebro é reduzido pela mescalina? O número de casos observados é diminuto e, pois, ainda não nos é possível apresentar uma resposta conclusiva. Mas o que tem acontecido à maioria daqueles que tomaram o alcalóide, sob controle, pode ser assim resumido: 

1. A capacidade de lembrar-se e de raciocinar corretamente não sofre redução perceptível. (Ouvindo os registros de minha conversação, quando sob o efeito da droga, nada me leva a concluir que estivesse mais estulto do que sou sob condições normais.) 

2. As impressões visuais tornam-se grandemente intensificadas e o olho recupera  um  pouco  da  inocente  percepção  da  infância,  quando  o  senso  não  se  achava direta e automaticamente subordinado à concepção. O interesse pelo espaço diminui e a importância do tempo cai quase a zero. 

3. Embora o intelecto nada sofra e a percepção seja grandemente aumentada, a vontade  experimenta  uma  grande  transformação  para  pior.  O  indivíduo  que  ingere mescalina não vê razão para fazer seja o que for, e considera   profundamente injustificável a maioria das causas que, em circunstâncias normais, seriam suficientes para motivá-lo e fazê-lo agir. Elas não o preocuparão, pela simples razão de ter ele melhores coisas em que pensar. 

4. Essas melhores coisas podem ser experimentadas (tal qual se deu comigo) lá fora,  aqui  dentro  ou  em  ambos  os  mundos  —  o  interior  e  o  exterior,  simultânea  ou sucessivamente. Que elas são melhores, isso parece axiomático a quem quer que tome mescalina, desde que possua um fígado são e uma mente isenta de angústias. 

Esses efeitos da mescalina constituem o tipo de reação que se poderia esperar de uma  droga  com  o  poder  de  reduzir  a  eficiência  da  válvula  redutora  que  é  o  cérebro. Quando esse órgão é atingido pela carência de açúcar, o subnutrido ego se enfraquece, já não mais se pode permitir empreender suas tarefas rotineiras e perde todo o interesse por essas relações de tempo e espaço que possuem tão grande valor para um organismo preocupado com a vida neste mundo. Assim que a Onisciência vence a barreira daquela válvula,   começam   a   ocorrer   todas   as   espécies   de   fatos   desprovidos   de   utilidade biológica. Em certos casos, poderão dar-se percepções extra-sensoriais. Outras pessoas podem  descobrir  um  mundo  de  visionária  beleza.  Ainda  outras  têm  a  revelação  da  glória, do infinito valor e da significação da existência primeva, do fato objetivo e não conceituado.  No  estágio  final  da  despersonalização  há  uma  "obscura  noção"  de  que Tudo está em todas as coisas — de que Tudo é, em verdade, cada coisa. Isso é, no meu entender, o máximo a que uma mente finita pode alcançar em "aperceber-se de tudo o que está acontecendo em qualquer parte do universo". 

A esse respeito, quão significativa é a enorme ampliação da percepção das cores sob o efeito da mescalina! Para certos animais, a capacidade de distinguir determinados matizes  possui  grande  importância  biológica.  Mas,  além  dos  limites  de  seu  espectro utilitário,  a  maior  parte  dos  seres  vivos  apresenta  completa  insensibilidade  às  cores. Assim  as  abelhas,  que  consomem  quase  todo  o  seu  tempo  "desflorando  as  frescas virgens  da  primavera",  só  conseguem  distinguir  umas  poucas  cores,  conforme  Von Frisch o demonstrou. A grande percepção às cores de que o olho humano é capaz é um luxo   biológico   —   inestimavelmente  precioso   para   nós,   como   seres  intelectuais   e espirituais,  mas  desnecessário  à  nossa  sobrevivência  como  animais.  A  julgar  pelos adjetivos   que   Homero   lhes   pôs   nas   bocas,   os   heróis   da   Guerra   de   Tróia   mal ultrapassavam as abelhas em sua capacidade para distinguir  cores. Ao menos sob esse aspecto, o progresso da humanidade tem sido prodigioso. 

A  mescalina  aviva  consideravelmente  a  percepção  de  todas  as  cores  e  torna  o paciente apto a distinguir as mais sutis diferenças de matiz que, sob condições normais, ser-lhe-iam  totalmente  imperceptíveis.  Poder-se-ia  dizer  que,  para  a  Onisciência,  os chamados  caracteres  secundários  das  coisas  seriam  os  principais.  Contrariamente  a Locke,   ela   consideraria   as   cores   dos   objetos   como   mais   importantes   e,   pois, merecedoras de maior atenção que suas massas, posições e dimensões. Tal como ocorre com os consumidores de mescalina, muitos místicos percebem cores de uma intensidade preternatural, não só em seu mundo interior como também no das coisas objetivas que os  rodeiam.  Fato  idêntico  ocorre  com  os  indivíduos  suscetíveis  a  ou  que  sofrem  de psicoses. Há certos médiuns para os quais as revelações que se manifestam, por breves períodos, nos indivíduos que ingerem mescalina são uma experiência diária, de todas as horas, por longos espaços de tempo. 

Podemos agora, após esta longa mas indispensável excursão ao reino da teoria, voltar  àquela  maravilhosa  realidade  —  quatro  pés  de  cadeira,  de  bambu,  no  meio  de uma sala. Quais narcisos silvestres de Wordsworth, eles me proporcionaram toda sorte de  riquezas  —  a  inestimável  dádiva  de  uma  concepção  nova  e  direta  da  verdadeira Natureza   das   Coisas,   bem   como   um   tesouro   mais   modesto,   sob   a   forma   de compreensão, particularmente no campo das artes.

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l.   A   esse   respeito,   veja-se:   l.   HOFFER,   Abram;   OSMOND,   Humphry; SMYTHIES,  John.  "Schizophrenia:  a  new  approach".  Journal  of  Mental  Science, 100(418),   jan.   1954.   2.   OSMOND,   Humphry.   "On   being   mad".   Saskatchewan Psychiatric  Services  Journal,  1(2),  set.  1952.  3.  SMYTHIES,  John.  "Schizophrenia:  a new  approach".  Journal of  Mental  Science,  98, abr.  1952.  4.  SMYTHIES, John. "The mescalin phe-nomena". The British Journal for the Philosophy of Science, 3, fev. 1953. Numerosos outros artigos sobre bioquímica, farmacologia, psicologia e neurofisiologia da esquizofrenia e dos efeitos da mescalina estão em preparação. 

2. Pseudônimo  literário  de  George  William  Russell  (1867-1935),  poeta  e  pintor irlandês.

2. A Maior Drugstore do Mundo



Uma  rosa  é  uma  rosa,  e  nada  mais  que  uma  rosa;  mas  esses  quatro  pés  de cadeira,  além  de  pés  de  cadeira  eram  São  Miguel  e  todos  os  anjos.  Quatro  ou  cinco horas após o início da experiência, quando começavam a cessar os efeitos da deficiência de  açúcar no  meu  cérebro,  levaram-me para  um pequeno passeio pela cidade,  no qual estava  incluída  uma  visita,  ao  cair  da  tarde,  ao  que  era  modestamente  considerado  o maior  drugstore  do  mundo.  Nos  fundos  do  estabelecimento,  entre  brinquedos,  cartões de felicitações e revistas de histórias em quadrinhos, havia — por estranho que pudesse parecer — toda uma prateleira de livros de arte. Apanhei o primeiro volume ao alcance da mão. Continha obras de Van Gogh, e o quadro que surgiu quando o livro se abriu foi A cadeira — aquele assombroso retrato de uma realidade metafísica que o pintor louco viu, com uma espécie de reverente terror, e buscou reproduzir em sua tela. Mas essa era uma tarefa em que até o poder do gênio revelou-se totalmente impotente. Estava claro que  a  cadeira  vista  por  Van  Gogh  era,  em essência,  a mesma que  eu vira.  Mas, ainda  que incomparavelmente mais real do que aquela que a percepção comum deixa entrever, mesmo assim a cadeira do quadro continuava a ser nada mais que um símbolo do fato, embora  extraordinariamente  expressivo.  O  fato  fora  uma  manifesta  Peculiaridade;  isto era apenas um emblema. Esses emblemas são fontes de conhecimentos seguros sobre a 
Natureza  das  coisas,  e  tais  conhecimentos  podem servir  para  preparar  a  mente  que  os aceita   para   ilações   imediatas   sobre   essa   mesma   natureza.   Mas   isso   é   tudo.   Por expressivos   que   sejam,   os   símbolos   jamais   se   podem   converter   nas   coisas   que representam. 

Seria  interessante,  sob  esse  aspecto,  realizar  um  estudo  das  obras  de  arte  que prenderam  a  atenção  dos  grandes  apreciadores  da  Peculiaridade.  Que  tipo  de  pintura teria  Eckhart  admirado?  Quais  quadros  e  esculturas  contribuíram  para  a  experiência religiosa  de  San  Juan  de  Ia  Cruz,  de  Hakuin,  de  Huineng  ou  de  William  Law?  Essas indagações estão além de minhas possibilidades de resposta, mas tenho a convicção de que a maioria dos grandes amantes da Peculiaridade pouco se preocupou com a arte — alguns,  recusando-se  pura  e  simplesmente  a  levá-la  em  conta;  outros,  contentando-se com trabalhos que olhos de crítico classificariam como obras de segunda, ou mesmo de décima classe. (Para uma pessoa, cuja mente transfigurada e transfiguradora é capaz de descobrir o Tudo em cada isto, a classificação de uma pintura como sendo de primeira ou de décima categoria, ainda tratando-se de pintura religiosa, será coisa que lhe há de provocar a mais soberana indiferença.) A arte, creio eu, interessa apenas a principiantes, ou   então   a   essas   obstinadas   mediocridades   que   decidiram   satisfazer-se   com   a contrafação da Peculiaridade, com símbolos em lugar daquilo que estes significam, com o cardápio elegantemente apresentado em vez da própria refeição. 

Devolvi Van Gogh à prateleira e apanhei o volume seguinte. Era um livro sobre Botticelli.  Folheei-o.  O  nascimento  de  Vênus,  que  nunca  figurou  entre  minhas  telas prediletas;  Vênus  e  Marte,  aquela  beleza  tão  apaixonadamente  denunciada  pelo  pobre Ruskin, no ardor de sua enfadonha tragédia sexual; maravilhosamente rica e intricada, seguiu-se a Calúnia de Apeles. Por fim, deparei com um quadro menos conhecido e não muito  bom  —  Judite.  Minha  atenção  foi  despertada  e  eu  me  quedei  embevecido,  não pela pálida e neurótica heroína ou por sua serva; não ante a hirsuta cabeça da vítima ou pela paisagem primaveril que formava o fundo do quadro, mas ante a purpúrea seda do corpete pregueado e das longas saias que o vento ondulava. 

Aquilo era algo que eu já havia visto, e naquela mesma manhã, entre as flores e os móveis quando, por acaso, olhei para baixo e minha vista se extasiara ao fixar minhas próprias  pernas  cruzadas.  Essas  dobras  de  minhas  calças  —  que  labirinto  de  infinita complexidade  simbólica!  E  a  textura  da  flanela  cinzenta  —  quão  rica,  profunda  e misteriosamente  suntuosa  era  ela!  E  lá  estava  isso  tudo,  de  novo,  no  quadro  de Botticelli! 

Os seres humanos civilizados usam roupas e, pois, não pode haver quadro, seja ele retrato, narrativa mitológica ou histórica, onde não haja representação de dobras de tecido. Mas, embora podendo caber-lhe o mérito da origem, jamais poderemos atribuir ao hábito do vestuário o exuberante tratamento que a roupagem vem merecendo como tema  principal  em  todas  as  artes  plásticas.  É  evidente  que  os  artistas  sempre  lhe conferiram  um  valor  intrínseco  (ou,  quiçá  mais  propriamente,  sempre  se  aperceberam do valor que ela representava para eles). Quem pinta ou esculpe roupagens está pintando ou esculpindo formas que, em última instância, não possuem simbolismo intrínseco — formas  não  condicionadas  que  os  artistas,  mesmo  os  mais  fervorosos  adeptos  do naturalismo, deixam entregues a si mesmas. No comum das Madonas ou dos Apóstolos,  os  elementos  estritamente  humanos,  inteiramente  simbólicos,  constituem  cerca  de  dez por cento da obra. O restante é formado por um sem-número de variações coloridas do inexaurível tema de linhos e lãs amarfanhados. E esses nove décimos não-simbólicos de uma  Madona  ou  um  Apóstolo  podem  ser  tão  importantes,  qualitativamente,  quanto  o são em quantidade. Não raro, são eles que dão o tom do conjunto da obra de arte, que estabelecem a nota mestra dentro da qual o tema está sendo executado, que exprimem a disposição de espírito, o temperamento, a atitude do artista diante da vida. A serenidade estóica  se  revela  por  superfícies  suaves,  pelas  amplas  dobras  das  roupagens  de  Piero. Esmagado  entre  realidade  e  vontade,  entre  cinismo  e  idealismo,  Bernini  ajusta  a verossimilhança quase caricatural das faces que modela com vastas abstrações de pano que são a corporificação, em pedra ou bronze, dos eternos lugares-comuns da retórica —  o  heroísmo,  a  santidade,  a  sublimidade  a  que  a  humanidade  perpetuamente  aspira, quase sempre em vão. E há ainda as saias e os mantos perturbadoramente viscerais de El Greco;  as  dobras  vivas,  retorcidas  quais  chamas,  em  que  Cosimo  Tura  envolvia  seus personagens.  No  primeiro,  a  espiritualidade  tradicional  se  dilui  em  anônimo  anelo fisiológico;   debate-se,   no   segundo,   um   sentimento   torturado   ante   a   reserva   e   a hostilidade características deste mundo. Examinemos, agora, as obras de Watteau; seus homens  e  suas  mulheres  empenham-se  em  lutas,  aprontam-se  para  bailes,  embarcam, em  relvas  de  veludo  e  sob  vetustas  árvores,  para  a  Citera  dos  sonhos  de  todos  os amantes;  a  imensa  melancolia  que  os  envolve,  bem como  a  pungente  sensibilidade  de seu   criador,   encontram   expressão,   não   nas   ações,   atitudes   ou   semblantes   dos personagens, mas no relevo e na textura de suas saias de tafetá, de seus mantos e gibões de  cetim.  Não  há  nelas  nem  uma  polegada  sequer  de  superfícies  suaves;  tudo  é  um emaranhado  de  sedas  em  incontáveis  e  minúsculas  pregas  e  rugas  em  incessante modulação — reflexo de uma incerteza interior reproduzida com a perfeita segurança de uma mão de mestre — de tom para tom, de uma cor indefinível para outra. Na vida, "o homem põe  e  Deus  dispõe".  Nas  artes  plásticas,  quem propõe  é  o  assunto;  mas  quem dispõe é, em última instância, o temperamento do artista, e em primeira — ao menos em retratos, pintura  histórica  e descritiva —  as  roupagens e tapeçarias criadas pelo pincel ou pelo buril. Esses dois elementos podem fazer com que uma festa galante nos faça vir lágrimas  aos  olhos;  que  uma  crucificação  tenha  uma  tal  serenidade  que  nos  alegre  a alma; que uma cena de suplício seja quase que intoleravelmente lúbrica; que o retrato de um  prodígio  de  insensatez  feminina  (penso,  neste  instante,  no  incomparável  Mme. Moitessier, de Ingres) possa exprimir a mais austera, a mais inflexível intelectualidade. 

Mas isto não é tudo. As roupagens, percebo-o agora, são muito mais que simples artifícios  para  a  introdução  de  formas  desprovidas  de  simbolismo  nas  pinturas  e esculturas naturalistas. O que nós outros só vemos sob a influência da mescalina pode, a qualquer   tempo,   ser   visto   pelo   artista,   graças   a   sua   constituição   congênita.   Sua percepção  não  está  limitada  ao  que  é  biológica  ou  socialmente  útil.  Algo  do  saber inerente à Onisciência flui através da válvula redutora do cérebro e do ego e atinge sua consciência.  Isso  lhe  dá  um  conhecimento  do  valor  intrínseco  de  tudo  o  que  existe. Tanto  para  o  artista  como  para  quem  ingere  mescalina,  o  tecido  é  um  hieróglifo  vivo que  representa,  de  certo  modo  singularmente  expressivo,  os  insondáveis  mistérios  da existência.   Ainda   mais   que   a   cadeira,   embora   talvez   menos   que   aquelas   flores absolutamente  preternaturais,  as  dobras  de  minhas  calças  de  flanela  cinzenta  estavam impregnadas  de  existência.  Não  sei  dizer  a  que  deviam elas  sua  privilegiada  situação. Seria   porque   as   formas  assumidas   pelas  dobras   dos  tecidos  são  tão  esquisitas  e dramáticas que atraem nosso olhar e, assim, produzem esse milagre de pura existência sobre a atenção? Quem poderá dize-lo? Mas importa menos a razão para a experiência do  que  esta  em  si  mesma.  De  olhos  fitos  nas  saias  de  Judite,  no  maior  drugstore  do  mundo, fiquei sabendo que Botticelli — e não somente ele como também muitos outros — havia contemplado as roupagens e tapeçarias com os mesmos olhos transfigurados e transfiguradores  que  eu  possuía  naquela  manhã.  Eles  haviam  visto  o   Istigkeit,  a Totalidade  e  o  Infinito  das  dobras  de  um  tecido  e  haviam empregado  ao  máximo  seu talento  para  representá-las  na  tela  ou  no  mármore.  É  evidente  que  não  poderiam,  de forma alguma, triunfar, pois o esplendor e a maravilha da existência pura pertencem a uma ordem superior ao poder de expressão, mesmo da arte mais sublime. Mas, nas saias de Judite, pude ver claramente aquilo que, fosse eu um pintor de gênio, teria feito com minhas  velhas  calças  de  flanela  cinzenta.  Não  seria  muito  —  sabe-o  o  céu  —  em comparação com a realidade, mas bastaria para deliciar gerações e gerações de amantes da arte, para fazê-los compreender, um pouco que fosse, o verdadeiro valor daquilo que, em  nossa  patética  imbecilidade,  chamamos  simples  coisas  e  desprezamos  em troca  da televisão. 

— É assim que precisamos ver — fiquei dizendo enquanto olhava para minhas calças ou relanceava os olhos pelos livros recamados de jóias nas estantes e pelos pés de minha cadeira infinitamente mais que vangoghiana. —  É assim que precisamos ver as coisas  —  tal  como  elas  são!  —  E  ainda  havia  reparos  a  fazer.  Pois  se  alguém  visse sempre as coisas sob esse aspecto, jamais desejaria fazer algo diferente. Haveria apenas de olhar, de ser tão-somente a sublime Desindividualização da flor, do livro, da cadeira, das calças. Isso bastaria. Mas, nesse caso, e as outras pessoas? E as relações humanas? No  registro  da  conversação  daquela  manhã,  encontrei,  a  cada  passo,  a  repetição  da pergunta:  "Que  me  diz  das  relações  humanas?".  Como  poderia  alguém  conciliar  essa infinita  bênção  de  ver  as  coisas,  tal  como  elas  devem  ser  vistas,  com  os  deveres temporais de agir como se deve agir e sentir como é mister que se sinta? — É preciso que   sejamos  capazes  —   respondi   eu  —   de  considerar  estas  calças  infinitamente importantes, e os seres humanos ainda  mais  infinitamente  importantes.  —  É  preciso!  mas  na  prática  isso  me pareceu  impossível.  Essa  participação  no  manifesto  esplendor  das  coisas  não  deixava lugar, por assim dizer, para as preocupações comuns, necessárias, com a vida humana e, acima  de  tudo,  para  as  preocupações  com  os  indivíduos.  Pois  as  pessoas  possuem individualidade e (ao menos sob um aspecto) naquele momento eu não era eu mesmo, a um só tempo percebendo e sendo a Desindividualização das coisas ao meu redor. Para essa  Desindividualização  recém-nascida,  o  comportamento,  a  aparência,  o  próprio raciocínio  do  indivíduo  que  ela  momentaneamente  deixara  de  ser,  assim como  os  dos outros indivíduos — seus companheiros de até então —, se não lhe eram desagradáveis (pois  a  aversão  não  figurava  entre  as  categorias  em termos  das  quais  eu  raciocinava), estavam, no entanto, bastante longe de suas cogitações. Compelido pelo pesquisador a analisar  e  relatar  o  que  estava  fazendo  (e  como  desejaria  ser  deixado  a  sós  com  a Eternidade em uma flor, com o Infinito em quatro pés de cadeira e com o Absoluto nas pregas de urnas calças de flanela!), verifiquei que estava, deliberadamente, evitando os olhares   daqueles   que   me   faziam   companhia   naquela   sala;   que,   intencionalmente, procurava não tomar conhecimento de sua presença. E, no entanto, um deles era minha esposa, e o outro, um homem que eu considerava e de quem muito gostava. Mas ambos pertenciam  a  um  mundo  do  qual,  naquela  ocasião,  a  mescalina  me  havia  tirado  —  o mundo   dos   personalismos,   da   dimensão   tempo,   dos   julgamentos   morais   e   das considerações utilitárias; o mundo — e era esse aspecto da vida humana que, acima de tudo,   mais   desejava   esquecer   —   o   mundo   da   auto-afirmação,   da   convicção,   da supervalorização da palavra e das noções idolatra-mente cultuadas.

Nesse  ponto  da  experiência  passaram-me  às  mãos  uma  grande  produção  em  cores  do  conhecidíssimo  auto-retrato  de  Cézanne,  o  busto  de  um  homem  cuja  cabeça estava  coberta  por  um  grande  chapéu  de  palha;  rosado,  de  lábios  corados,  ostentando opulentas suíças negras e dono de olhos escuros e inamistosos. É uma obra excelente; mas  não  era  como  obra  de  arte  que  eu  a  encarava,  naquele  instante.  Pois  a  cabeça imediatamente  adquiriu  relevo  e  ganhou  vida  sob  a  forma  de  um  homenzinho  que lembrava  um duende,  olhando  através  de  uma  janela  que  era  a página diante de  mim. Comecei a rir. E, quando me perguntaram a razão, disse, e continuei repetindo: 

—    Que  pretensão!  Quem  pensa  ele  que  é?  —  Essa  exclamação,  eu  não  a endereçava  a  Cézanne,  em  particular,  mas  a  toda  a  espécie  humana.  Quem  pensavam eles todos que eram? 

—   Isso   me   faz   lembrar   Arnold   Bennett   nos   Dolomitas   —   disse   eu, repentinamente,  recordando  uma  cena  que  um  instantâneo  feliz  imortalizara,  cerca  de quatro ou cinco anos antes de sua morte, quando tateava através de uma trilha gelada em Cortina  d'Ampezzo.  Ao  seu  redor,  a  neve  virgem;  ao  fundo,  a  atração  irresistível  dos rubros despenhadeiros. E lá estava o caro, afável e infeliz Arnold Bennett, exagerando, conscientemente, o papel de seu personagem favorito, corporificando-o ele mesmo. Lá vinha  ele,  vagarosamente,  sob  o  brilhante  sol  dos  Apeninos,  os  polegares  metidos  na cava do colete amarelo que se avolumava, um pouco mais abaixo, na curva graciosa de uma janela estilo Regência — a cabeça jogada para trás, como que tentando vencer uma crise  de  gagueira,  sob  a  cerúlea  abóbada  celeste.  Já  não  me  lembro  de  quais  tenham realmente  sido  suas  palavras;  mas  seu  porte,  seu  ar  e  sua  atitude  pareciam proclamar: "Sou tão bom quanto essas montanhas do inferno!". E, de fato, sob certos aspectos, ele lhes  era  infinitamente  superior;  mas  —  e  ele  bem  o  sabia  —  não  o  era  pela  forma segundo a qual seu personagem predileto, no reino da ficção, gostava de ser. 

Feliz ou infelizmente (dependendo do significado que se der à palavra) todos nós exageramos ao viver o papel de nosso personagem favorito. E o fato quase infinitamente improvável  de  se  tratar  de  Cézanne,  de pouco  lhe valia. Pois o  renomado  pintor,  com seu  pequeno  conduto  para  a  Onisciência  a  burlar  a  ação  da  válvula  redutora  formada pelo cérebro e o filtro do ego, era também, e tão-somente, um duende de grandes suíças e olhar inamistoso. 

Para descansar, voltei às pregas de minhas calças. 

—   E assim que precisamos ver as coisas — tornei a repetir. E bem que poderia ter acrescentado: "Isto é o tipo de coisa que precisa ser vista". Coisas sem pretensões, satisfeitas  com  serem  apenas  elas  mesmas,  conformadas  com  suas  peculiaridades,  não agindo   de   per   si,   não   tentando,   loucamente,   isolar-se   do   Dharma-Corpóreo,   em diabólico desafio à graça de Deus. 

— O que mais se aproximaria disso — disse eu — seria um Vermeer. 

Sim,  um Vermeer.  Pois  esse  misterioso  artista  foi  triplamente  bem aquinhoado — com a visão que identifica o Dharma-Corpóreo com a sebe ao fundo do jardim; com o  talento  para  reproduzir,  com  a  máxima  fidelidade,  essa  visão,  dentro  das  limitações impostas pela capacidade humana; com a prudência para se ater, em suas pinturas, aos aspectos  da  realidade  mais  suscetíveis  de  serem  reproduzidos.  Pois,  embora  Vermeer representasse  seres humanos, sempre foi um pintor  de naturezas-mortas. Cézanne, que dizia a seus modelos femininos que se esforçassem por parecer-se com maçãs, buscava pintar  seus  retratos  dentro  do  mesmo  espírito.  Mas  suas  raparigas  com  ar-de-maçã associam-se  mais  às  idéias  de  Platão  que  ao  Dharma-Corpóreo  na  sebe.  Elas  são  a Eternidade  e  o  Infinito,  não  em  areia  ou  por  flores,  mas  pelas  abstrações  de  alguma espécie  de  alta  geometria.  Vermeer  jamais  pediu  a  seus  modelos  que  buscassem parecer-se com maçãs. Ao contrário, insistia em que fossem o mais femininas possível mas  sempre  abstendo-se  de  se  comportarem  com  infantilidade.  Poderiam  sentar-se  ou ficar de pé, mas não deveriam apresentar-se com risos zombeteiros ou com arrogância, jamais  deveriam rezar  ou  suspirar  por  amores  ausentes,  tagarelar,  olhar  com inveja os filhos  de  outras  mulheres,  namorar,  amar,  odiar  ou  trabalhar.  Se  fizessem  quaisquer dessas coisas iriam, indubitavelmente, mostrar-se mais intensamente elas mesmas; mas deixariam,    por    essa    mesma    razão,    de    apresentar    sua    sublime    e    essencial Despersonalização.  É  de  Blake  a  opinião  de  que  as  portas  da  percepção  de  Vermeer estavam apenas parcialmente limpas. Um único painel atingira uma transparência quase perfeita; o resto da porta continuava enlameado. A Despersonalização essencial pode ser perfeitamente percebida em coisas e em criaturas vivas, no divisor entre o bem e o mal. No  homem,  só  podemos  vislumbrá-la  quando  ele  está  em  repouso,  com  a  mente desanuviada, o corpo estático. Nessas circunstâncias, Vermeer pôde ver a Peculiaridade em toda a sua celestial beleza — pôde vê-la e, até certo ponto, representá-la em sutil e suntuosa   natureza-morta.   Vermeer   é,   indubitavelmente,   o   maior   pintor   de   seres humanos  no  estilo  natureza-morta.  Mas  houve  também  outros  contemporâneos  de Vermeer na França, tais como os irmãos Lê Nain. Eles pretendiam, creio eu, dedicar-se à pintura descritiva; mas, o que em verdade produziram, foi uma série de retratos, tipo natureza-morta, nos quais sua aguda percepção do infinito valor de todas as coisas está presente, não como nos de Vermeer, por um sutil enriquecimento das cores e texturas, mas  por  uma  intensificação  das  luzes,  uma  obsessiva  distinção  das  formas,  dentro  de uma tonalidade austera e quase que monocromática. De nossos dias é Vuillard, o pintor inexcedível, com suas esplêndidas e inesquecíveis pinturas do Dharma-Corpóreo sob a forma de um quarto de dormir burguês; do Absoluto consumindo-se em chamas no seio da família de um comerciante à hora do chá, em um jardim suburbano. 

Ce qui fait que 1'ancien handagiste reme 
Lê comptoir dont lê faste alléchait lês passants 
C'est son jardin d'Auteuil, ou veufs de tout encens, 
Lês Zinnias ont l'air d'être 
en tôle vemie* 

*[O que  faz com que o  antigo lojista despreze/  O  faustoso  balcão que atraía os 
fregueses/ É seu jardim de Auteuil onde, à lisonja imunes,/As zínias lembram flores de 
lata envernizada.] 

Para Laurent Taillade, o espetáculo era simplesmente obsceno. Mas, se o antigo comerciante   de   material   ortopédico   se   houvesse   sentado   suficientemente   imóvel, Vuillard  teria  visto  nele,  tão-somente,  o  Dharma-Corpóreo;  teria  pintado,  entre  as zínias, o tanque dos peixinhos dourados, a torre mourisca e as lanternas chinesas da vila — um recanto do Éden ao romper do outono. 

E,  entretanto,  minha  pergunta  continuava  sem  resposta.  Como  conciliar  essa percepção aguçada com uma justa preocupação pelas relações humanas, com os deveres e  as  tarefas  inadiáveis,  para  não  mencionar  a  caridade  e  a  piedade  atuantes?  A  velha disputa  entre  ativos  e  contemplativos  estava  sendo  renovada  —  e  renovada,  creio  eu, com  uma  violência  sem  precedentes.  Pois,  até  aquela  manhã,  eu  só  conhecera  a contemplação  sob  suas  formas  mais  humildes  e  encontradiças  —  a  divagação  do pensamento;  a  arrebatada  abstração  na  poesia,  na  pintura  ou  na  música;  a  paciente espera pela inspiração, sem a qual mesmo o mais prosaico escritor não pode pretender realizar  coisa  alguma;  como  vislumbres  acidentais  da  natureza  "de  algo  muito  mais profundamente interligado", no dizer de Wordsworth; como o silêncio sistemático que leva,   por   vezes,   à   noção   de   um   "obscuro   saber".   Mas,   desta   feita,   conheci   a  contemplação em sua pujança. Em sua pujança, sim, mas não em toda a sua plenitude. Pois,  quando  esta  é  atingida,  a  estrada  que  leva  a  Maria  inclui  a  de  Marta[3] e  eleva  a contemplação, por assim dizer, a seu mais alto poder. A mescalina nos abre o acesso a Maria, mas fecha a porta que leva a Marta. Ela nos permite chegar à contemplação, mas a uma contemplação que é incompatível com a ação e até mesmo com a vontade de agir, com a própria idéia de ação. Nos intervalos entre suas revelações, quem toma mescalina é capaz de sentir que, embora de certo modo tudo tenha a sublimidade que devera ter, por  outro  lado  há  nisso  qualquer  coisa  de  errado.  Seu  problema  é,  essencialmente,  o mesmo  com que  se  defronta  o  eremita,  o  arfoat[4] e,  em outro  plano,  o  paisagista  e  o pintor de retratos inanimados. A mescalina jamais poderá resolver tal problema; servirá apenas   para   situá-lo,   em   termos   obscuros,   para   aqueles   aos   quais   ele   jamais   se apresentou.  Sua  solução  plena  e  definitiva  só  poderá  ser  encontrada  por  quem  esteja preparado para  reforçar  a verdadeira Weltanschauung[5] por meio do comportamento adequado  e  de  uma  vigilância  constante,  natural  e  apropriada.  Ao  eremita  se  opõe  o contemplativo-ativo, o santo, o homem que, na frase de Eckhart, está pronto a descer do sétimo céu para levar de beber a seu irmão doente. Ao arhat, refugiando-se do mundo exterior  em um  Nirvana  inteiramente  transcendental,  opõe-se  o  Bodhisattva[7],  para quem a Peculiaridade e o mundo das contingências são uma mesma coisa, e para cuja piedade  sem  limites,  a  cada  uma  dessas  contingências  correspondem  outras  tantas portunidades, não só para meditações transfi-guradoras, como também para praticar a caridade  mais  objetiva.  E,  no  universo  da  arte,  a  Vermeer  e  aos  outros  pintores  de retratos  inanimados,  aos  mestres  do  paisagismo  chinês  e  japonês,  a  Constable  e  a Turner,  a  Sisley,  Seurat  e  Cézanne,  opõe-se  a  arte  integral  de  Rembrandt.  Esses  são nomes célebres, inacessíveis eminências. Pelo que me toca, nessa memorável jornada de maio pude tão-somente ser grato a uma experiência que me revelou, mais claramente do que eu jamais pudera discernir, a verdadeira natureza do desafio e o cunho inteiramente emancipador da resposta. 

Seja-me  permitido  acrescentar,  antes  de  abandonar  este  assunto,  que  não  há forma de contemplação, mesmo a mais passiva, que não possua seu conteúdo ético. No mínimo a metade de toda a moral é negativa, e consiste em evitar o erro. O pai-nosso contém menos de cinqüenta palavras, e seis delas são dedicadas a pedir a Deus que não nos deixe cair  em tentação.  O  contemplativo-passivo deixa de fazer muitas coisas que teria de realizar; mas para se dispor a uma tal atitude, ele precisa abster-se de praticar uma série de ações que não deveriam ser levadas a efeito. O mal, acentuou Pascal, seria muito   diminuído   se   os   homens   aprendessem   a   permanecer   serenamente   em  seus aposentos.  Mas  o  contemplativo  cuja  percepção  haja  sido  esclarecida  não  precisará permanecer   encerrado   em   seus   aposentos.   Poderá   sair   para   seus   afazeres,   tão perfeitamente satisfeito em contemplar e em ser uma parte da divina Ordem das Coisas, que   nunca  ver-se-á   tentado   a  entregar-se   ao   que  Traherme  chamou  de  "impuros Artifícios do mundo". Quando nos sentimos como se fôssemos os únicos herdeiros do universo,  quando  "o  mar  corre  em  nossas  veias  [...]  e  as  estrelas  são  nossas  jóias", quando todas as coisas parecem infinitas e sagradas, que motivos poderemos ter para a cobiça ou a soberba, para a fome de poder ou para as formas mais doentias de prazer? Os  contemplativos  não  são  propensos  a  se  tornarem jogadores,  alcoviteiros  ou  ébrios; como  regra,  não  pregam  a  intolerância  nem  promovem  guerras;  não  são  levados  ao roubo, à fraude ou à opressão dos fracos. E, a essas grandes virtudes negativas, podemos ainda  acrescentar  outra  que,  embora  difícil  de  definir,  não  só  é  importante  como também positiva. O arhat e o contemplativo sereno podem não praticar a contemplação em   sua    plenitude,    mas   mesmo   assim   nos   poderão   proporcionar   informações esclarecedoras  sobre  outra  e  transcendente  região  da  mente.  E,  se  praticarem-na  com elevação, tornar-se-ão os condutos através dos quais poderá advir uma certa influência benéfica,  dessa  região  ignota,  para  um  mundo  de  personalidades  atormentadas,  em constante agonia por falta desse auxílio. 

Enquanto  isso,  eu  me  voltara,  a  pedido  de  meu  interlocutor,  do  retrato  de Cézanne para o que se passava em minha mente ao cerrar os olhos. E o que pude então observar   foi   curiosamente   decepcionante:   meu   campo   de   visão   estava   repleto   de estruturas de cores vivas, em constante mutação, que pareciam feitas de plástico ou de folha esmaltada. 

— Vulgar — comentei. — Ordinário. Como os objetos de uma loja americana. 

Todas essas quinquilharias existiam em um universo acanhado, atulhado. 

— E como se alguém estivesse, debaixo do convés, em um navio — exclamei. — Uma loja americana flutuante. 

E, à medida que eu a observava, tornou-se bem patente que essa loja americana flutuante estava, de certa forma, relacionada com as pretensões humanas. Esse interior sufocante  de  loja  barata  embarcada  era  meu  próprio  ego;  esses  vistosos  mobiles vulgares,  de  lata  e  de  matéria  plástica,  eram  minhas  contribuições  pessoais  para  o universo. 

Achei  a  lição  salutar,  embora  não  deixasse  de  ser  constrangedor  que  ela  me tivesse  sido  ministrada  nesse  momento  e  sob  tal  forma.  De  modo  geral,  quem  toma mescalina  descobre  um  mundo  interior  tão  claramente  definido,  tão  axiomaticamente infinito  e  sagrado  quanto  aquele  mundo  exterior  transfigurado  que  eu  havia  visto  de olhos  abertos.  A  princípio,  minha  própria  experiência  fora  diferente.  A  mescalina  me proporcionara,  temporariamente,  o  poder  de  ter  visões  de  olhos  cerrados;  mas  não pudera  —  ou,  ao  menos  naquela  ocasião,  não  o  fez  —  revelar-me  uma  visão  interior remotamente comparável às minhas flores, à cadeira ou às calças de flanela "lá de fora". O  que  ela  me  permitira  perceber,  interiormente,  não  fora  o  Dharma-Corpóreo  por intermédio  de  imagens,  e  sim  minha  própria  mente;  não  um  padrão  de  Peculiaridade, mas  um  conjunto  de  símbolos  —  em  outras  palavras,  um  substituto  caseiro  dessa Peculiaridade. 

Os  indivíduos  de  imaginação  fértil  são,  em  sua  maioria,  transformados  em visionários pela mescalina. Alguns deles — e seu número talvez seja bem maior do que geralmente   se   admite   —   não   necessitam  de   transformação;   são   permanentemente visionários. 

A espécie mental a que Blake pertencia acha-se razoavelmente bem distribuída, mesmo nas sociedades urbano-industriais da atualidade. A singularidade do artista-poeta não consiste no fato de, para citar seu Descriptive Catalogue, haver ele realmente visto "aquelas maravilhosas entidades que a Sagrada Escritura denominava Querubins". Não reside  em que  "estes maravilhosos entes, surgidos em minhas visões,  tivessem, alguns deles, cem pés de altura [...] todos repletos de mitológico e recôndito significado". Está apenas em sua habilidade para traduzir, por palavras ou (com um pouco menos de êxito) com  traços  e  cores,  ao  menos  certos  aspectos  de  uma  experiência  algo  incomum.  O visionário desprovido de talento pode se aperceber de uma realidade interior não menos assombrosa,  bela  e  valiosa  que  o  mundo  observado  por  Blake;  mas  faltar-Ihe-á  por completo habilidade para exprimir, por meio de símbolos plásticos ou literários, aquilo que viu. 

Conclui-se  perfeitamente,  à  luz  dos documentos e  rituais religiosos, bem como dos monumentos da poesia e das artes plásticas que chegaram até nós, que, na maioria das  épocas  e  dos  lugares,  os  homens  têm  atribuído  maior  importância  a  suas  visões interiores que às coisas objetivas que conhecem. Têm julgado que o que vêem, quando de olhos cerrados, possui maior importância espiritual que o visto à luz do dia. Qual a razão para isso? A familiaridade gera indiferença, e o problema da sobrevivência é de uma premência que vai da tediosa rotina à tortura. É para o mundo exterior que abrimos os olhos todas as manhãs, é nele que, de bom ou de mau grado, temos de procurar viver. No  mundo  interior  não  há  trabalho  nem  monotonia.  Visitamo-lo  apenas  em  sonhos  e devaneios, e sua singularidade é tal que nunca encontramos o mesmo mundo em duas ocasiões sucessivas. Que há, pois, de espantoso em preferirem os seres humanos, via de regra, olhar para dentro de si mesmos, em sua busca do sublime? Isso, de fato, sucede como  regra  geral,  mas  não  necessariamente:  não  somente  em  sua  religião,  como também em sua arte, os taoístas e os budistas Zen procuravam ir além de suas visões, ao encontro e através do Vazio, até as "dez mil coisas" da realidade objetiva. Graças a sua doutrina  da  Palavra  tornada  carne,  poderiam  os  cristãos,  desde  o  início,  adotar  uma atitude  semelhante  com  relação  ao  universo  que  os  circundava.  Mas,  em  razão  da doutrina  do  Pecado  Original,  viram-se  em  grande  dificuldade  para  fazê-lo.  Há  apenas trezentos   anos,   uma   expressão   de   completa   fuga   ao   mundo,   e   mesmo   de   sua condenação,  era  não  só  ortodoxa  como  compreensível:  "Nada  há  na  Natureza  que mereça  a  nossa  admiração,  a  não  ser  a  encarnação  de  Cristo".  No  século  XVII,  essa frase de Lallemant parecia ter sentido. Hoje, encontramos nela a aura da demência. 

Na  China,  a  ascensão  do  paisagismo  à  categoria  de  arte  importante  ocorreu há um  milênio;  no  Japão,  há  uns  seis  séculos;  na  Europa,  há  uns  trezentos  anos.  A identificação da Divindade com a sebe foi obra desses mestres zen, que consorciaram o naturalismo  taoísta  com  o  transcendentalismo  budista.  Foi,  pois,  apenas  no  Extremo Oriente  que  os  paisagistas,  conscientemente,  encararam  sua  arte  como  obra  religiosa. No Ocidente, a pintura religiosa consistia em representar personagens sacros e ilustrar textos sagrados. Os paisagistas tinham-se na conta de secularistas. Hoje reconhecemos em Seurat um dos supremos mestres do que pode ser denominado o paisagismo místico. E, não obstante, esse homem que era capaz, mais do que outro qualquer, de representar o  Impar  em  sua  pluralidade,  ficou  indignado  quando  alguém  lhe  elogiou  a  poesia  de suas obras. "Limito-me a aplicar o Sistema", protestou ele. 

Em  outras  palavras,  ele  se  considerava  um  praticante  do  pointillisme[7] e  nada mais.  Passagem  semelhante  conta-se  de  Constable:  Blake,  já  no  fim  de  sua  vida, conheceu-o  em  Hampstead  e  examinou  alguns  de  seus  esboços.  A  despeito  de  seu desprezo pela arte naturalista, o velho visionário soube dar-lhe o devido valor, embora pensasse  tratar-se  de  obra  de  Rubens.  —  "Isto  não  é  desenho",  exclamou  ele,  "isto  é inspiração!"  Ao  que  Constable  lhe  teria  retrucado,  de  modo  bem característico:  "Fi-lo para que fosse desenho". Ambos estavam certos. Aquilo era desenho, preciso e fiel, mas ao  mesmo  tempo  era  inspiração  —  inspiração  no  mínimo  tão  elevada  quanto  a  de Blake. Os pinheiros na Urze foram realmente identificados com a Divindade. O esboço  era  uma  reprodução,  necessariamente  imperfeita,  mas  assim  mesmo  profundamente impressionante,  do  que  uma  percepção  sem  peias  revelara  aos  olhos  abertos  de  um grande  pintor.  De  uma  contemplação  segundo  os  moldes  de  Wordsworth  e  Whitman, identificando  a  Divindade  com  a  sebe,  e  das  visões  introspectivas,  tais  como  as  de Blake,  das  "maravilhosas  entidades",  os  poetas  contemporâneos  recuaram  para  uma investigação  do  que  é  pessoal,  como  oposto  ao  mais  do  que  pessoal,  subconsciente,  e para uma reprodução, em termos altamente abstratos, não dos fatos reais, objetivos, mas de  meras  noções  científicas  e  teológicas.  Coisa  algo  semelhante  ocorreu  no  campo  da pintura.  Nela  verificamos  uma  fuga  generalizada  da  paisagem  —  forma  predominante dessa arte no século XIX. Essa fuga não se deu para aquele sublime Princípio interior — ao qual se achavam ligadas, em sua maioria, as escolas tradicionais do passado —, para aquele Mundo Modelo, onde os homens têm sempre ao seu dispor estas duas matérias-primas: mito e religião. Não; o que houve foi uma fuga para o Princípio exterior, para o subconsciente  individual,  para  um  mundo  intelectual  mais  esquálido  e  ainda  mais estreitamente fechado que o da personalidade consciente. Essas quinquilharias de lata e de plástico, de cores berrantes, onde eu as havia visto antes? Em qualquer galeria de arte onde se exibam as últimas criações da arte não-representativa. 

Naquele momento, alguém acabava de ligar um fonógrafo e de pôr um disco no prato. Ouvi com prazer a música; mas nada há que se equipare à visão apocalíptica que tive das flores e de minhas calças. Poderia um músico, prodigamente aquinhoado pela Natureza,  ouvir  as  revelações  que,  para  mim,  foram  exclusivamente  visuais?  Seria interessante   fazer   essa   experiência.   Entretanto,   embora   não   transfigurada,   embora mantendo a qualidade e a intensidade normais, a música contribuiu, e não pouco, para a compreensão  do  que  se  passara  comigo  e  dos  problemas  mais  amplos  que  esses acontecimentos suscitaram. 

A música instrumental, por estranho que pareça, deixou-me bastante indiferente. O  Concerto  para  piano  em  dó-menor,  de  Mozart,  foi  interrompido  após  o  primeiro movimento e substituído por um disco de madrigais de Gesualdo. 

— Essas vozes — disse eu com prazer —, essas vozes são uma espécie de ponte que nos permite regressar ao mundo dos homens. 

E  como  ponte  continuaram,  mesmo  quando  cantando  as  composições  mais povoadas   de   variações   cromáticas   dentre   as   obras   do   príncipe   louco.   A   música prosseguiu através das frases irregulares ; dos madrigais, jamais batendo na mesma tecla em dois compassos l consecutivos. Em Gesualdo — aquele personagem fantástico de um melodrama de Webster — a desintegração psicológica exagerara, levara aos limites   extremos   uma   tendência   inerente   à   música   modal,   em   contraposição   à inteiramente tonai. Daí suas obras darem a impressão de terem sido escritas pelo último Schoenberg. 

—  E  no  entanto  —  senti-me  forçado  a  dizer,  enquanto  ouvia  esses  estranhos produtos de uma psicose da Contra-Reforma atuando sobre um estilo de arte do fim da Era Medieval —, e, no entanto, pouco importa que ela seja toda em pedaços. O conjunto é caótico, mas cada fragmento, de per si, é ordenado, é a representação de uma Ordem Superior.  Essa  Ordem  Superior  sobrepuja  a  própria  desintegração.  Sente-se  a  unidade até  nos  fragmentos.  Talvez  ela  seja  mais  sensível  do  que  em  uma  obra  inteiramente  coerente.  Ao  menos,  não  seremos  levados  a  um  sentimento  de  falsa  segurança  por qualquer impulso meramente humano e artificial. Temos de confiar em nossa percepção direta, de natureza fundamental. Portanto, até certo ponto, a desintegração pode ter suas vantagens.      Mas   é   fora   de   dúvida   que   ela   é   perigosa;   terrivelmente   perigosa. Suponhamos que não mais possamos voltar, fugir ao caos... 

Dos madrigais de Gesualdo pulamos, num salto de três séculos, para Alban Berg e sua "Suite Lírica". 

— Isto — avisei antecipadamente — será o inferno. 

Mas,  quando  a  música  começou,  verifiquei  que  me  enganara.  Na  verdade,  a melodia   parecia   até  alegre.  Vindo  do  fundo  do  meu  subconsciente,  o  enlevo  se multiplicava  pelos  outros  tantos  tons  da  orquestra;  contudo,  o  que  realmente  me impressionou foi  a incongruência essencial entre uma desintegração psicológica talvez ainda  mais  completa  que  a  de  Gesualdo  e  os  prodigiosos  recursos,  tanto  em  talento como em técnica, empregados em sua expressão. 

— Não parece que ele está triste consigo mesmo? — comentei com    zombeteiro    desagrado.    E    logo    depois:    —    Katzenmusik!, douta Katzenmusik![8]  —  Finalmente,  após  mais  uns  poucos  minutos  de  tortura:  —  Quem se 
importa com quais sejam seus sentimentos? Por que não pode ele dedicar-se a qualquer outra coisa? 

Como  crítica  de  uma  obra  indubitavelmente  notável,  ela  era  injusta  e  parcial, mas não creio que fosse despropositada. Cito-a, não só pelo valor que possa ter, como também por ter sido assim que, em um estado de pura contemplação, reagi ante a "Suite Lírica". 

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3. Marta e Maria, irmãs de Lázaro, citadas no Novo Testamento, Evangelho de São Lucas. Nas alegorias cristãs, Marta simboliza a vida ativa; Maria, a contemplativa. 

4. Arfoat - monge budista que atingiu a luz; santo budista. 

5. Weltanschauung   ("visão   do   mundo")   é   uma   concepção   filosófica   do universo como decorrência do rumo dos acontecimentos no mundo como um todo. 

6. Bodhisattva  -  santo  budista;  aquele  que,  seguindo  as  pegadas  do  Buda, deverá, em encarnação futura, tornar-se também um Buda. 

7. Técnica de pintura da escola neo-impressionista, fundada por Seurat, na qual as tintas são aplicadas sobre fundo branco, em pequenos pontos, seguindo um rigoroso sistema. 

8. Literalmente,  "música  de  gatos";  expressão  alemã  empregada  para  definir uma música desagradável. 

3. O Jardim que Adão Viu Quando Abriu os Olhos


 Quando acabou sua execução, sugeriu-me o pesquisador que passeássemos pelo jardim.  Gostei  da  idéia  e,  embora  meu  corpo  parecesse  ter-se  separado  quase  por completo de minha mente (ou, para ser mais preciso, embora minha perceptibilidade do transfigurado  mundo  exterior  já  não  mais  se  fizesse  acompanhar  da  de  meu  próprio organismo),  do  ponto  de  vista  fisiológico  verifiquei  ser  capaz  de  levantar-me,  abrir  a porta e sair para o jardim com um mínimo de hesitação. Era, na verdade, estranho sentir que eu não era a mesma coisa que esses braços e pernas lá de fora; que esse tronco, esse pescoço,  essa  cabeça  mesma.  Era  estranho;  mas  em  breve  acostumamo-nos  a  isso.  E, seja  como  for,  o  corpo  parecia  perfeitamente  apto  a  tomar  conta  de  si  próprio.  Na verdade, é ele quem sempre toma conta de si. Tudo o que o ego consciente pode fazer é formular desejos, que são então transmitidos ao corpo por forças que ele controla muito pouco e absolutamente não compreende. Quando faz algo mais — por exemplo, quando se  esforça  em  demasia,  quando  se  aborrece  ou  se  torna  apreensivo  sobre  o  futuro  —, reduz a eficiência dessas forças e pode mesmo fazer com que o debilitado corpo adoeça. Em meu estado, no momento, a perceptibilidade não era encaminhada a um ego; estava, por assim dizer, entregue a si mesma. Isso significava que a inteligência fisiológica que controla  o  organismo  também  estava  entregue  a  si  mesma.  Nessa  ocasião,  aquele importuno  neurótico  que,  nas  horas  de  vigília,  se  esforça  por  "dirigir  o  espetáculo" estava, felizmente, fora de ação. Transpondo a porta, saí para uma espécie de pérgula, em parte coberta por uma roseira, em parte por ripas de uns dois centímetros de largo, a intervalos  de  um  centímetro  umas  das  outras.  O  sol  brilhava,  e  a  sombra  das  ripas formava um zebrado claro-escuro no chão da varanda, no assento e no encosto de uma cadeira  de  jardim  que  se  achava  próxima  à  casa.  Aquela  cadeira!  Poderei  algum  dia esquecê-la?  As  alternâncias  de  sombra  e  luz  formavam,  sobre  a  lona  de  seu  estofo, listras de um anil intenso, porém luzente, sucedidas por outras de uma incandescência tão  intensamente  brilhante  que era  difícil acreditar  não fossem produzidas por  chamas azuis. Por um tempo, que me pareceu intensamente longo, fitei-a sem saber, sem mesmo desejar  saber  que  é  que  tinha  diante  de  mim.  Em  outra  ocasião  qualquer  teria  visto apenas  uma  cadeira  com  barras  alternadas  de  luz  e  sombra.  Mas,  no  momento,  a percepção  sensorial  dominara  a  idéia.  Eu  estava  tão  absorto  na  contemplação,  tão estupefato pelo que via, que não pude ter consciência de nada mais. Mobiliário, ripas, luz do sol, sombra — tudo isso não passava de nomes e noções; de meras verbalizações para  o  aproveitamento  científico  ou  utilitário  dos  resultados.  O  resultado  era  essa sucessão  de  portas  de  fornalha  azul-celeste,  separadas  por  insondáveis  abismos  de genciana.  Aquilo  era  indizivelmente  maravilhoso;  de  uma  sublimidade  que  tocava  as raias  do  terrífico.  E  então,  repentinamente,  tive  uma  vaga  noção  do  que  seja  sentir-se louco.  A  esquizofrenia  tem  seus  paraísos,  de  par  com  seus  infernos  e  purgatórios. Lembro-me do que um velho amigo, de há muito falecido, contou-me sobre a doença da esposa.  Um  dia,  nos  primeiros  estágios  da  enfermidade,  quando  ela  ainda  desfrutava intervalos de lucidez, tinha ido visitá-la no hospital e dar-lhe notícias dos filhos. Ela o ouviu  por  algum  tempo  e  então,  de  súbito,  interrompeu-o:  como  poderia  ele  perder tempo   com   um   casal   de   crianças   ausentes   quando   tudo   o   que   verdadeiramente importava, ali e naquele instante, era a indizível beleza dos desenhos que ele criava, em seu  casaco  marrom  de  xadrez,  a  cada  movimento  de  braços?  Infeliz!  Esse  paraíso  de percepção ilimitada, de contemplação pura, parcial, não iria durar. Os intervalos felizes tornaram-se  mais  raros,  mais  breves,  até  que,  finalmente,  desapareceram  de  vez;  só restou o horror... 

Muitos dos que ingerem mescalina experimentam apenas as sensações celestiais da esquizofrenia. A droga só leva o purgatório ou o inferno àqueles que tenham tido um acesso recente de icterícia ou que sofram de depressões periódicas ou ansiedade crônica. Se, como acontece com outras drogas de poder incomparavelmente menor, a mescalina fosse  reconhecidamente  tóxica,  sua  ingestão  seria  suficiente  para  provocar  ansiedade. Mas  o  indivíduo  razoavelmente  saudável  sabe  antecipadamente  que,  para  si,  esse alcalóide será completamente inócuo e que seus efeitos terão cessado após oito ou dez horas,  sem  deixar  sensações  desagradáveis  nem,  conseqüentemente,  ânsias  por  novas doses. Fortalecido por essa convicção, ele pode entregar-se à experiência sem temores —  em  outras  palavras,  sem  qualquer  predisposição  para  converter  um  ensaio  de  uma singularidade  sem  precedentes,  inumano,  em  algo  de  aterrador,  de  verdadeiramente diabólico. 

Diante de uma cadeira que parecia um Juízo Final — ou, para ser mais preciso, ante um Juízo Final que, depois de longo tempo e com considerável dificuldade, pude reconhecer como sendo uma cadeira —, eu me senti, de uma hora para outra, no limiar do  pânico.  Aquilo,  percebi  repentinamente,  estava  indo  muito  longe.  Longe  demais, muito embora marchasse para uma beleza sempre maior, para um sentido cada vez mais profundo.   O   temor,   analisando-o   retrospectivamente,   foi   o   de   me   ver   esmagado, desintegrado   sob   uma   pressão   de   realidade   muito   superior   à   que   uma   mente, acostumada  a  viver  a  maior  parte  do  tempo  em  um  confortável  mundo  de  símbolos, talvez pudesse suportar. Na literatura da experiência religiosa, abundam referências aos sofrimentos e terrores que esmagam os que se defrontam, com demasiada rapidez, face a face com qualquer manifestação do Mysterium Tremendum. Em linguagem teológica, esse temor é função da incompatibilidade entre o egotismo do homem e a pureza divina; entre  a  mesquinhez  auto-agravada  do  homem  e  o  Deus  infinito.  Segundo  Boheme  e William Law, podemos dizer que a Divina Luz, em toda a sua intensidade, só pode ser percebida  pelas  almas  pecadoras  sob  a  forma  de  chamas  do  purgatório.  Doutrina praticamente idêntica é a exposta no Livro tibetano dos mortos, pelo qual a alma que se desprega  foge  atormentada  da  Serena  Luz  do  Vazio,  e  até  mesmo  das  Luzes  menos intensas, indo lançar-se, precipitadamente, na confortadora escuridão da personalidade, reencarnando-se em um recém-nascido, transformando-se até em animal, em um infeliz fantasma  ou  indo  ter  ao  inferno.  Há  de  preferir  qualquer  coisa  ao  ígneo  refulgir  da implacável Realidade — qualquer coisa! 

O esquizofrênico é uma alma, não só impura, como também desesperadamente desgostosa  com  sua  situação.  Seu  tormento  consiste  na  incapacidade  de  proteger-se contra a realidade, seja ela interior ou exterior (como faz normalmente o indivíduo são) refugiando-se no universo do senso comum, por nós mesmos construído — esse mundo estritamente humano  das noções úteis,  dos simbolos compartilhados pelos demais, das convenções  socialmente  aceitáveis.  O  esquizofrênico  é  qual  homem  sob  a  influência contínua da mescalina e, pois, incapaz de deixar de experimentar uma realidade que ele não  pode  suportar  por  lhe  faltar  pureza;  que  não  pode  interpretar  por  ser  ela  o  mais inflexível dos fatos fundamentais e que, por jamais permitir-lhe encarar o mundo com olhos simplesmente humanos, força-o a interpretar suas incessantes singularidades, sua candente  intensidade  de  valores,  como  a  manifestação  da  maldade  humana  ou  até cósmica, levando-o às mais desesperadas contramedidas que vão da violência assassina, de um lado da escala, até a catatonia — ou suicídio psicológico —, do outro. E, uma vez iniciada   a   descida   pela   rampa   infernal,   ninguém   poderá   mais   deter-se.   Isso,   no momento, era por demais evidente para mim. 

—   Quem enveredar pelo caminho errado — disse eu em resposta às perguntas de  meu  inquiridor  —  encontrará,  em tudo o que acontecer, uma prova da conspiração que  se  articula  contra  si.  Tudo  servirá  de  confirmação.  A  própria  respiração  estará fazendo parte do sinistro plano. 

— Com que então você acha que sabe onde se aloja a loucura? Minha resposta foi um convicto e profundo "Sim". 

— E não poderia controlá-la? 

— Não; não poderia fazê-lo. Quem começa com medo e ódio, como principais premissas, terá de ir até o fim. 

—   Você  seria  capaz  —  perguntou-me  minha  esposa  —  de  fixar  sua  atenção naquilo que o Livro tibetano dos mortos chama de Serena Luz? 

Fiquei em dúvida. 

—  Seria  ela  capaz  de  manter  o  mal  afastado,  caso  você  pudesse  encará-la?  — insistiu ela. — Ou será que você não poderia fitá-la? 

Pensei por algum tempo para poder responder e, por fim, disse: 

—  Talvez;  talvez  o  conseguisse.  Mas  só  se  houvesse  lá  alguém  que  pudesse esclarecer-me a respeito da Serena Luz. Não é possível fazer-se isso a sós. Daí a razão, creio  eu,  para  o  ritual  tibetano  —  assentar-se  alguém  ao  nosso  lado,  durante  todo  o tempo, para dizer o que vai ocorrendo. 

Depois de escutar a gravação dessa parte da experiência, apanhei meu exemplar da tradução do Livro tibetano dos mortos por Evans-Wentz e o abri ao acaso: "Ó tu, que nasceste  nobre!  Não  permitas  que  tua  mente  seja  distraída".  Esse  era  o  problema: permanecer sem distrair-se. Sem se distrair ante a recordação de pecados passados; ante a evocação de prazeres, a amarga lembrança de antigos erros e humilhações; ante todos os temores, ódios e ansiedades que, de ordinário, eclipsam a Luz. O que esses monges budistas  faziam com os  mortos  e  os  agonizantes  não poderia  ser  feito  com os insanos pelo  psiquiatra  moderno?  Que  haja  uma  voz  para  lhes  assegurar,  durante  as  horas  de vigília — e até mesmo enquanto dormem —, que, a despeito de todo o terror, de toda a perplexidade e confusão, a Realidade fundamental permanece imutável e é idêntica, em sua substância, à luz interior, mesmo à da alma mais cruelmente atormentada. Por meio de  artifícios  tais  como  gravadores,  relógios  de  controle  de  circuitos,  sistemas  de  alto-falantes,  inclusive  distribuídos  pelos  travesseiros,  seria  facílimo  fazer  com  que  os internados,  mesmo  em  casas  de  saúde  pobres  em  pessoal,  fossem  constantemente doutrinados  sobre  esse  fato  primordial.  Talvez  algumas  dessas  almas  desgarradas pudessem ser assim auxiliadas na obtenção de um certo controle sobre o universo onde foram condenados a viver e que, a um só tempo maravilhoso e aterrador, é, no entanto, permanentemente inumano, sempre totalmente incompreensível. 

Algum tempo depois fui afastado do inquietante esplendor de minha cadeira de jardim. Caindo em parábolas verdes do alto de uma sebe, a folhagem da hera luzia com um   brilho   vítreo   que   lembrava   o   jade.   Logo   após,   um   arbusto   em   flor   surgiu repentinamente   em  meu   campo   visual.   Suas  flores  rubras   tinham  tanta   vida   que pareciam a ponto de falar, voltadas para cima, para o azul do céu. Tal como a cadeira sob  o  caramanchão,  elas  chamavam  demais  minha  atenção.  Desviei  o  olhar  para  as folhas e descobri um caprichoso intricado das mais delicadas luzes e sombras no verde, a pulsar misteriosamente. 

Roses: 
The flowers are easy to paint, 
The leaves difficult. * 

*[Rosas:/ É fácil pintar-lhes as flores,/ Difíceis são as folhas.]

O  haiku  de  Shiki  (que  cito  na  tradução  de  F.  H.  Blyth)  exprime,  de  modo indireto, exatamente o que então senti — a excessiva, a por demais evidente beleza das flores, contrastando com o milagre mais sutil de sua folhagem. 

Saímos para a rua. Um grande automóvel azul-claro estava estacionado junto à calçada.  Ao  vê-lo,  fui  repentinamente  tomado  de  enorme  alegria.  Que  prazer,  que absurda  satisfação  comigo  mesmo  provinha  daquelas  superfícies  abauladas  do  mais luzente  esmalte!  O  homem  o  criara  à  sua  própria  imagem  (ou  melhor,  segundo  a imagem de seu personagem favorito no mundo de ficção). Ri até as lágrimas rolarem-me pelas faces.


4. O Mar Vermelho de Tráfego


Voltamos  para  casa.  A  mesa  estava  posta.  Alguém,  que  ainda  não  estava identificado com meu ego, comeu com um apetite devorador. De longe, e sem revelar muito interesse, eu o observava. 

Depois  de  comer,  entramos  no  carro  e  saímos  para  um  passeio.  Os  efeitos  da mescalina já estavam se dissipando; mas as flores dos jardins ainda vibravam no limiar do  sobrenatural,  as  pimenteiras  e  alfarrobeiras,  ao  longo  das  alamedas  laterais,  ainda pertenciam,  visivelmente,  a  um  bosque  sagrado.  O  Éden  alternava  com  Dodona[10], Yggdrasil[11], com a Rosa mística. Eis que, abruptamente, paramos em uma interseção, esperando  nossa  vez  de  cruzar  o  Sunset  Boulevard.  Diante  de  nós,  passavam  os  automóveis em uma torrente uniforme — milhares deles, todos brilhantes e polidos qual sonho de um anunciante, cada um deles mais ridículo que o precedente. Mais uma vez caí num riso convulsivo. Por fim, o Mar Vermelho do tráfego ficou para trás e passamos a percorrer novo oásis de árvores, gramados e rosas. 

Em  poucos   minutos   chegamos   a   um  ponto   culminante   das  elevações  que dominam  a  cidade,  e  pudemos  observá-la  a  espalhar-se  abaixo  de  nós.  Foi  com desapontamento  que  constatei  parecer-se  ela,  no  momento,  exatamente  com  a  cidade que  eu  vira  dali  em  outras  ocasiões.  Para  mim,  a  transfiguração  era  inversamente proporcional  à  distância  —  quanto  mais  perto,  mais  sublimemente  diferentes  me pareciam  as  coisas.  Não  havia  quase  diferença  em  relação  a  esse  vasto  e  confuso panorama. 

Prosseguimos  e,  enquanto  permanecemos  nas  elevações,  fomos  descortinando, uns após outros, panoramas distantes que, por essa mesma razão, não se apresentavam diferentes  dos  do  nível  normal  de  percepção,  o  qual  está  bem  abaixo  do  ponto  de transfiguração.  O  encantamento  recomeçou  quando  descemos  em  direção  a  um  bairro novo, deslizando por entre duas fileiras de casas. E, a despeito do notório mau gosto da arquitetura, houve repetição daquelas diversidades transcendentais, reflexos do paraíso entrevisto naquela manhã. Chaminés de tijolos e complicados telhados verdes brilhavam à  luz  do  sol  qual  fragmentos  da  Nova  Jerusalém.  E,  de  súbito,  vi  aquilo  mesmo  que Guardi  vira  e  (com  que  incomparável  virtuosidade!)  com  tanta  freqüência  soubera transportar  para  suas  telas  —  uma  parede  de  estuque  atravessada  por  um  risco  de sombra; nua, porém incrivelmente bela; vazia, mas prenhe de todo o significado e todo o mistério da existência. Dentro de uma fração de segundo, mais uma vez a Revelação se esvaiu. O carro prosseguira em sua marcha e o tempo havia posto a descoberto outra manifestação da eterna Peculiaridade. "Dentro da semelhança existe diferença. Mas não é  absolutamente  intenção  de  Buda  algum  que  a  diferença  seja  diversa  da  semelhança. Desejam eles que haja tanto totalidade como diferenciação." Assim, por exemplo, esta moita de gerânios brancos e rubros é inteiramente diferente daquela parede de estuque que ficou a uns cem metros para trás. Mas o existir de ambas é idêntico, é a mesma e eterna   essência   de   sua   transitoriedade.   Uma   hora   mais   tarde,   com   mais   quinze quilômetros  de  percurso  e  a  visita  ao  maior  drugstore  do  mundo  lá  bem  para  trás, voltamos   para   casa,   já   tendo   eu   tornado   àquele   estado   reconfortante,   embora profundamente insatisfatório, conhecido como "estar em seu juízo perfeito". 

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10 Dodona - templo de um famoso oráculo de Zeus no Épiro. O Zeus de Dodona era materializado por um carvalho sagrado, cujo murmúrio da folhagem era interpretado pelo sacerdote. 

11 Yggdrasil - freixo   gigante   da   mitologia   escandinava,   que   simboliza   o Universo. 

5. Conclusão - Comunhão com o Deus Vegetal


Parece extremamente improvável que a humanidade, de um modo geral, algum dia seja capaz de passar sem paraísos artificiais. A maioria dos homens e mulheres leva uma vida tão sofredora em seus pontos baixos e tão monótona em suas eminências, tão pobre  e  limitada,  que  os  desejos  de  fuga,  os  anseios  para  superar-se,  ainda  por  uns breves momentos, estão e têm estado sempre entre os principais apetites da alma. A arte e a religião, os carnavais e as saturnais, a dança e a apreciação da oratória, tudo isso tem servido, na frase de H. G. Wells, de Portas na muralha. E ha vida individual, para uso cotidiano,  sempre  houve  drogas  inebriantes.  Todos  os  sedativos  e  narcóticos  vegetais, todos os eufóricos derivados de plantas, todos os entorpecentes que se extraem de frutos ou   raízes,   todos,   sem   exceção,   são   conhecidos   e   vêm   sendo   sistematicamente empregados  pelos  seres  humanos,  desde  épocas  imemoriais.  E  a  esses  modificadores naturais da percepção, a ciência moderna adicionou sua cota de produtos sintéticos — o cloral, a benzedrina, os brometos e os barbituratos. 

A  maior  parte  dessas  substâncias  não  pode  ser  atualmente  adquirida,  a não  ser mediante  prescrição  médica  ou  então  ilegalmente  e  com graves  riscos.  O  Ocidente  só permite  o  uso  irrestrito  do  fumo  e  do  álcool.  Todas  as  outras  Portas  químicas  na muralha são rotuladas como estupefacientes e seus consumidores ilegais são viciados. 

Gastamos, hoje em dia, muito mais em cigarros e bebidas que em educação. E nada há de surpreendente nesse fato. O impulso para fugir a nós mesmos e ao que nos rodeia está presente em cada um de nós, quase todo o tempo. O estímulo para fazer algo pelas crianças só é forte nos pais, e, mesmo neles, tão-somente durante os poucos anos de vida escolar de seus filhos. Do mesmo modo, não nos surpreende a atitude geral com relação ao fumo e à bebida. 

A   despeito   das   legiões   sempre   crescentes   de   alcoólatras   inveterados,   das centenas de milhares de pessoas que são anualmente mutiladas ou mortas por motoristas embriagados, os humoristas populares ainda armam situações jocosas girando em torno do álcool e dos que a ele se entregam. E, a despeito das provas ligando os cigarros ao câncer  do  pulmão,  praticamente  todo  o  mundo  encara  o  hábito  de  fumar  como  algo quase  tão  normal  e  natural  quanto  comer.  Do  ponto  de  vista  do  racionalista  utilitário, isto pode parecer estranho, mas, para o versado em história, não seria de esperar outra coisa.  Jamais  a  inabalável  convicção  na  existência  do  Inferno  conseguiu  evitar que os cristãos  fizessem  aquilo  que  lhes  sugeria  a  ambição,  a  luxúria  ou  a  cobiça.  O  câncer pulmonar,  os  acidentes  de  tráfego  e  os  milhões  de  criaturas  miseráveis  e  criadoras  de miséria  em  razão  do  alcoolismo  são  realidades  ainda  mais  positivas  que  o  Inferno  no tempo de  Dante.  Mas tudo  isso  é  remoto  e secundário,  se comparado com a realidade vivida e presente de uma ânsia por serenidade ou liberdade, por um cigarro ou uma taça. 

Nossa  era,  entre  outras  coisas,  é  a  idade  do  automóvel  e  da  vertigem  da velocidade. O álcool é incompatível com a segurança nas estradas; e sua produção, bem como a do tabaco, condena praticamente à esterilidade muitos milhões de hectares dos mais férteis solos. Os problemas criados pelo álcool e pelo tabaco não podem ser — e isto  não  admite  contestação  —  resolvidos  pela  proibição.  O  impulso  universal  e permanente  para a autotranscendência não pode ser dominado pelo simples fechar das solicitadas  Portas  na  muralha.  A  única  política  razoável  seria  abrir  outras  portas melhores, na esperança de induzir os seres humanos a trocar seus velhos maus hábitos por  práticas  novas  e  menos  prejudiciais.  Algumas  dessas  novas  portas  seriam  de natureza  social  e  tecnológica,  outras  religiosas  ou  psicológicas,  e  outras  mais  seriam dietéticas,  atléticas  e  educacionais.  Mas  é  inevitável  que  perdure,  apesar  de  tudo,  a necessidade de freqüentes excursões químicas para longe da intolerável personalidade e dos  repulsivos  arredores  de  cada  um.  Precisar-se-ia,  pois,  de  uma  nova  droga  que aliviasse e consolasse nossos semelhantes que sofrem, sem lhes causar dano maior, após um período prolongado de tempo, do que o bem que ela lhes pudesse proporcionar de imediato.  Tal  droga  teria  de  ser  eficaz  em doses  diminutas,  e  sintetizável.  A  ausência dessas características faria com que sua produção, tal qual a do vinho, da cerveja, das bebidas  fortes  e  do  tabaco,  fosse interferir  com a produção  dos alimentos e  das fibras essenciais.  Teria  de  ser  menos  tóxica  que  o  ópio  ou  a  cocaína,  menos  propensa  a produzir  conseqüências  sociais  indesejáveis  que  o  álcool  ou  os  barbituratos,  menos prejudicial  ao  coração  e  aos  pulmões  que  o  alcatrão  e  a  nicotina  dos  cigarros.  E,  por suas   características   positivas,   deveria   produzir   modificações  mais  interessantes   na  percepção,  mais  intrinsecamente proveitosas  que  a mera ação  sedativa  ou  a propensão aos sonhos e às impressões de onipotência ou o escape às inibições. 

A mescalina é quase que completamente inócua para a maioria das pessoas. Ao contrário  do  álcool,  ela  não  conduz  o  paciente  a  esse  tipo  de  ações  descomedidas  das quais resultam alterações, crimes violentos e acidentes de tráfego. Um indivíduo sob a influência da mescalina vive sossegadamente para si mesmo. Além do mais, o que então o absorve é uma experiência das mais esclarecedoras e que dele não exige, em troca (e isto  é  certamente  importante),  quaisquer  sensações  posteriores  de  angústia.  Pouco sabemos acerca das conseqüências remotas do uso sistemático da mescalina. Os índios que mascam pedaços de peiote não parecem ser física ou moralmente degradados pelo hábito. No entanto, as provas de que dispomos são ainda poucas e falhas [12]. 

Embora  indiscutivelmente  superior  à  cocaína,  ao  ópio,  ao  álcool  e  ao  fumo,  a mescalina ainda não é a droga ideal. De par com a maioria de indivíduos que encontram a satisfação na ingestão do alcalóide, há uma minoria a quem a droga só proporciona o inferno  ou  o  purgatório.  Além  disso,  para  um  produto  que  iria  ser  entregue,  como  o álcool,    ao    consumo    indiscriminado,    seus    efeitos    perduram    por    um    prazo exageradamente  longo.  Mas  a  química  e  a  fisiologia  são,  hoje  em  dia,  capazes  de realizar  praticamente  qualquer  coisa.  Se  os  psicologistas  e  sociologistas  chegarem  a definir  qual  seja  o  ideal,  pode-se  confiar  nos  neurologistas  e  farmacologistas  para descobrir os meios de atingi-lo ou, no mínimo, aproximar-se dele muito mais (mesmo porque, pela própria natureza das coisas, talvez jamais se consiga conceber inteiramente qual seja esse ideal) do que foi possível com o vinho do passado ou com o uísque, a maconha e os barbituratos do presente. 

O  impulso  para  superar  a  personalidade  autoconsciente  é,  como  já o  disse,  um anseio capital da alma. Quando, seja por que razão, os seres humanos vêem baldados os seus esforços para superarem a si mesmos pelo culto, pelas boas ações e pela atividade intelectual, tornam-se propensos a recorrer às drogas substitutas da religião — o álcool e  as "pílulas inocentes" no moderno Ocidente, o álcool e o ópio no Oriente, o haxixe no mundo  maometano,  o  álcool  e  a  maconha  na  América  Central,  o  álcool  e  a  coca  nos Andes,  o álcool e  os barbituratos nas regiões mais adiantadas da América do Sul. Em Poisons sacrés, ivresses divines [Venenos sagrados, êxtases divinos], Philippe de Félice escreveu  exaustivamente,  e  com  riqueza  de  documentação,  sobre  os  laços  imemoriais que ligam a religião à ingestão de drogas. A seguir, ora resumindo, ora transcrevendo, apresento suas conclusões: 

O  emprego,  para fins religiosos,  de  substâncias tóxicas,  é  "extraordinariamente difundido  [...]  As  práticas  estudadas  neste  volume  podem ser  observadas  em qualquer região da Terra, tanto entre os povos primitivos como no seio daqueles que já atingiram um  elevado  índice  de  civilização.  Não  estamos,  pois,  lidando  com  fatos  excepcionais que poderiam ser, com razão, postos à margem; mas com um fenômeno geral e, dentro da mais ampla acepção da palavra, humano; com um tipo de fenômeno que não pode ser desprezado por quem quer que busque descobrir que é a religião e quais as necessidades profundas a que ela tem de satisfazer". 

Teoricamente,    cada    um    de    nós    deveria    ser    capaz    de    encontrar    a autotranscendência a partir de uma forma de religião pura ou aplicada.  Mas,  na  prática,  parece  ser  sumamente  improvável  que  esse  anseio pelo  apogeu  seja  algum  dia  realizável.  Há  (e  é  fora  de  dúvida  que  sempre  houve) homens  e  mulheres  virtuosos  e  pios,  para  quem,  infelizmente,  apenas  a  piedade  não basta.  O  falecido  G.  K.  Chesterton,  que  escrevia  com  lirismo  idêntico  tanto  sobre  a bebida quanto sobre a fé, pode servir de eloqüente exemplo desse grupo. 

As  igrejas  modernas,  excluídas  umas  poucas  seitas  protestantes,  toleram  o álcool; no entanto, mesmo as mais tolerantes jamais procuraram converter a bebida ao cristianismo — isto é, sacramentar seu uso. O pio alcoólatra vê-se forçado a manter, em com-partimentos  estanques,  sua  religião  e  seu  substituto  para  ela.  E  talvez  isso  seja inevitável. A bebida  não pode ser incluída na liturgia, a não ser nas religiões que não dêem valor  ao  decoro.  O  culto  de  Baco  ou  da  divindade  celta  da cerveja  eram festins ruidosos e dissolutos. Os ritos cristãos são incompatíveis com a embriaguez, ainda que de cunho religioso. Isso não prejudica os fabricantes de bebidas, mas é muito mau para o cristianismo. Um sem-número de pessoas deseja experimentar a autotranscendência, e gostaria de encontrá-la no tempo. Mas "as ovelhas famintas voltam-se para o céu e não são  atendidas".  Tomam  parte  nos  ritos,  escutam  os  sermões,  repetem  as  orações;  mas sua  sede  não  se  aplaca.  Desapontadas,  voltam-se  para  a  garrafa.  Ao  menos  por  certo tempo,  e  de  certa  forma,  encontram  o  que  querem.  A  igreja  pode  continuar  a  ser freqüentada;  mas  já  não  será  mais  do  que  o  Banco  Musical  do  Erewhon [13] de  Butler. Deus pode continuar a ser reconhecido como tal, mas a Ele só será concedida divindade no campo verbalístico, apenas em sentido estritamente figurado. O verdadeiro objeto de culto  é  a  garrafa,  e  a  única  experiência  religiosa  é  aquele  estado  de  desregramen-to  e belicosa euforia que se segue à ingestão do terceiro aperitivo. 

Vemos, pois, que o cristianismo e o álcool não se misturam nem poderiam fazê-lo.   Já   não   há   tanta   incompatibilidade   com   relação   à   mescalina.   Isso   tem   sido demonstrado por várias tribos de índios, desde o Texas até o Estado de Wisconsin. Entre essas  tribos,  encontram-se  algumas  filiadas  à  Igreja  Americana  Nativa,  seita  cujo principal  rito  é  uma  espécie  de  Ágape  Cristão  Primitivo  ou  Festa  do  Amor,  em  que fatias  de  peiote  substituem  o  pão  e  o  vinho  do  sacramento.  Esses  índios  americanos encaram  o  cacto  como  preciosa  dádiva  de  Deus  aos  índios  e  consideram  seus  efeitos manifestação do divino Espírito. 

O professor J. S. Slotkin — um dos pouquíssimos homens brancos que, até hoje, participaram   dos   ritos   de   uma   congregação   peiotista   —   relata,   falando   de   seus companheiros de ritual, que eles "em absoluto ficam narcotizados ou embriagados [...] Jamais perdem o ritmo ou balbuciam, como aconteceria com indivíduos inebriados pelo álcool  ou  por  estupefacientes  [...]  São  todos  calmos,  corteses  e  respeitam-se  uns  aos outros.  Jamais  estive  em  qualquer  templo  de  homens  brancos  onde  pudesse  encontrar tanto  respeito  e  religiosidade".  Poderíamos  perguntar:  "Que  estariam  esses  devotos  e bem-comportados peiotistas sentindo?". Claro que não há de ser o brando sentimento de virtude que embala o comum dos freqüentadores do ofício dominical, durante noventa minutos   de   solidão.   Nem   mesmo   esses   fervorosos   sentimentos,   inspirados   pelos pensamentos  no  Criador,  no  Redentor,  no  Juiz  e  no  Espírito  Santo,  que  animam  os piedosos.  Para  esses  membros  da  Igreja  Americana  Nativa,  a  experiência  religiosa  é algo de mais direto e esclarecedor, de mais espontâneo, e tem muito menos de produto imperfeito  da  mente  superficial  e  restrita.  Por  vezes  (ainda  segundo  as  observações colhidas  pelo  dr.  Slotkin)  têm visões  que  podem ser  até  do  Próprio  Cristo. De outras, escutam a voz do Grande Espírito. Ainda em outras se apercebem da presença de Deus, bem como  de  suas falhas pessoais, as quais terão de ser corrigidas para que possa ser cumprida  Sua  vontade.  As  conseqüências  práticas  dessa  abertura  química  das  Portas para o Outro Mundo parecem ser excelentes. O dr. Slotkin testemunha que os peiotistas habituais  são,  em  geral,  mais  diligentes,  mais  temperantes  (muitos  são  completamente abstêmios) e mais pacíficos que os não-peiotistas. Uma árvore que apresente frutos tão bons não pode ser condenada como maléfica. Ao sacramentar o uso do peiote, os índios da  Igreja  Americana  Nativa  fizeram  algo  que  é,  a  um  só  tempo,  psicologicamente correto e historicamente respeitável. Nos primeiros séculos do cristianismo, muitos ritos e  festas  pagãos  foram,  por  assim dizer,  batizados  e  postos  ao  serviço  da  Igreja.  Essas festas nada tinham de edificantes, mas aliviavam uma certa fome psicológica; e, em vez de tentar suprimi-las, os primeiros missionários tiveram o bom senso de aceitá-las pelo que  de  útil  possuíam  —  permitir  à  alma  satisfazer  seus  impulsos  fundamentais  —  e incorporá-las ao código da nova religião. Em essência, idêntico foi o procedimento da Igreja Americana Nativa. Adotaram um costume pagão (por sinal bem mais inspirador e esclarecedor do que as sensuais orgias e mascaradas, retiradas ao paganismo europeu) e deram-lhe um significado cristão. 

Embora  só  recentemente  tenham  sido  introduzidos  na  região  setentrional  dos Estados  Unidos,  o  consumo  do  peiote  e  o  culto  nele  baseado  tornaram-se  importantes símbolos  do  direito  do  índio  à  independência  espiritual.  Alguns  indígenas  reagiram  à hegemonia do branco tornando-se americanizados, enquanto outros se recolhiam a seus costumes  tradicionais.  Mas  um  terceiro  grupo  procurou  fazer  o  melhor  uso  das  duas civilizações e desses outros mundos de transcendental experiência onde a alma sabe que é  livre  e  tem  uma  essência  divina.  Daí  nasceu  a  Igreja  Americana  Nativa.  Nela,  dois grandes apetites da alma — o impulso para a independência e a autodeterminação, e o estímulo para a superação de si própria — fundiram-se e passaram a ser interpretados à luz de um terceiro — a necessidade de render culto, de justificar, perante o homem, as razões de Deus, de explicar o universo por meio de uma teologia coerente. 

Lo, the poor Inâian, whose untutored mina Clothes him in front, but leaves him 
bare behind. * 

* [índio infeliz, a quem a alma falaz,/ Cobre-lhe a frente e o deixa nu por trás.]

Mas,  em  verdade,  somos  nós,  os  brancos  ricos  e  altamente  educados,  que ostentamos  a  nudez  de  nossas  costas.  Cobrimos  nossa  paradisíaca  aparência  anterior com alguma filosofia — cristão, marxista, físico-freudiana —, mas nos descuramos da outra  face,  deixando-a  à  mercê  de  todos  os  ventos  que  possam soprar.  O  pobre índio, por    outro    lado,    se    tem    valido    do    espírito    para    proteger-lhe    a    retaguarda, complementando    a    folha    de    parreira    teológica    com   a    tanga    da    experiência transcendental. 

Não sou tão tolo a ponto de relacionar o que acontece sob o efeito da mescalina ou de qualquer outra droga, existente ou que possa vir a existir, com a compreensão do fim e do derradeiro objetivo da vida humana: a Luz, a Beatífica Visão. Tudo o que estou sugerindo pode ser assim resumido: a experiência com a mescalina é o que os teólogos católicos  chamam  de  "uma  graça  gratuita",  não  necessariamente  para  a  salvação,  mas potencialmente  valiosa e que, se realizada, será prazerosamente aceita. Ver-se livre da rotina  e  da  percepção  ordinária,  ser-lhe  permitido  contemplar,  por  umas  poucas  horas em  que  a  noção  de  tempo  se  esvai,  os  mundos  exterior  e  interior,  não  como  eles  se mostram ao animal dominado pela idéia de sobrevivência ou ao ser humano obcecado por  termos  e  idéias,  mas  tais  como  são  percebidos  pela  Onisciência  —  direta  e incondicionalmente   —,   eis   uma   experiência   de   inestimável   valor   para   qualquer indivíduo,  especialmente  para  o  intelectual,  pois  este  é,  por  definição,  o  homem  para quem, na frase de Goethe, "a palavra é essencialmente proveitosa". Ele é o homem para quem "o que percebemos pela visão nos é estranho e, pois, não nos deve impressionar profundamente".  Não  obstante,  embora  fosse  ele  mesmo  um  intelectual  e  um  dos supremos  mestres  da  linguagem,  Goethe  nem  sempre  concordou  com  sua  própria conceituação   da   palavra.   "Falamos   demais"   —   escreveu   ele   em   sua   madureza. "Deveríamos falar menos e desenhar mais. Eu, pessoalmente, gostaria de renunciar por completo à fala e, imitando a Natureza organizada, comunicar por esboços tudo o que tivesse   a   dizer.   Aquela   figueira,   esta   pequena   serpente,   o   casulo   aguardando serenamente  o  futuro  no  umbral  de  minha  janela,  tudo  isso  são  importantes  signos. Quem fosse capaz de decifrar corretamente seu significado poderia pôr inteiramente de lado  tanto  a  palavra  escrita  quanto  a  falada.  Quanto  mais  penso  nisso,  mais  encontro futilidade,  mediocridade  e  até  mesmo  (sou  levado  a  dize-lo)  fatuidade  na  palavra. Contrastando  com  isso,  como  nos  assombram  a  gravidade  e  o  silêncio  da  Natureza quando com ela deparamos face a face, concentrados diante de uma colina estéril ou da desolação de um outeiro que a erosão desgastou." 

Jamais poderemos passar sem a  palavra  e os outros  sistemas de símbolos, pois foi  graças  a  eles,  e  somente  por  eles,  que nos elevamos acima  das bestas,  atingindo  o nível  de  seres  humanos.  Mas  poderemos  facilmente  nos  tornar  tanto  vítimas  como beneficiários  desses  sistemas.  Precisamos  aprender  como  manejar  eficientemente  as palavras mas, ao mesmo tempo, devemos preservar e, se necessário, intensificar nossa capacidade de olhar o mundo diretamente, e não através da lente semi-opaca das idéias, que distorce cada fato, diluindo-o no lugar-comum das denominações genéricas ou das abstrações explanatórias. 

Literária   ou   científica,   liberal   ou   especializada,   toda   a   nossa   educação   é predominantemente verbalista e, pois, não consegue atingir plenamente seus objetivos. Em  vez  de  transformar  crianças  em  adultos  completamente  desenvolvidos,  ela  produz estudantes  de  ciências  naturais  que  não  têm  a  menor  noção  do  papel  primordial  da Natureza como elemento fundamental da experiência; entrega ao mundo estudantes de  humanidades que nada sabem sobre a humanidade, seja ela a sua ou a de quem mais for. 

Os psicologistas adeptos do gestaltismo, tais como Samuel Renshaw, conceberam  métodos  para  ampliar  a  gama  e  aumentar  a  acuidade  das  percepções humanas; mas aplicá-los-ão nossos educadores? Não. 

Mestres  de  todos  os  campos  das  atividades  psicofísicas  —  da  observação  ao tênis, do equilibrismo à reza — descobriram, pelo método das tentativas, as condições ideais   de   execução,   dentro   de   seus   setores   peculiares.   Mas   teria   alguma   grande Fundação  algum  dia  financiado  um  trabalho  destinado  a  coordenar  essas  descobertas empíricas  para  encontrar  as  bases  gerais,  teóricas  e  práticas,  do  aumento  do  poder criador?    Novamente,    tanto    quanto    me    é    dado    conhecer,    terei    de    responder negativamente. 

Adivinhos   e   charlatães   de   todas   as   espécies   ensinam   um   sem-número   de métodos para aquisição de alegria, saúde, paz de espírito. 

E,  para  muitos  de  seus  clientes,  a  maioria  desses  métodos  é  realmente  eficaz. Mas    acaso    vemos    psicologistas,    filósofos    e    sacerdotes    respeitáveis    descerem corajosamente a essas estranhas cavernas, por vezes infectas, no fundo das quais a pobre Verdade vê-se, tão amiúde, forçada a sentar-se? Mais uma vez, a resposta é "Não". 

E,  agora,  examinemos  o  histórico  da  pesquisa  sobre  a  mescalina.  Há  setenta anos,  homens de  inegável  capacidade descreveram as transcendentais  experiências  por que  passaram  aqueles  que,  gozando  boa  saúde,  em  pleno  uso  de  suas  faculdades mentais,  e  sob  condições  adequadas,  ingeriram  a  droga.  Quantos  filósofos,  quantos teólogos, quantos educadores tiveram a curiosidade de abrir esta Porta na muralha? A resposta  é:  "Praticamente  nenhum".  Em  um  mundo  onde  a  educação  é  transmitida principalmente  por  meio  da  palavra,  às  pessoas  de  grande  instrução  torna-se  quase impossível dar séria atenção a quaisquer outras coisas que não sejam palavras ou idéias. Há sempre dinheiro a gastar, teses a serem defendidas, douta e insensata pesquisa a se orientar para aquilo que, na opinião dos eruditos, é o problema fundamental. "Que é que induziu  quem  a  dizer  tal  coisa  e  em  tal  ocasião?"  Mesmo  nesta  era  da  tecnologia,  as humanidades   verbalistas   são   dignificadas.   Os   conhecimentos   objetivos   que   nos permitem  tomar  contato  direto  com  determinados  fatos  de  nossa  existência  são  quase que  completamente  desprezados.  Um  catálogo;  uma  bibliografia;  as  obras  completas, palavra  por  palavra,  de  um  poetastro  de  terceira  classe;  um  estupendo  índice  que represente  a  última  palavra  em  índices  —  enfim,  qualquer  projeto  de  proporções grandiosas  obterá  fatalmente  aprovação  e  apoio  financeiro.  Mas,  quando  se  trata  de querer  saber  como  cada  um de  nós,  nossos  filhos  e  netos,  poderemos  nos  tornar  mais perceptíveis, mais intensamente cônscios da realidade interior e exterior, mais acessíveis ao Espírito, menos aptos a adoecer vítimas de nossos próprios erros psicológicos e mais capazes  de  controlar  nosso  sistema  nervoso  autônomo  —  quando,  pois,  se  trata  de qualquer  forma  de  educação  objetiva  mais  importante  (e,  portanto,  mais  provável  de alcançar  aplicação  prática)  que  a  ginástica  sueca,  não  haverá  pessoa  respeitável,  em qualquer universidade  ou igreja de renome, que faça qualquer coisa em seu benefício. Os   verbalistas   desconfiam   dos   não-verba-listas;   os   racionalistas   temem   os   fatos concretos,  não  racionais;  os  intelectuais  acham que  "o  que  percebemos  pela  visão  (ou por   qualquer   outra   forma)   nos   é   estranho   e,   pois,   não   nos   deve   impressionar profundamente".  Além  do  mais,  a  educação,  no  campo  dos  conhecimentos  objetivos, não se adapta a nenhum dos esquemas existentes. Não é religião, neurologia, ginástica, educação  moral  e  cívica,  nem  tampouco  psicologia  experimental.  Assim  sendo,  esse assunto simplesmente não existe, para fins acadêmicos e eclesiásticos, e bem pode ser completamente ignorado ou então relegado, com um sorriso condescendente, àqueles a quem  os  fariseus  da  ortodoxia  verbalista  chamam  maníacos,  impostores,  charlatães  e desprezíveis amadores. 

"Sempre  achei"  —  escreveu  Blake  com  um  certo  amargor  —  "que  os  anjos possuem a vaidade de se considerarem os únicos sábios. E isso eles o fazem com uma insolência confiante que brota de um raciocínio sistemático." 

Raciocínio  sistemático  é  algo  sem  o  qual  nós,  seja  como  espécie  ou  como indivíduo,  não  podemos  passar.  Mas  creio  que  tampouco  poderemos  prescindir  da percepção  direta  —  e  quanto  menos  sistemática  melhor  —  dos  mundos  interior  e exterior  que  nos  serviram  de  berço,  para  que  possamos  preservar  a  sanidade  mental. Essa realidade objetiva possui um sentido infinito que ultrapassa toda a compreensão e, no   entanto,   permite   ser   direta   e,   de   certa   forma,   totalmente   percebida.   É   uma transcendência  característica de outra ordem que não a humana, embora nos possa ser presente   como   uma   imanência   palpável,   como   experiência   de   que   houvéssemos participado. Ser esclarecido é ser sempre cônscio da realidade plena em sua diversidade intrínseca — ter ciência disso, sem deixar de velar por sua sobrevivência como animal, de pensar e sentir como ser humano, de recorrer, sempre que necessário, ao raciocínio sistemático.  Nosso  objetivo  é  provar  que  sempre  estivemos  onde  deveríamos  estar. Infelizmente,  tornamos  a  missão  excessivamente  difícil  para  nós  mesmos  Mas,  nesse meio-tempo, surgiram "graças gratuitas" sob a forma de realizações parciais e fugazes. Sob um sistema de educação mais realístico, menos verbalista que o nosso, deveria ser permitido a cada Anjo (na acepção que Blake dava a essa palavra), à guisa de repouso sabático — e, se necessário, dever-se-ia incitá-lo ou mesmo compeli-lo —, realizar um passeio,  vez  por  outra,  valendo-se  de  Portas  químicas  na  muralha,  no  mundo  da experiência  transcendental.  Se  isso  os  apavorasse,  seria  lamentável,  mas  ainda  assim talvez lhes fosse salutar. E melhor ainda seria se ela lhes proporcionasse, por uns breves momentos, que haveriam de parecer eternos, uma radiosa inspiração. Mas, em ambos os casos, o Anjo haveria de perder um pouco da confiante insolência nascida do raciocínio sistemático e da certeza de haver lido todos os livros. 

Santo   Tomás   de   Aquino,   já   próximo   ao   fim   de   sua   vida,   conheceu   a Contemplação  Inspirada.  Daí  em  diante,  não  mais  prosseguiu  no  livro  que  iniciara. Comparado com isto, tudo mais que ele havia lido, e sobre o qual discutira e escrevera — Aristóteles e as Sentenças, as Questões, as Proposições, as magestosas Summas* —, valia tanto quanto o joio ou a palha. Para a maioria dos intelectuais, tal greve de braços cruzados  seria  desaconselhável  ou  mesmo  moralmente  errada.  Mas  o  Angélico  doutor havia praticado mais o raciocínio sistemático que uma dúzia de Anjos comuns reunidos, e já se achava próximo a seu fim. Conquistara o direito, nesses últimos meses de vida terrena, de trocar mera palha ou joio simbólico pelo pão da Verdade real e substancial. Anjos  de  categoria  inferior,  e  com  melhores  perspectivas  de  longevidade,  voltariam  à palha. Mas o homem que vem de cruzar de novo a Porta na muralha jamais será igual ao  que  partira  para  essa  viagem.  Será,  daí  por  diante,  mais  sábio,  embora  menos arraigado  em  suas  convicções,  mais  feliz,  ainda  que  menos  satisfeito  consigo  mesmo, mais  humilde  em  concordar  com  a  própria  ignorância,  embora  esteja  em  melhores condições para compreender a afinidade entre as palavras e as coisas, entre o raciocínio sistemático e o insondável mistério que ele procura, sempre em vão, compreender. 

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12 O professor   J.   S.   Slotkin,   em   sua   monografia   Menomini   peyotism   (O peiotismo entre os menomini), publicada em dezembro de 1952 nos Anais da American Philosophical  Society,  declara  que  "o  uso  costumeiro  do  peiote  não  parece  produzir qualquer  aumento  de  tolerância  ou  dependência.  Conheço  muitas  pessoas  que  são 
peiotistas há quarenta ou cinqüenta anos. A quantidade de peiote que usam depende da maior  ou  menor  solenidade  emprestada  à  ocasião;  via  de  regra,  não  aumentam  as doses  que  costumavam  tomar  vários  anos  antes.  Além  disso,  ocorrem  por  vezes intervalos de um mês ou mais entre ritos consecutivos, e eles passam todo esse tempo sem fazer uso do peiote e sem sentir qualquer ânsia por ele. Eu próprio, mesmo após uma  série  de  ritos  em  quatro  fins  de  semana  consecutivos,  nem  aumentei  a  dose  de peiote, nem senti qualquer desejo continuado por ele". Há, evidentemente, boas razões para  que  "o  peiote  jamais  tenha  sido  legalmente  declarado  um  narcótico  ou  tenha sofrido  a  proibição  de  seu  uso  pelo  governo  federal".  Não  obstante  isso,  "durante  a longa história dos contatos entre índios e brancos, as autoridades brancas procuraram, repetidas  vezes,  proscrever  seu  uso,  por  crerem  que  isso  violava  seus  costumes  de civilizados.  Mas  todas  essas  tentativas  foram  infrutíferas".  Em  rodapé,  o  dr.  Slotkin acrescenta  que  "é  espantoso  ouvir  as  histórias  fantásticas  dos  efeitos  do  peiote  e  da natureza  do  ritual,  contadas  pelas  autoridades  brancas  e  índias  católicas  na  reserva dos menomini.  Nenhuma delas jamais teve a menor experiência pessoal com a planta ou com a religião, embora algumas se arvorem em autoridade no assunto e sobre ele redijam relatórios oficiais". 

13 Erewhon, anagrama de nowhere ("lugar algum"), é o título abreviado de uma novela  fantástica de Samuel Butler, escrita em 1872, que descreve um pais cujo povo vira-se obrigado a destruir todas as máquinas para não ser por elas destruído. 

14 Summa  theologica  e  Summa  contra  gentiles,  de  Santo  Tomás  de  Aquino, sínteses do conhecimento humano da época. 




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