Escrito em 1954 por Aldous Huxley, As Portas da Percepção é o relato da experiência do escritor com a mescalina. A obra já foi chamada de "A Bíblia psicodélica" e foi escrita como resultado das experiências de Huxley com alucinógenos. O resultado são idéias e estudos que anda hoje são considerados revolucionários e "perigosos demais para as pessoas comuns".
O autor assume que a realidade é muito mais vasta do que o que é normalmente visto e sentido pelas pessoas. O cérebro humano filtra o universo de modo a não permitir a passagem de todas as impressões e imagens que existem efetivamente. Se isso acontecesse, o processamento de tal quantidade de informação seria algo entre o maravilhoso e o insuportável, podendo gerar místicos ou loucos depedendo do background em que a pessoa vive.
O livro trás ainda uma crítica pesada à religião contemporânea, e traduz as religiões estitucionalisadas como um obstáculo que mais afasta o religioso do sagrado do que o une as pessoa a este princípio transcedente. A obra culmina no desenvolvimento de uma filosofia sobre a formação de uma religião peiotista.
No original o texto não possui divisões por capítulos, a divisão aqui apresentada serve apenas para facilitar a leitura do volume. O título vem de uma famosa citação do poeta inglês, William Blake: "Se as portas da percepção estivessem limpas, tudo apareceria para o homem tal como é: infinito."
Indice:
- A Experiência Com a Mescalina
- A Maior Drugstore do Mundo
- O Jardim que Adão Viu Quando Abriu os Olhos
- O Mar Vermelho de Tráfego
- Conclusão - Comunhão com o Deus Vegetal
1. A Experiência Com a Mescalina
FOI NO ANO DE 1886 que o farmacologista alemão Ludwig Lewin publicou o primeiro estudo sistemático do cacto que, depois disso, haveria de receber seu nome. O Anhalonium lewinü era novo para a ciência, embora fosse, na verdade, um amigo desde tempos imemoriais para as religiões primitivas e para os índios do México e do Sudoeste dos Estados Unidos. Era até muito mais que um amigo. Segundo as palavras de um dos primeiros espanhóis a visitar o Novo Mundo, "eles comem uma raiz a que chamam de peiote e que é por eles venerada como a um deus".
O porquê de tal veneração evidenciou-se quando psicologistas eminentes, tais como Jaensch, Havelock Ellis e Weir Mitchell, começaram suas experiências com a mescalina — o princípio ativo do peiote. Não há dúvida de que eles as interromperam em um ponto muito aquém da idolatria, mas tudo nos leva a situar a mescalina em posição ímpar entre os demais alcalóides. Administrada em doses adequadas, ela modifica mais profundamente a qualidade da percepção que qualquer outra droga à disposição do farmacologista, a isso aliando o fato de ser menos tóxica que as demais.
A pesquisa sobre a mescalina tem sido realizada esporadicamente, desde os dias de Lewin e Havelock Ellis. Os químicos não se limitaram a isolar o alcalóide; conseguiram também realizar-lhe a síntese, com o que não mais ficaram à mercê das escassas e problemáticas coletas de um cacto do deserto. Os alienistas têm, eles mesmos, feito uso da mescalina, buscando assim conseguir uma melhor e mais direta compreensão dos processos mentais de seus pacientes. Infelizmente, por trabalharem baseados em um número muito reduzido de provas e dentro de uma faixa de condições por demais estreita, os psicologistas apenas observaram e registraram alguns dos mais impressionantes efeitos da mescalina. Os neurologistas e fisiologistas chegaram a algumas conclusões a respeito do mecanismo de sua ação sobre o sistema nervoso central. E ao menos um filósofo militante tomou o alcalóide, ante a luz que este poderia lançar sobre antigos e insolúveis enigmas, tais como o lugar da mente na natureza e a relação entre a inteligência e o consciente.
Assim estavam as coisas até que, há dois ou três anos, foi observado um fato novo[1], talvez de grande importância. Na verdade, havia muitas décadas que esse fato se apresentava ao vivo, diante de todos, mas, a despeito disso, ninguém se havia dele apercebido até que um jovem psiquiatra inglês, que atualmente trabalha no Canadá, se deu conta da grande semelhança de composição química existente entre a mescalina e a adrenalina. Pesquisas posteriores revelaram que o ácido lisérgico — um onírico extremamente poderoso, derivado da ergotina — apresenta afinidades com essas duas substâncias, em suas características bioquímicas. Veio em seguida a descoberta de que o adrenocromo, produto de decomposição da adrenalina, pode produzir muitos dos sintomas observados no inebriamento por mescalina. E é bem provável que o adrenocromo seja o fruto de uma decomposição realizada espontaneamente no corpo humano. Isto nos leva a concluir que cada um de nós é capaz de produzir uma substância química da qual, como sabemos, doses diminutas podem criar profundas alterações na percepção. Algumas dessas alterações são semelhantes às que acompanham essa praga tão característica do século XX que é a esquizofrenia. Será essa doença mental uma decorrência de um desequilíbrio químico: E estará o desequilíbrio químico, por seu turno, ligado a sofrimentos psíquicos que atuem sobre as glândulas supra-renais? Será arrojado e prematuro afirmá-lo. O máximo que podemos dizer é que isso constitui uma hipótese plausível. Entretanto, o mistério vem sendo sistematicamente desvendado; os detetives — bioquímicos, psiquiatras e psicologistas — acham-se em sua pista.
Em razão de uma série de circunstâncias — que para mim foram extremamente favoráveis — vi-me, na primavera de 1953, situado bem no meio de tal busca. Um desses pesquisadores tinha chegado à Califórnia, levado por suas investigações. A despeito dos setenta anos de pesquisas sobre a mescalina, o material psicológico de que se dispunha era ainda incrivelmente reduzido, e ele estava ansioso por ampliá-lo. Eu me atravessara em seu caminho e estava disposto — ou melhor, decidido — a servir de cobaia. E foi assim que, em uma radiosa manhã de maio, tomei quatro decigramas de mescalina, dissolvidos em meio copo d'água, e sentei-me para esperar pelos resultados.
Vivemos, agimos e reagimos uns com os outros; mas sempre, e sob quaisquer circunstâncias, existimos a sós. Os mártires penetram na arena de mãos dadas; mas são crucificados sozinhos. Abraçados, os amantes buscam desesperadamente fundir seus êxtases isolados em uma única autotranscendência; debalde. Por sua própria natureza, cada espírito, em sua prisão corpórea, está condenado a sofrer e gozar em solidão. Sensações, sentimentos, concepções, fantasias — tudo isso são coisas privadas e, a não ser por meio de símbolos, e indiretamente, não podem ser transmitidas. Podemos acumular informações sobre experiências, mas nunca as próprias experiências. Da família à nação, cada grupo humano é uma sociedade de universos insulares.
Muitos desses universos são suficientemente semelhantes, uns aos outros, para permitir entre eles uma compreensão por dedução, ou mesmo por mútua projeção de percepção. Assim, recordando nossos próprios infortúnios e humilhações podemos nos condoer de outras pessoas em circunstâncias análogas; somos até capazes de nos pormos em seu lugar (sempre, evidentemente, em sentido figurado). Mas em certos casos a ligação entre esses universos é incompleta, ou mesmo inexistente. A mente é o seu campo, porém os lugares ocupados pelo insano e pelo gênio são tão diferentes daqueles onde vivem o homem e a mulher comuns que há pouco ou nenhum ponto de contato na memória individual para servir de base à compreensão ou a ligações entre eles. Falam, mas não se entendem. As coisas e os fatos a que os símbolos se referem pertencem a reinos de experiências que se excluem mutuamente.
Contemplarmo-nos do mesmo modo pelo qual os outros nos vêem é uma das mais confortadoras dádivas. E não menos importante é o dom de vermos os outros tal como eles mesmos se encaram. Mas e se esses outros pertencerem a uma espécie diferente e habitarem um universo inteiramente estranho? Assim, como poderá o indivíduo, mentalmente são, sentir o que realmente sente o insano? Ou, na iminência de ser reencarnado na pessoa de um sonhador, um médium ou um gênio musical, como poderíamos algum dia visitar os mundos que para Blake, Swedenborg ou Johann Sebastian Bach eram seus lares? E como poderá alguém, que esteja nos limites extremos do ectomorfismo e da cerebrotonia, pôr-se no lugar de outrem que ocupa o limite oposto do endomorfismo e da viscerotonia ou (a não ser dentro de certas áreas restritas) compartilhar dos sentimentos de um terceiro que se situe no campo do mesomorfismo e da somatotonia? Para o behaviorísta inflexível, tais proposições — suponho eu — são desprovidas de sentido. Mas para aqueles que aceitam, do ponto de vista teórico, aquilo que, na prática, sabem ser verdade — isto é, que a experiência possui dois aspectos, um externo e o outro interno —, os problemas apresentados são reais e tanto mais sérios por serem, alguns, inteiramente insolúveis, e outros só poderem ser resolvidos em circunstâncias excepcionais e por métodos que não se acham ao alcance de qualquer um. É, pois, quase certo que jamais poderei saber o que sentem sir John Falstaff ou Joe Louis. Por outro lado, sempre me pareceu possível que, por meio do hipnotismo, do auto-hipnotismo, da meditação sistemática, ou ainda pela ação de uma droga apropriada, eu pudesse modificar de tal forma minha percepção normal que fosse capaz de compreender, por mim mesmo, a linguagem do visionário, do médium e até\ do místico.
Baseado no que já havia lido a respeito das experiências com a mescalina, eu me convencera antecipadamente de que a droga haveria de garantir minha admissão, ao menos por umas poucas horas, no tipo de mundo interior descrito por Blake e AE.[2] Mas o que eu esperava não aconteceu. Contava ficar, de olhos cerrados, a contemplar visões de corpos geométricos multicores, de formas arquitetônicas animadas, recobertas de gemas e fabulosamente belas, de paisagens repletas de figuras heróicas, de dramas simbólicos e perpetuamente apaixonantes, no limiar da revelação derradeira. Mas está claro que eu não levava em conta as idiossincrasias de minha formação mental, as realidades de meu temperamento, educação e hábitos.
Sou e, até onde minha memória alcança, sempre fui pouco dado a devaneios. As palavras, mesmo as mais evocativas, empregadas pelos poetas, não conseguem produzir imagens em minha mente. Não vêm ao meu encontro visões hipnagógicas no limiar do sono. Quando me lembro de algo, a memória não se me apresenta como um fato ou objeto vivido. Por um esforço da vontade, consigo evocar uma imagem não muito vivida do que aconteceu na tarde da véspera, de como era o Lungarno antes de as pontes terem sido destruídas ou da estrada de Bayswater quando os poucos ônibus eram verdes e pequeninos, puxados por velhos cavalos a uns seis quilômetros por hora. Mas essas imagens terão pouca substância, e de forma alguma poderão ter vida própria. Guardam, para os objetos reais, a mesma proporção que os fantasmas homéricos apresentam com relação aos homens de carne e osso que vão visitá-los nas sombras. Só quando tenho febre alta é que minhas imagens mentais adquirem vida independente. Para aqueles cuja imaginação é fértil, meu mundo interior terá de parecer curiosamente monótono, limitado e desinteressante. Este era o mundo — um pobre mundo, porém meu — que eu esperava ver transformado em algo inteiramente diferente de si mesmo.
A modificação que realmente ocorreu nesse mundo nada teve de revolucionária. Meia hora depois de ingerir a droga, comecei a perceber um lento bailado de luzes douradas. Pouco depois surgiram imponentes superfícies rubras que cresciam e se avolumavam a partir de brilhantes nódulos de energia a assumir continuamente as mais variadas formas. De outra feita, ao fechar os olhos, se me deparava um complexo de estruturas cinzentas, de dentro das quais brotavam, incessantemente, pálidas esferas azuladas que se iam materializando e, à medida que o faziam, deslizavam silenciosamente para cima e fugiam de cena. Mas em tempo algum apareceram faces ou formas de homens ou animais. Nada de paisagens, espaços abissais, mágico crescimento e metamorfose de edificações, nada que lembrasse, por remoto que fosse, um drama ou uma parábola. O outro mundo ao qual a mescalina me conduzira não era o mundo das visões; ele existia naquilo que eu podia ver com meus olhos abertos. A grande transformação se dava no reino dos fatos objetivos. O que tinha acontecido a meu universo subjetivo era coisa que, relativamente, pouco importava.
Eu ingerira minha poção às onze horas. Hora e meia mais tarde estava sentado em meu escritório, contemplando atentamente um pequeno vaso de vidro. Continha ele apenas três flores — uma rosa-de-portugal, inteiramente desabrochada, com sua rósea corola onde a base de cada pétala apresentava um matiz mais quente e brilhante; um grande cravo creme e arroxeado; e, arrogante em sua heráldica beleza, de um púrpura pálido, a flor-do-íris. Por mero acaso, o pequeno ramalhete violava todas as regras do bom gosto tradicional. Pela manhã, ao desjejum, ferira-me os olhos a vivida dissonância de suas cores. Mas tal já não era mais minha opinião. Não contemplava mais uma esquisita combinação de flores; via, agora, aquilo mesmo que Adão vira no dia de sua criação — o milagre do inteiro desabrochar da existência, em toda a sua nudez.
— Isso é agradável? — perguntou alguém. (Durante essa parte da experiência, todas as conversas foram gravadas, e foi-me assim possível refrescar a memória a respeito do que fora dito.)
— Nem agradável, nem desagradável — respondi. — Apenas existe.
Istigkeit — "existência" —, não era essa a palavra que Meister Eckhart gostava de usar? O Existir da filosofia platônica — com a diferença que Platão parecia ter cometido o enorme, o grotesco erro de separar Existir de tornar-se e de identificá-lo com a abstração matemática — a Idéia. Ele, pobre mortal, talvez jamais tivesse visto um ramalhete de flores a brilhar com sua própria luz interior, quase que estremecendo sob a tensão da importância do papel que lhes fora confiado; jamais deveria ter-se apercebido de que essa tão grande importância da rosa, do íris e do cravo residia, tão-somente, naquilo que eles representavam — uma efemeridade que, não obstante, significava vida eterna, um perpétuo perecer que era, ao mesmo tempo, puro Existir; um punhado de pormenores diminutos e sem par no qual, por algum indizível paradoxo, embora axiomático, encontrar-se-ia a divina fonte de toda a existência.
Continuei a observar as flores e, em sua luz vivida, eu parecia captar o equivalente qualitativo da respiração — mas de uma respiração sem retornos a um ponto de partida, sem refluxos periódicos, mas antes em um fluxo, repetido, da beleza para uma beleza mais sublime, de um significado profundo para outro ainda maior. Palavras tais como Graça e Transfiguração vieram-me à mente, e isto, sem dúvida, era o que, entre outras coisas, queriam elas significar. Meus olhos se encaminhavam da rosa para o cravo, e daquela incandescência de plumas para as suaves volutas de ametista animada, que era o íris. A Beatífica Visão, Sat Chit Ananda — Existência-Consciência- Beatitude —, pela primeira vez entendi, não em termos de palavras, não por insinuações rudimentares, vagamente, mas precisa e completamente, o que queriam significar essas sílabas prodigiosas. E lembrei-me, então, de uma passagem que lera em um dos ensaios de Suzuki: "Que é o Dharma-Corpóreo do Buda?". (O Dharma-Corpóreo do Buda é outro modo de se referir à Mente, à Peculiaridade, ao Vazio, à Divindade.) A pergunta foi feita, em um mosteiro zen, por ardente e perplexo noviço. E, com a vivaz insensatez de um dos Irmãos Marx, respondeu-lhe o superior: "A sebe ao fundo do jardim". "E poderia eu perguntar" — retrucou timidamente o noviço — "qual o homem que concebeu essa verdade?" A que Groucho, dando-lhe uma pancada nas costas com seu bastão, responde: "Um leão de cabelos de ouro!".
Quando li esse diálogo, achei-o pouco mais ou menos um amontoado de insensatez. Agora, porém, tudo está tão claro como o dia, tão evidente quanto o postulado de Euclides. Não há a menor dúvida de que o Dharma-Corpóreo do Buda seja a sebe do fim do jardim. Ao mesmo tempo, e com igual certeza, ele é estas flores, ele é qualquer coisa que desperte a atenção de meu ego (ou melhor, de minha bem-aventurada despersonalização, liberta por um momento de meu abraço asfixiante). Assim também os livros, que recobrem as , paredes de meu escritório: tais como as flores, eles também luziam, quando para eles olhei, com cores mais brilhantes, com uma importância mais profunda. Livros vermelhos de rubi; livros de esmeralda; livros de ágata, de água-marinha, de topázio; livros de lápis-lazúli de cor tão intensa, tão intrinsecamente importantes que pareciam a ponto de sair das estantes para melhor atrair minha atenção.
— Que me diz das relações espaciais? — perguntou o investigador enquanto eu olhava os livros.
Era difícil responder. Na verdade, a perspectiva se tornara bastante estranha e as paredes da sala já não mais pareciam encontrar-se em ângulos retos. Mas não eram esses os fatos realmente importantes. O que mais ressaltava era a constatação de que as relações espaciais tinham perdido muito do seu valor e de que minha mente tomava contato com o mundo exterior em termos de outras dimensões que não as de espaço. Em situações normais o olho se preocupa com problemas tais como Onde? — A que distância? — Como se situa em relação a tal coisa?. Durante a experiência com a mescalina, as perguntas tácitas a que a visão responde são de outra ordem. Lugar e distância deixam de ter muito interesse. A mente elabora a compreensão das coisas em termos de intensidade de existência, profundidade de importância, relações dentro de um determinado padrão. Eu olhava para os livros, mas não me preocupava, em absoluto, com suas posições no espaço. O que notava, o que se impunha por si mesmo a minha mente, era o fato de que todos eles brilhavam com uma luz viva e que, em alguns, o resplendor era mais intenso que em outros. Nesse instante, a posição e as três dimensões eram questões de somenos. Não, evidentemente, que a noção de espaço houvesse sido abolida. Quando me levantei e pus-me a andar, eu o fiz com toda a naturalidade, sem erros de apreciação sobre a posição dos objetos. O espaço ainda estava ali; mas havia perdido sua primazia. A mente se preocupava, mais do que tudo, não com medidas e lugares, e sim com a existência e o significado.
E, de par com essa indiferença pelo espaço, adquiri um descaso ainda maior pelo tempo.
— Parece haver bastante — foi tudo o que pude dizer quando o meu inquiridor me pediu que dissesse qual a noção que tinha dessa dimensão.
Bastante; mas pouco se me dava saber, exatamente, quanto. Poderia, está claro, olhar para meu relógio; mas ele, sabia-o eu, estava em outro universo. Essa minha experiência tinha sido, e ainda era, de duração indefinida, também podendo ser considerada um perpétuo presente, criado por um apocalipse em contínua transformação.
Dos livros, meu interlocutor desviou-me a atenção para o mobiliário. No centro da sala havia uma pequena mesa para máquina de escrever. Junto a ela, do lado oposto ao meu, estava uma cadeira de vime e, além dela, uma escrivaninha. As três peças formavam um intricado desenho de horizontais, verticais e oblíquas — desenho tanto mais interessante por não estar sendo interpretado em termos de suas relações de espaço. Mesa, cadeira e escrivaninha constituíam uma composição que se assemelhava a algo por Braque ou Juan Gris: uma natureza-morta nitidamente relacionada com o mundo objetivo, mas onde não havia profundidade, nada de realismo fotográfico. Eu examinava minha mobília, não como o utilitário, que tem de sentar-se em cadeiras, escrever em escrivaninhas e em mesas; não como o operador cinematográfico ou o investigador científico, mas como o esteta puro, cuja única preocupação se cinge às formas e suas relações dentro do campo visual ou dos limites de um quadro. Mas, à medida que prosseguia em minha investigação, essa análise puramente estética de cubista foi sendo substituída pelo que poderei apenas definir como sendo a visão sacramentai da realidade: voltei ao estado em que me encontrava quando contemplava as flores — a um mundo onde tudo brilhava, animado pela Luz Interior, e era infinito em sua importância. Assim, os pés daquela cadeira — quão miraculosa a sua tubularidade, quão sobrenatural seu suave polimento! Consumi vários minutos — ou foram vários séculos? — não apenas admirando aqueles pés de bambu, mas em verdade sendo-os, ou melhor, sentindo-me neles; ou, empregando linguagem talvez mais precisa (pois "eu" não estava em jogo, do mesmo modo como, até certo ponto, "eles" tampouco o estavam), sendo minha Despersonalização na Desindividualização que era a cadeira.
Refletindo sobre minha experiência, vejo-me levado a concordar com o eminente filósofo de Cambridge, dr. C. D. Broad, "que será bom considerarmos, muito mais seriamente do que até então temos feito, o tipo de teoria estabelecida por Bergson, com relação à memória e ao senso de percepção. Segundo ela, a função do cérebro e do sistema nervoso é, principalmente, eliminativa e não produtiva. Cada um de nós é capaz de lembrar-se, a qualquer momento, de tudo o que já ocorreu conosco, bem como de se aperceber de tudo o que está acontecendo em qualquer parte do universo. A função do cérebro e do sistema nervoso é proteger-nos, impedindo que sejamos esmagados e confundidos por essa massa de conhecimentos, na sua maioria inúteis e sem importância, eliminando muita coisa que, de outro modo, deveríamos perceber ou recordar constantemente, e deixando passar apenas aquelas poucas sensações selecionadas que, provavelmente, terão utilidade na prática".
De acordo com tal teoria, cada um de nós possui, em potencial, a Onisciência. Mas, visto que somos animais, o que mais nos preocupa é viver a todo o custo. Para tornar possível a sobrevivência biológica, a torrente da Onisciência tem de passar pelo estrangulamento da válvula redutora que são nosso cérebro e sistema nervoso. O que consegue coar-se através desse crivo é um minguado fio de conhecimento que nos auxilia a conservar a vida na superfície deste singular planeta. Para formular e exprimir o conteúdo dessa sabedoria limitada, o homem inventou, e aperfeiçoa incessantemente, esses sistemas de símbolos com suas filosofias implícitas a que chamamos idiomas. Cada um de nós é, a um só tempo, beneficiário e vítima da tradição lingüística dentro da qual nasceu — beneficiário, porque a língua nos permite o acesso aos conhecimentos acumulados oriundos da experiência de outras pessoas; vítimas, porque isso nos leva a crer que esse saber limitado é a única sabedoria que está a nosso alcance; e isso subverte nosso senso da realidade, fazendo com que encaremos essa noção como a expressão da verdade e nossas palavras como fatos reais. Aquilo que, na terminologia religiosa, recebe o nome de "este mundo" é apenas o universo do saber reduzido, expresso e como que petrificado pela limitação dos idiomas. Os vários "outros mundos" com os quais os seres humanos entram esporadicamente em contato não passam, na verdade, de outros tantos elementos componentes da ampla sabedoria inerente à Onisciência. A maioria das pessoas, durante a maior parte do tempo, só toma conhecimento daquilo que passa através da válvula de redução e que é considerado genuinamente real pelo idioma de cada um. No entanto, certas pessoas parecem ter nascido com uma espécie de desvio que invalida essa válvula redutora. Em outras, o desvio pode surgir em caráter temporário, seja espontaneamente, seja como resultado de "exercícios espirituais" voluntários, do hipnotismo ou da ingestão de drogas. Mas o fluxo de sensações que percorre esse desvio, seja ele permanente ou temporário, não é suficiente para que alguém se aperceba "de tudo o que esteja ocorrendo em qualquer lugar do universo" (uma vez que o desvio não destrói a válvula de redução, que ainda impede que se escoe por ela toda a torrente da Onisciência), embora possibilite a passagem de algo mais — e sobretudo diferente — do que aquelas sensações utilitárias, cuidadosamente selecionadas, que a estreiteza de nossas mentes considera uma imagem completa (ou, no mínimo, suficiente) da realidade.
O cérebro é dotado de um certo número de sistemas enzimáticos que servem para coordenar seu funcionamento. Algumas dessas enzimas visam a regular o fluxo de glicose destinado a alimentar as células cerebrais. A mescalina, inibindo a produção dessas enzimas, diminui a quantidade de glicose à disposição de um órgão que tem uma fome constante de açúcar. E o que acontece quando o metabolismo do açúcar no cérebro é reduzido pela mescalina? O número de casos observados é diminuto e, pois, ainda não nos é possível apresentar uma resposta conclusiva. Mas o que tem acontecido à maioria daqueles que tomaram o alcalóide, sob controle, pode ser assim resumido:
1. A capacidade de lembrar-se e de raciocinar corretamente não sofre redução perceptível. (Ouvindo os registros de minha conversação, quando sob o efeito da droga, nada me leva a concluir que estivesse mais estulto do que sou sob condições normais.)
2. As impressões visuais tornam-se grandemente intensificadas e o olho recupera um pouco da inocente percepção da infância, quando o senso não se achava direta e automaticamente subordinado à concepção. O interesse pelo espaço diminui e a importância do tempo cai quase a zero.
3. Embora o intelecto nada sofra e a percepção seja grandemente aumentada, a vontade experimenta uma grande transformação para pior. O indivíduo que ingere mescalina não vê razão para fazer seja o que for, e considera profundamente injustificável a maioria das causas que, em circunstâncias normais, seriam suficientes para motivá-lo e fazê-lo agir. Elas não o preocuparão, pela simples razão de ter ele melhores coisas em que pensar.
4. Essas melhores coisas podem ser experimentadas (tal qual se deu comigo) lá fora, aqui dentro ou em ambos os mundos — o interior e o exterior, simultânea ou sucessivamente. Que elas são melhores, isso parece axiomático a quem quer que tome mescalina, desde que possua um fígado são e uma mente isenta de angústias.
Esses efeitos da mescalina constituem o tipo de reação que se poderia esperar de uma droga com o poder de reduzir a eficiência da válvula redutora que é o cérebro. Quando esse órgão é atingido pela carência de açúcar, o subnutrido ego se enfraquece, já não mais se pode permitir empreender suas tarefas rotineiras e perde todo o interesse por essas relações de tempo e espaço que possuem tão grande valor para um organismo preocupado com a vida neste mundo. Assim que a Onisciência vence a barreira daquela válvula, começam a ocorrer todas as espécies de fatos desprovidos de utilidade biológica. Em certos casos, poderão dar-se percepções extra-sensoriais. Outras pessoas podem descobrir um mundo de visionária beleza. Ainda outras têm a revelação da glória, do infinito valor e da significação da existência primeva, do fato objetivo e não conceituado. No estágio final da despersonalização há uma "obscura noção" de que Tudo está em todas as coisas — de que Tudo é, em verdade, cada coisa. Isso é, no meu entender, o máximo a que uma mente finita pode alcançar em "aperceber-se de tudo o que está acontecendo em qualquer parte do universo".
A esse respeito, quão significativa é a enorme ampliação da percepção das cores sob o efeito da mescalina! Para certos animais, a capacidade de distinguir determinados matizes possui grande importância biológica. Mas, além dos limites de seu espectro utilitário, a maior parte dos seres vivos apresenta completa insensibilidade às cores. Assim as abelhas, que consomem quase todo o seu tempo "desflorando as frescas virgens da primavera", só conseguem distinguir umas poucas cores, conforme Von Frisch o demonstrou. A grande percepção às cores de que o olho humano é capaz é um luxo biológico — inestimavelmente precioso para nós, como seres intelectuais e espirituais, mas desnecessário à nossa sobrevivência como animais. A julgar pelos adjetivos que Homero lhes pôs nas bocas, os heróis da Guerra de Tróia mal ultrapassavam as abelhas em sua capacidade para distinguir cores. Ao menos sob esse aspecto, o progresso da humanidade tem sido prodigioso.
A mescalina aviva consideravelmente a percepção de todas as cores e torna o paciente apto a distinguir as mais sutis diferenças de matiz que, sob condições normais, ser-lhe-iam totalmente imperceptíveis. Poder-se-ia dizer que, para a Onisciência, os chamados caracteres secundários das coisas seriam os principais. Contrariamente a Locke, ela consideraria as cores dos objetos como mais importantes e, pois, merecedoras de maior atenção que suas massas, posições e dimensões. Tal como ocorre com os consumidores de mescalina, muitos místicos percebem cores de uma intensidade preternatural, não só em seu mundo interior como também no das coisas objetivas que os rodeiam. Fato idêntico ocorre com os indivíduos suscetíveis a ou que sofrem de psicoses. Há certos médiuns para os quais as revelações que se manifestam, por breves períodos, nos indivíduos que ingerem mescalina são uma experiência diária, de todas as horas, por longos espaços de tempo.
Podemos agora, após esta longa mas indispensável excursão ao reino da teoria, voltar àquela maravilhosa realidade — quatro pés de cadeira, de bambu, no meio de uma sala. Quais narcisos silvestres de Wordsworth, eles me proporcionaram toda sorte de riquezas — a inestimável dádiva de uma concepção nova e direta da verdadeira Natureza das Coisas, bem como um tesouro mais modesto, sob a forma de compreensão, particularmente no campo das artes.
O porquê de tal veneração evidenciou-se quando psicologistas eminentes, tais como Jaensch, Havelock Ellis e Weir Mitchell, começaram suas experiências com a mescalina — o princípio ativo do peiote. Não há dúvida de que eles as interromperam em um ponto muito aquém da idolatria, mas tudo nos leva a situar a mescalina em posição ímpar entre os demais alcalóides. Administrada em doses adequadas, ela modifica mais profundamente a qualidade da percepção que qualquer outra droga à disposição do farmacologista, a isso aliando o fato de ser menos tóxica que as demais.
A pesquisa sobre a mescalina tem sido realizada esporadicamente, desde os dias de Lewin e Havelock Ellis. Os químicos não se limitaram a isolar o alcalóide; conseguiram também realizar-lhe a síntese, com o que não mais ficaram à mercê das escassas e problemáticas coletas de um cacto do deserto. Os alienistas têm, eles mesmos, feito uso da mescalina, buscando assim conseguir uma melhor e mais direta compreensão dos processos mentais de seus pacientes. Infelizmente, por trabalharem baseados em um número muito reduzido de provas e dentro de uma faixa de condições por demais estreita, os psicologistas apenas observaram e registraram alguns dos mais impressionantes efeitos da mescalina. Os neurologistas e fisiologistas chegaram a algumas conclusões a respeito do mecanismo de sua ação sobre o sistema nervoso central. E ao menos um filósofo militante tomou o alcalóide, ante a luz que este poderia lançar sobre antigos e insolúveis enigmas, tais como o lugar da mente na natureza e a relação entre a inteligência e o consciente.
Assim estavam as coisas até que, há dois ou três anos, foi observado um fato novo[1], talvez de grande importância. Na verdade, havia muitas décadas que esse fato se apresentava ao vivo, diante de todos, mas, a despeito disso, ninguém se havia dele apercebido até que um jovem psiquiatra inglês, que atualmente trabalha no Canadá, se deu conta da grande semelhança de composição química existente entre a mescalina e a adrenalina. Pesquisas posteriores revelaram que o ácido lisérgico — um onírico extremamente poderoso, derivado da ergotina — apresenta afinidades com essas duas substâncias, em suas características bioquímicas. Veio em seguida a descoberta de que o adrenocromo, produto de decomposição da adrenalina, pode produzir muitos dos sintomas observados no inebriamento por mescalina. E é bem provável que o adrenocromo seja o fruto de uma decomposição realizada espontaneamente no corpo humano. Isto nos leva a concluir que cada um de nós é capaz de produzir uma substância química da qual, como sabemos, doses diminutas podem criar profundas alterações na percepção. Algumas dessas alterações são semelhantes às que acompanham essa praga tão característica do século XX que é a esquizofrenia. Será essa doença mental uma decorrência de um desequilíbrio químico: E estará o desequilíbrio químico, por seu turno, ligado a sofrimentos psíquicos que atuem sobre as glândulas supra-renais? Será arrojado e prematuro afirmá-lo. O máximo que podemos dizer é que isso constitui uma hipótese plausível. Entretanto, o mistério vem sendo sistematicamente desvendado; os detetives — bioquímicos, psiquiatras e psicologistas — acham-se em sua pista.
Em razão de uma série de circunstâncias — que para mim foram extremamente favoráveis — vi-me, na primavera de 1953, situado bem no meio de tal busca. Um desses pesquisadores tinha chegado à Califórnia, levado por suas investigações. A despeito dos setenta anos de pesquisas sobre a mescalina, o material psicológico de que se dispunha era ainda incrivelmente reduzido, e ele estava ansioso por ampliá-lo. Eu me atravessara em seu caminho e estava disposto — ou melhor, decidido — a servir de cobaia. E foi assim que, em uma radiosa manhã de maio, tomei quatro decigramas de mescalina, dissolvidos em meio copo d'água, e sentei-me para esperar pelos resultados.
Vivemos, agimos e reagimos uns com os outros; mas sempre, e sob quaisquer circunstâncias, existimos a sós. Os mártires penetram na arena de mãos dadas; mas são crucificados sozinhos. Abraçados, os amantes buscam desesperadamente fundir seus êxtases isolados em uma única autotranscendência; debalde. Por sua própria natureza, cada espírito, em sua prisão corpórea, está condenado a sofrer e gozar em solidão. Sensações, sentimentos, concepções, fantasias — tudo isso são coisas privadas e, a não ser por meio de símbolos, e indiretamente, não podem ser transmitidas. Podemos acumular informações sobre experiências, mas nunca as próprias experiências. Da família à nação, cada grupo humano é uma sociedade de universos insulares.
Muitos desses universos são suficientemente semelhantes, uns aos outros, para permitir entre eles uma compreensão por dedução, ou mesmo por mútua projeção de percepção. Assim, recordando nossos próprios infortúnios e humilhações podemos nos condoer de outras pessoas em circunstâncias análogas; somos até capazes de nos pormos em seu lugar (sempre, evidentemente, em sentido figurado). Mas em certos casos a ligação entre esses universos é incompleta, ou mesmo inexistente. A mente é o seu campo, porém os lugares ocupados pelo insano e pelo gênio são tão diferentes daqueles onde vivem o homem e a mulher comuns que há pouco ou nenhum ponto de contato na memória individual para servir de base à compreensão ou a ligações entre eles. Falam, mas não se entendem. As coisas e os fatos a que os símbolos se referem pertencem a reinos de experiências que se excluem mutuamente.
Contemplarmo-nos do mesmo modo pelo qual os outros nos vêem é uma das mais confortadoras dádivas. E não menos importante é o dom de vermos os outros tal como eles mesmos se encaram. Mas e se esses outros pertencerem a uma espécie diferente e habitarem um universo inteiramente estranho? Assim, como poderá o indivíduo, mentalmente são, sentir o que realmente sente o insano? Ou, na iminência de ser reencarnado na pessoa de um sonhador, um médium ou um gênio musical, como poderíamos algum dia visitar os mundos que para Blake, Swedenborg ou Johann Sebastian Bach eram seus lares? E como poderá alguém, que esteja nos limites extremos do ectomorfismo e da cerebrotonia, pôr-se no lugar de outrem que ocupa o limite oposto do endomorfismo e da viscerotonia ou (a não ser dentro de certas áreas restritas) compartilhar dos sentimentos de um terceiro que se situe no campo do mesomorfismo e da somatotonia? Para o behaviorísta inflexível, tais proposições — suponho eu — são desprovidas de sentido. Mas para aqueles que aceitam, do ponto de vista teórico, aquilo que, na prática, sabem ser verdade — isto é, que a experiência possui dois aspectos, um externo e o outro interno —, os problemas apresentados são reais e tanto mais sérios por serem, alguns, inteiramente insolúveis, e outros só poderem ser resolvidos em circunstâncias excepcionais e por métodos que não se acham ao alcance de qualquer um. É, pois, quase certo que jamais poderei saber o que sentem sir John Falstaff ou Joe Louis. Por outro lado, sempre me pareceu possível que, por meio do hipnotismo, do auto-hipnotismo, da meditação sistemática, ou ainda pela ação de uma droga apropriada, eu pudesse modificar de tal forma minha percepção normal que fosse capaz de compreender, por mim mesmo, a linguagem do visionário, do médium e até\ do místico.
Baseado no que já havia lido a respeito das experiências com a mescalina, eu me convencera antecipadamente de que a droga haveria de garantir minha admissão, ao menos por umas poucas horas, no tipo de mundo interior descrito por Blake e AE.[2] Mas o que eu esperava não aconteceu. Contava ficar, de olhos cerrados, a contemplar visões de corpos geométricos multicores, de formas arquitetônicas animadas, recobertas de gemas e fabulosamente belas, de paisagens repletas de figuras heróicas, de dramas simbólicos e perpetuamente apaixonantes, no limiar da revelação derradeira. Mas está claro que eu não levava em conta as idiossincrasias de minha formação mental, as realidades de meu temperamento, educação e hábitos.
Sou e, até onde minha memória alcança, sempre fui pouco dado a devaneios. As palavras, mesmo as mais evocativas, empregadas pelos poetas, não conseguem produzir imagens em minha mente. Não vêm ao meu encontro visões hipnagógicas no limiar do sono. Quando me lembro de algo, a memória não se me apresenta como um fato ou objeto vivido. Por um esforço da vontade, consigo evocar uma imagem não muito vivida do que aconteceu na tarde da véspera, de como era o Lungarno antes de as pontes terem sido destruídas ou da estrada de Bayswater quando os poucos ônibus eram verdes e pequeninos, puxados por velhos cavalos a uns seis quilômetros por hora. Mas essas imagens terão pouca substância, e de forma alguma poderão ter vida própria. Guardam, para os objetos reais, a mesma proporção que os fantasmas homéricos apresentam com relação aos homens de carne e osso que vão visitá-los nas sombras. Só quando tenho febre alta é que minhas imagens mentais adquirem vida independente. Para aqueles cuja imaginação é fértil, meu mundo interior terá de parecer curiosamente monótono, limitado e desinteressante. Este era o mundo — um pobre mundo, porém meu — que eu esperava ver transformado em algo inteiramente diferente de si mesmo.
A modificação que realmente ocorreu nesse mundo nada teve de revolucionária. Meia hora depois de ingerir a droga, comecei a perceber um lento bailado de luzes douradas. Pouco depois surgiram imponentes superfícies rubras que cresciam e se avolumavam a partir de brilhantes nódulos de energia a assumir continuamente as mais variadas formas. De outra feita, ao fechar os olhos, se me deparava um complexo de estruturas cinzentas, de dentro das quais brotavam, incessantemente, pálidas esferas azuladas que se iam materializando e, à medida que o faziam, deslizavam silenciosamente para cima e fugiam de cena. Mas em tempo algum apareceram faces ou formas de homens ou animais. Nada de paisagens, espaços abissais, mágico crescimento e metamorfose de edificações, nada que lembrasse, por remoto que fosse, um drama ou uma parábola. O outro mundo ao qual a mescalina me conduzira não era o mundo das visões; ele existia naquilo que eu podia ver com meus olhos abertos. A grande transformação se dava no reino dos fatos objetivos. O que tinha acontecido a meu universo subjetivo era coisa que, relativamente, pouco importava.
Eu ingerira minha poção às onze horas. Hora e meia mais tarde estava sentado em meu escritório, contemplando atentamente um pequeno vaso de vidro. Continha ele apenas três flores — uma rosa-de-portugal, inteiramente desabrochada, com sua rósea corola onde a base de cada pétala apresentava um matiz mais quente e brilhante; um grande cravo creme e arroxeado; e, arrogante em sua heráldica beleza, de um púrpura pálido, a flor-do-íris. Por mero acaso, o pequeno ramalhete violava todas as regras do bom gosto tradicional. Pela manhã, ao desjejum, ferira-me os olhos a vivida dissonância de suas cores. Mas tal já não era mais minha opinião. Não contemplava mais uma esquisita combinação de flores; via, agora, aquilo mesmo que Adão vira no dia de sua criação — o milagre do inteiro desabrochar da existência, em toda a sua nudez.
— Isso é agradável? — perguntou alguém. (Durante essa parte da experiência, todas as conversas foram gravadas, e foi-me assim possível refrescar a memória a respeito do que fora dito.)
— Nem agradável, nem desagradável — respondi. — Apenas existe.
Istigkeit — "existência" —, não era essa a palavra que Meister Eckhart gostava de usar? O Existir da filosofia platônica — com a diferença que Platão parecia ter cometido o enorme, o grotesco erro de separar Existir de tornar-se e de identificá-lo com a abstração matemática — a Idéia. Ele, pobre mortal, talvez jamais tivesse visto um ramalhete de flores a brilhar com sua própria luz interior, quase que estremecendo sob a tensão da importância do papel que lhes fora confiado; jamais deveria ter-se apercebido de que essa tão grande importância da rosa, do íris e do cravo residia, tão-somente, naquilo que eles representavam — uma efemeridade que, não obstante, significava vida eterna, um perpétuo perecer que era, ao mesmo tempo, puro Existir; um punhado de pormenores diminutos e sem par no qual, por algum indizível paradoxo, embora axiomático, encontrar-se-ia a divina fonte de toda a existência.
Continuei a observar as flores e, em sua luz vivida, eu parecia captar o equivalente qualitativo da respiração — mas de uma respiração sem retornos a um ponto de partida, sem refluxos periódicos, mas antes em um fluxo, repetido, da beleza para uma beleza mais sublime, de um significado profundo para outro ainda maior. Palavras tais como Graça e Transfiguração vieram-me à mente, e isto, sem dúvida, era o que, entre outras coisas, queriam elas significar. Meus olhos se encaminhavam da rosa para o cravo, e daquela incandescência de plumas para as suaves volutas de ametista animada, que era o íris. A Beatífica Visão, Sat Chit Ananda — Existência-Consciência- Beatitude —, pela primeira vez entendi, não em termos de palavras, não por insinuações rudimentares, vagamente, mas precisa e completamente, o que queriam significar essas sílabas prodigiosas. E lembrei-me, então, de uma passagem que lera em um dos ensaios de Suzuki: "Que é o Dharma-Corpóreo do Buda?". (O Dharma-Corpóreo do Buda é outro modo de se referir à Mente, à Peculiaridade, ao Vazio, à Divindade.) A pergunta foi feita, em um mosteiro zen, por ardente e perplexo noviço. E, com a vivaz insensatez de um dos Irmãos Marx, respondeu-lhe o superior: "A sebe ao fundo do jardim". "E poderia eu perguntar" — retrucou timidamente o noviço — "qual o homem que concebeu essa verdade?" A que Groucho, dando-lhe uma pancada nas costas com seu bastão, responde: "Um leão de cabelos de ouro!".
Quando li esse diálogo, achei-o pouco mais ou menos um amontoado de insensatez. Agora, porém, tudo está tão claro como o dia, tão evidente quanto o postulado de Euclides. Não há a menor dúvida de que o Dharma-Corpóreo do Buda seja a sebe do fim do jardim. Ao mesmo tempo, e com igual certeza, ele é estas flores, ele é qualquer coisa que desperte a atenção de meu ego (ou melhor, de minha bem-aventurada despersonalização, liberta por um momento de meu abraço asfixiante). Assim também os livros, que recobrem as , paredes de meu escritório: tais como as flores, eles também luziam, quando para eles olhei, com cores mais brilhantes, com uma importância mais profunda. Livros vermelhos de rubi; livros de esmeralda; livros de ágata, de água-marinha, de topázio; livros de lápis-lazúli de cor tão intensa, tão intrinsecamente importantes que pareciam a ponto de sair das estantes para melhor atrair minha atenção.
— Que me diz das relações espaciais? — perguntou o investigador enquanto eu olhava os livros.
Era difícil responder. Na verdade, a perspectiva se tornara bastante estranha e as paredes da sala já não mais pareciam encontrar-se em ângulos retos. Mas não eram esses os fatos realmente importantes. O que mais ressaltava era a constatação de que as relações espaciais tinham perdido muito do seu valor e de que minha mente tomava contato com o mundo exterior em termos de outras dimensões que não as de espaço. Em situações normais o olho se preocupa com problemas tais como Onde? — A que distância? — Como se situa em relação a tal coisa?. Durante a experiência com a mescalina, as perguntas tácitas a que a visão responde são de outra ordem. Lugar e distância deixam de ter muito interesse. A mente elabora a compreensão das coisas em termos de intensidade de existência, profundidade de importância, relações dentro de um determinado padrão. Eu olhava para os livros, mas não me preocupava, em absoluto, com suas posições no espaço. O que notava, o que se impunha por si mesmo a minha mente, era o fato de que todos eles brilhavam com uma luz viva e que, em alguns, o resplendor era mais intenso que em outros. Nesse instante, a posição e as três dimensões eram questões de somenos. Não, evidentemente, que a noção de espaço houvesse sido abolida. Quando me levantei e pus-me a andar, eu o fiz com toda a naturalidade, sem erros de apreciação sobre a posição dos objetos. O espaço ainda estava ali; mas havia perdido sua primazia. A mente se preocupava, mais do que tudo, não com medidas e lugares, e sim com a existência e o significado.
E, de par com essa indiferença pelo espaço, adquiri um descaso ainda maior pelo tempo.
— Parece haver bastante — foi tudo o que pude dizer quando o meu inquiridor me pediu que dissesse qual a noção que tinha dessa dimensão.
Bastante; mas pouco se me dava saber, exatamente, quanto. Poderia, está claro, olhar para meu relógio; mas ele, sabia-o eu, estava em outro universo. Essa minha experiência tinha sido, e ainda era, de duração indefinida, também podendo ser considerada um perpétuo presente, criado por um apocalipse em contínua transformação.
Dos livros, meu interlocutor desviou-me a atenção para o mobiliário. No centro da sala havia uma pequena mesa para máquina de escrever. Junto a ela, do lado oposto ao meu, estava uma cadeira de vime e, além dela, uma escrivaninha. As três peças formavam um intricado desenho de horizontais, verticais e oblíquas — desenho tanto mais interessante por não estar sendo interpretado em termos de suas relações de espaço. Mesa, cadeira e escrivaninha constituíam uma composição que se assemelhava a algo por Braque ou Juan Gris: uma natureza-morta nitidamente relacionada com o mundo objetivo, mas onde não havia profundidade, nada de realismo fotográfico. Eu examinava minha mobília, não como o utilitário, que tem de sentar-se em cadeiras, escrever em escrivaninhas e em mesas; não como o operador cinematográfico ou o investigador científico, mas como o esteta puro, cuja única preocupação se cinge às formas e suas relações dentro do campo visual ou dos limites de um quadro. Mas, à medida que prosseguia em minha investigação, essa análise puramente estética de cubista foi sendo substituída pelo que poderei apenas definir como sendo a visão sacramentai da realidade: voltei ao estado em que me encontrava quando contemplava as flores — a um mundo onde tudo brilhava, animado pela Luz Interior, e era infinito em sua importância. Assim, os pés daquela cadeira — quão miraculosa a sua tubularidade, quão sobrenatural seu suave polimento! Consumi vários minutos — ou foram vários séculos? — não apenas admirando aqueles pés de bambu, mas em verdade sendo-os, ou melhor, sentindo-me neles; ou, empregando linguagem talvez mais precisa (pois "eu" não estava em jogo, do mesmo modo como, até certo ponto, "eles" tampouco o estavam), sendo minha Despersonalização na Desindividualização que era a cadeira.
Refletindo sobre minha experiência, vejo-me levado a concordar com o eminente filósofo de Cambridge, dr. C. D. Broad, "que será bom considerarmos, muito mais seriamente do que até então temos feito, o tipo de teoria estabelecida por Bergson, com relação à memória e ao senso de percepção. Segundo ela, a função do cérebro e do sistema nervoso é, principalmente, eliminativa e não produtiva. Cada um de nós é capaz de lembrar-se, a qualquer momento, de tudo o que já ocorreu conosco, bem como de se aperceber de tudo o que está acontecendo em qualquer parte do universo. A função do cérebro e do sistema nervoso é proteger-nos, impedindo que sejamos esmagados e confundidos por essa massa de conhecimentos, na sua maioria inúteis e sem importância, eliminando muita coisa que, de outro modo, deveríamos perceber ou recordar constantemente, e deixando passar apenas aquelas poucas sensações selecionadas que, provavelmente, terão utilidade na prática".
De acordo com tal teoria, cada um de nós possui, em potencial, a Onisciência. Mas, visto que somos animais, o que mais nos preocupa é viver a todo o custo. Para tornar possível a sobrevivência biológica, a torrente da Onisciência tem de passar pelo estrangulamento da válvula redutora que são nosso cérebro e sistema nervoso. O que consegue coar-se através desse crivo é um minguado fio de conhecimento que nos auxilia a conservar a vida na superfície deste singular planeta. Para formular e exprimir o conteúdo dessa sabedoria limitada, o homem inventou, e aperfeiçoa incessantemente, esses sistemas de símbolos com suas filosofias implícitas a que chamamos idiomas. Cada um de nós é, a um só tempo, beneficiário e vítima da tradição lingüística dentro da qual nasceu — beneficiário, porque a língua nos permite o acesso aos conhecimentos acumulados oriundos da experiência de outras pessoas; vítimas, porque isso nos leva a crer que esse saber limitado é a única sabedoria que está a nosso alcance; e isso subverte nosso senso da realidade, fazendo com que encaremos essa noção como a expressão da verdade e nossas palavras como fatos reais. Aquilo que, na terminologia religiosa, recebe o nome de "este mundo" é apenas o universo do saber reduzido, expresso e como que petrificado pela limitação dos idiomas. Os vários "outros mundos" com os quais os seres humanos entram esporadicamente em contato não passam, na verdade, de outros tantos elementos componentes da ampla sabedoria inerente à Onisciência. A maioria das pessoas, durante a maior parte do tempo, só toma conhecimento daquilo que passa através da válvula de redução e que é considerado genuinamente real pelo idioma de cada um. No entanto, certas pessoas parecem ter nascido com uma espécie de desvio que invalida essa válvula redutora. Em outras, o desvio pode surgir em caráter temporário, seja espontaneamente, seja como resultado de "exercícios espirituais" voluntários, do hipnotismo ou da ingestão de drogas. Mas o fluxo de sensações que percorre esse desvio, seja ele permanente ou temporário, não é suficiente para que alguém se aperceba "de tudo o que esteja ocorrendo em qualquer lugar do universo" (uma vez que o desvio não destrói a válvula de redução, que ainda impede que se escoe por ela toda a torrente da Onisciência), embora possibilite a passagem de algo mais — e sobretudo diferente — do que aquelas sensações utilitárias, cuidadosamente selecionadas, que a estreiteza de nossas mentes considera uma imagem completa (ou, no mínimo, suficiente) da realidade.
O cérebro é dotado de um certo número de sistemas enzimáticos que servem para coordenar seu funcionamento. Algumas dessas enzimas visam a regular o fluxo de glicose destinado a alimentar as células cerebrais. A mescalina, inibindo a produção dessas enzimas, diminui a quantidade de glicose à disposição de um órgão que tem uma fome constante de açúcar. E o que acontece quando o metabolismo do açúcar no cérebro é reduzido pela mescalina? O número de casos observados é diminuto e, pois, ainda não nos é possível apresentar uma resposta conclusiva. Mas o que tem acontecido à maioria daqueles que tomaram o alcalóide, sob controle, pode ser assim resumido:
1. A capacidade de lembrar-se e de raciocinar corretamente não sofre redução perceptível. (Ouvindo os registros de minha conversação, quando sob o efeito da droga, nada me leva a concluir que estivesse mais estulto do que sou sob condições normais.)
2. As impressões visuais tornam-se grandemente intensificadas e o olho recupera um pouco da inocente percepção da infância, quando o senso não se achava direta e automaticamente subordinado à concepção. O interesse pelo espaço diminui e a importância do tempo cai quase a zero.
3. Embora o intelecto nada sofra e a percepção seja grandemente aumentada, a vontade experimenta uma grande transformação para pior. O indivíduo que ingere mescalina não vê razão para fazer seja o que for, e considera profundamente injustificável a maioria das causas que, em circunstâncias normais, seriam suficientes para motivá-lo e fazê-lo agir. Elas não o preocuparão, pela simples razão de ter ele melhores coisas em que pensar.
4. Essas melhores coisas podem ser experimentadas (tal qual se deu comigo) lá fora, aqui dentro ou em ambos os mundos — o interior e o exterior, simultânea ou sucessivamente. Que elas são melhores, isso parece axiomático a quem quer que tome mescalina, desde que possua um fígado são e uma mente isenta de angústias.
Esses efeitos da mescalina constituem o tipo de reação que se poderia esperar de uma droga com o poder de reduzir a eficiência da válvula redutora que é o cérebro. Quando esse órgão é atingido pela carência de açúcar, o subnutrido ego se enfraquece, já não mais se pode permitir empreender suas tarefas rotineiras e perde todo o interesse por essas relações de tempo e espaço que possuem tão grande valor para um organismo preocupado com a vida neste mundo. Assim que a Onisciência vence a barreira daquela válvula, começam a ocorrer todas as espécies de fatos desprovidos de utilidade biológica. Em certos casos, poderão dar-se percepções extra-sensoriais. Outras pessoas podem descobrir um mundo de visionária beleza. Ainda outras têm a revelação da glória, do infinito valor e da significação da existência primeva, do fato objetivo e não conceituado. No estágio final da despersonalização há uma "obscura noção" de que Tudo está em todas as coisas — de que Tudo é, em verdade, cada coisa. Isso é, no meu entender, o máximo a que uma mente finita pode alcançar em "aperceber-se de tudo o que está acontecendo em qualquer parte do universo".
A esse respeito, quão significativa é a enorme ampliação da percepção das cores sob o efeito da mescalina! Para certos animais, a capacidade de distinguir determinados matizes possui grande importância biológica. Mas, além dos limites de seu espectro utilitário, a maior parte dos seres vivos apresenta completa insensibilidade às cores. Assim as abelhas, que consomem quase todo o seu tempo "desflorando as frescas virgens da primavera", só conseguem distinguir umas poucas cores, conforme Von Frisch o demonstrou. A grande percepção às cores de que o olho humano é capaz é um luxo biológico — inestimavelmente precioso para nós, como seres intelectuais e espirituais, mas desnecessário à nossa sobrevivência como animais. A julgar pelos adjetivos que Homero lhes pôs nas bocas, os heróis da Guerra de Tróia mal ultrapassavam as abelhas em sua capacidade para distinguir cores. Ao menos sob esse aspecto, o progresso da humanidade tem sido prodigioso.
A mescalina aviva consideravelmente a percepção de todas as cores e torna o paciente apto a distinguir as mais sutis diferenças de matiz que, sob condições normais, ser-lhe-iam totalmente imperceptíveis. Poder-se-ia dizer que, para a Onisciência, os chamados caracteres secundários das coisas seriam os principais. Contrariamente a Locke, ela consideraria as cores dos objetos como mais importantes e, pois, merecedoras de maior atenção que suas massas, posições e dimensões. Tal como ocorre com os consumidores de mescalina, muitos místicos percebem cores de uma intensidade preternatural, não só em seu mundo interior como também no das coisas objetivas que os rodeiam. Fato idêntico ocorre com os indivíduos suscetíveis a ou que sofrem de psicoses. Há certos médiuns para os quais as revelações que se manifestam, por breves períodos, nos indivíduos que ingerem mescalina são uma experiência diária, de todas as horas, por longos espaços de tempo.
Podemos agora, após esta longa mas indispensável excursão ao reino da teoria, voltar àquela maravilhosa realidade — quatro pés de cadeira, de bambu, no meio de uma sala. Quais narcisos silvestres de Wordsworth, eles me proporcionaram toda sorte de riquezas — a inestimável dádiva de uma concepção nova e direta da verdadeira Natureza das Coisas, bem como um tesouro mais modesto, sob a forma de compreensão, particularmente no campo das artes.
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l. A esse respeito, veja-se: l. HOFFER, Abram; OSMOND, Humphry; SMYTHIES, John. "Schizophrenia: a new approach". Journal of Mental Science, 100(418), jan. 1954. 2. OSMOND, Humphry. "On being mad". Saskatchewan Psychiatric Services Journal, 1(2), set. 1952. 3. SMYTHIES, John. "Schizophrenia: a new approach". Journal of Mental Science, 98, abr. 1952. 4. SMYTHIES, John. "The mescalin phe-nomena". The British Journal for the Philosophy of Science, 3, fev. 1953. Numerosos outros artigos sobre bioquímica, farmacologia, psicologia e neurofisiologia da esquizofrenia e dos efeitos da mescalina estão em preparação.
2. Pseudônimo literário de George William Russell (1867-1935), poeta e pintor irlandês.
2. Pseudônimo literário de George William Russell (1867-1935), poeta e pintor irlandês.
2. A Maior Drugstore do Mundo
Uma rosa é uma rosa, e nada mais que uma rosa; mas esses quatro pés de cadeira, além de pés de cadeira eram São Miguel e todos os anjos. Quatro ou cinco horas após o início da experiência, quando começavam a cessar os efeitos da deficiência de açúcar no meu cérebro, levaram-me para um pequeno passeio pela cidade, no qual estava incluída uma visita, ao cair da tarde, ao que era modestamente considerado o maior drugstore do mundo. Nos fundos do estabelecimento, entre brinquedos, cartões de felicitações e revistas de histórias em quadrinhos, havia — por estranho que pudesse parecer — toda uma prateleira de livros de arte. Apanhei o primeiro volume ao alcance da mão. Continha obras de Van Gogh, e o quadro que surgiu quando o livro se abriu foi A cadeira — aquele assombroso retrato de uma realidade metafísica que o pintor louco viu, com uma espécie de reverente terror, e buscou reproduzir em sua tela. Mas essa era uma tarefa em que até o poder do gênio revelou-se totalmente impotente. Estava claro que a cadeira vista por Van Gogh era, em essência, a mesma que eu vira. Mas, ainda que incomparavelmente mais real do que aquela que a percepção comum deixa entrever, mesmo assim a cadeira do quadro continuava a ser nada mais que um símbolo do fato, embora extraordinariamente expressivo. O fato fora uma manifesta Peculiaridade; isto era apenas um emblema. Esses emblemas são fontes de conhecimentos seguros sobre a
Natureza das coisas, e tais conhecimentos podem servir para preparar a mente que os aceita para ilações imediatas sobre essa mesma natureza. Mas isso é tudo. Por expressivos que sejam, os símbolos jamais se podem converter nas coisas que representam.
Seria interessante, sob esse aspecto, realizar um estudo das obras de arte que prenderam a atenção dos grandes apreciadores da Peculiaridade. Que tipo de pintura teria Eckhart admirado? Quais quadros e esculturas contribuíram para a experiência religiosa de San Juan de Ia Cruz, de Hakuin, de Huineng ou de William Law? Essas indagações estão além de minhas possibilidades de resposta, mas tenho a convicção de que a maioria dos grandes amantes da Peculiaridade pouco se preocupou com a arte — alguns, recusando-se pura e simplesmente a levá-la em conta; outros, contentando-se com trabalhos que olhos de crítico classificariam como obras de segunda, ou mesmo de décima classe. (Para uma pessoa, cuja mente transfigurada e transfiguradora é capaz de descobrir o Tudo em cada isto, a classificação de uma pintura como sendo de primeira ou de décima categoria, ainda tratando-se de pintura religiosa, será coisa que lhe há de provocar a mais soberana indiferença.) A arte, creio eu, interessa apenas a principiantes, ou então a essas obstinadas mediocridades que decidiram satisfazer-se com a contrafação da Peculiaridade, com símbolos em lugar daquilo que estes significam, com o cardápio elegantemente apresentado em vez da própria refeição.
Devolvi Van Gogh à prateleira e apanhei o volume seguinte. Era um livro sobre Botticelli. Folheei-o. O nascimento de Vênus, que nunca figurou entre minhas telas prediletas; Vênus e Marte, aquela beleza tão apaixonadamente denunciada pelo pobre Ruskin, no ardor de sua enfadonha tragédia sexual; maravilhosamente rica e intricada, seguiu-se a Calúnia de Apeles. Por fim, deparei com um quadro menos conhecido e não muito bom — Judite. Minha atenção foi despertada e eu me quedei embevecido, não pela pálida e neurótica heroína ou por sua serva; não ante a hirsuta cabeça da vítima ou pela paisagem primaveril que formava o fundo do quadro, mas ante a purpúrea seda do corpete pregueado e das longas saias que o vento ondulava.
Aquilo era algo que eu já havia visto, e naquela mesma manhã, entre as flores e os móveis quando, por acaso, olhei para baixo e minha vista se extasiara ao fixar minhas próprias pernas cruzadas. Essas dobras de minhas calças — que labirinto de infinita complexidade simbólica! E a textura da flanela cinzenta — quão rica, profunda e misteriosamente suntuosa era ela! E lá estava isso tudo, de novo, no quadro de Botticelli!
Os seres humanos civilizados usam roupas e, pois, não pode haver quadro, seja ele retrato, narrativa mitológica ou histórica, onde não haja representação de dobras de tecido. Mas, embora podendo caber-lhe o mérito da origem, jamais poderemos atribuir ao hábito do vestuário o exuberante tratamento que a roupagem vem merecendo como tema principal em todas as artes plásticas. É evidente que os artistas sempre lhe conferiram um valor intrínseco (ou, quiçá mais propriamente, sempre se aperceberam do valor que ela representava para eles). Quem pinta ou esculpe roupagens está pintando ou esculpindo formas que, em última instância, não possuem simbolismo intrínseco — formas não condicionadas que os artistas, mesmo os mais fervorosos adeptos do naturalismo, deixam entregues a si mesmas. No comum das Madonas ou dos Apóstolos, os elementos estritamente humanos, inteiramente simbólicos, constituem cerca de dez por cento da obra. O restante é formado por um sem-número de variações coloridas do inexaurível tema de linhos e lãs amarfanhados. E esses nove décimos não-simbólicos de uma Madona ou um Apóstolo podem ser tão importantes, qualitativamente, quanto o são em quantidade. Não raro, são eles que dão o tom do conjunto da obra de arte, que estabelecem a nota mestra dentro da qual o tema está sendo executado, que exprimem a disposição de espírito, o temperamento, a atitude do artista diante da vida. A serenidade estóica se revela por superfícies suaves, pelas amplas dobras das roupagens de Piero. Esmagado entre realidade e vontade, entre cinismo e idealismo, Bernini ajusta a verossimilhança quase caricatural das faces que modela com vastas abstrações de pano que são a corporificação, em pedra ou bronze, dos eternos lugares-comuns da retórica — o heroísmo, a santidade, a sublimidade a que a humanidade perpetuamente aspira, quase sempre em vão. E há ainda as saias e os mantos perturbadoramente viscerais de El Greco; as dobras vivas, retorcidas quais chamas, em que Cosimo Tura envolvia seus personagens. No primeiro, a espiritualidade tradicional se dilui em anônimo anelo fisiológico; debate-se, no segundo, um sentimento torturado ante a reserva e a hostilidade características deste mundo. Examinemos, agora, as obras de Watteau; seus homens e suas mulheres empenham-se em lutas, aprontam-se para bailes, embarcam, em relvas de veludo e sob vetustas árvores, para a Citera dos sonhos de todos os amantes; a imensa melancolia que os envolve, bem como a pungente sensibilidade de seu criador, encontram expressão, não nas ações, atitudes ou semblantes dos personagens, mas no relevo e na textura de suas saias de tafetá, de seus mantos e gibões de cetim. Não há nelas nem uma polegada sequer de superfícies suaves; tudo é um emaranhado de sedas em incontáveis e minúsculas pregas e rugas em incessante modulação — reflexo de uma incerteza interior reproduzida com a perfeita segurança de uma mão de mestre — de tom para tom, de uma cor indefinível para outra. Na vida, "o homem põe e Deus dispõe". Nas artes plásticas, quem propõe é o assunto; mas quem dispõe é, em última instância, o temperamento do artista, e em primeira — ao menos em retratos, pintura histórica e descritiva — as roupagens e tapeçarias criadas pelo pincel ou pelo buril. Esses dois elementos podem fazer com que uma festa galante nos faça vir lágrimas aos olhos; que uma crucificação tenha uma tal serenidade que nos alegre a alma; que uma cena de suplício seja quase que intoleravelmente lúbrica; que o retrato de um prodígio de insensatez feminina (penso, neste instante, no incomparável Mme. Moitessier, de Ingres) possa exprimir a mais austera, a mais inflexível intelectualidade.
Mas isto não é tudo. As roupagens, percebo-o agora, são muito mais que simples artifícios para a introdução de formas desprovidas de simbolismo nas pinturas e esculturas naturalistas. O que nós outros só vemos sob a influência da mescalina pode, a qualquer tempo, ser visto pelo artista, graças a sua constituição congênita. Sua percepção não está limitada ao que é biológica ou socialmente útil. Algo do saber inerente à Onisciência flui através da válvula redutora do cérebro e do ego e atinge sua consciência. Isso lhe dá um conhecimento do valor intrínseco de tudo o que existe. Tanto para o artista como para quem ingere mescalina, o tecido é um hieróglifo vivo que representa, de certo modo singularmente expressivo, os insondáveis mistérios da existência. Ainda mais que a cadeira, embora talvez menos que aquelas flores absolutamente preternaturais, as dobras de minhas calças de flanela cinzenta estavam impregnadas de existência. Não sei dizer a que deviam elas sua privilegiada situação. Seria porque as formas assumidas pelas dobras dos tecidos são tão esquisitas e dramáticas que atraem nosso olhar e, assim, produzem esse milagre de pura existência sobre a atenção? Quem poderá dize-lo? Mas importa menos a razão para a experiência do que esta em si mesma. De olhos fitos nas saias de Judite, no maior drugstore do mundo, fiquei sabendo que Botticelli — e não somente ele como também muitos outros — havia contemplado as roupagens e tapeçarias com os mesmos olhos transfigurados e transfiguradores que eu possuía naquela manhã. Eles haviam visto o Istigkeit, a Totalidade e o Infinito das dobras de um tecido e haviam empregado ao máximo seu talento para representá-las na tela ou no mármore. É evidente que não poderiam, de forma alguma, triunfar, pois o esplendor e a maravilha da existência pura pertencem a uma ordem superior ao poder de expressão, mesmo da arte mais sublime. Mas, nas saias de Judite, pude ver claramente aquilo que, fosse eu um pintor de gênio, teria feito com minhas velhas calças de flanela cinzenta. Não seria muito — sabe-o o céu — em comparação com a realidade, mas bastaria para deliciar gerações e gerações de amantes da arte, para fazê-los compreender, um pouco que fosse, o verdadeiro valor daquilo que, em nossa patética imbecilidade, chamamos simples coisas e desprezamos em troca da televisão.
— É assim que precisamos ver — fiquei dizendo enquanto olhava para minhas calças ou relanceava os olhos pelos livros recamados de jóias nas estantes e pelos pés de minha cadeira infinitamente mais que vangoghiana. — É assim que precisamos ver as coisas — tal como elas são! — E ainda havia reparos a fazer. Pois se alguém visse sempre as coisas sob esse aspecto, jamais desejaria fazer algo diferente. Haveria apenas de olhar, de ser tão-somente a sublime Desindividualização da flor, do livro, da cadeira, das calças. Isso bastaria. Mas, nesse caso, e as outras pessoas? E as relações humanas? No registro da conversação daquela manhã, encontrei, a cada passo, a repetição da pergunta: "Que me diz das relações humanas?". Como poderia alguém conciliar essa infinita bênção de ver as coisas, tal como elas devem ser vistas, com os deveres temporais de agir como se deve agir e sentir como é mister que se sinta? — É preciso que sejamos capazes — respondi eu — de considerar estas calças infinitamente importantes, e os seres humanos ainda mais infinitamente importantes. — É preciso! mas na prática isso me pareceu impossível. Essa participação no manifesto esplendor das coisas não deixava lugar, por assim dizer, para as preocupações comuns, necessárias, com a vida humana e, acima de tudo, para as preocupações com os indivíduos. Pois as pessoas possuem individualidade e (ao menos sob um aspecto) naquele momento eu não era eu mesmo, a um só tempo percebendo e sendo a Desindividualização das coisas ao meu redor. Para essa Desindividualização recém-nascida, o comportamento, a aparência, o próprio raciocínio do indivíduo que ela momentaneamente deixara de ser, assim como os dos outros indivíduos — seus companheiros de até então —, se não lhe eram desagradáveis (pois a aversão não figurava entre as categorias em termos das quais eu raciocinava), estavam, no entanto, bastante longe de suas cogitações. Compelido pelo pesquisador a analisar e relatar o que estava fazendo (e como desejaria ser deixado a sós com a Eternidade em uma flor, com o Infinito em quatro pés de cadeira e com o Absoluto nas pregas de urnas calças de flanela!), verifiquei que estava, deliberadamente, evitando os olhares daqueles que me faziam companhia naquela sala; que, intencionalmente, procurava não tomar conhecimento de sua presença. E, no entanto, um deles era minha esposa, e o outro, um homem que eu considerava e de quem muito gostava. Mas ambos pertenciam a um mundo do qual, naquela ocasião, a mescalina me havia tirado — o mundo dos personalismos, da dimensão tempo, dos julgamentos morais e das considerações utilitárias; o mundo — e era esse aspecto da vida humana que, acima de tudo, mais desejava esquecer — o mundo da auto-afirmação, da convicção, da supervalorização da palavra e das noções idolatra-mente cultuadas.
Nesse ponto da experiência passaram-me às mãos uma grande produção em cores do conhecidíssimo auto-retrato de Cézanne, o busto de um homem cuja cabeça estava coberta por um grande chapéu de palha; rosado, de lábios corados, ostentando opulentas suíças negras e dono de olhos escuros e inamistosos. É uma obra excelente; mas não era como obra de arte que eu a encarava, naquele instante. Pois a cabeça imediatamente adquiriu relevo e ganhou vida sob a forma de um homenzinho que lembrava um duende, olhando através de uma janela que era a página diante de mim. Comecei a rir. E, quando me perguntaram a razão, disse, e continuei repetindo:
— Que pretensão! Quem pensa ele que é? — Essa exclamação, eu não a endereçava a Cézanne, em particular, mas a toda a espécie humana. Quem pensavam eles todos que eram?
— Isso me faz lembrar Arnold Bennett nos Dolomitas — disse eu, repentinamente, recordando uma cena que um instantâneo feliz imortalizara, cerca de quatro ou cinco anos antes de sua morte, quando tateava através de uma trilha gelada em Cortina d'Ampezzo. Ao seu redor, a neve virgem; ao fundo, a atração irresistível dos rubros despenhadeiros. E lá estava o caro, afável e infeliz Arnold Bennett, exagerando, conscientemente, o papel de seu personagem favorito, corporificando-o ele mesmo. Lá vinha ele, vagarosamente, sob o brilhante sol dos Apeninos, os polegares metidos na cava do colete amarelo que se avolumava, um pouco mais abaixo, na curva graciosa de uma janela estilo Regência — a cabeça jogada para trás, como que tentando vencer uma crise de gagueira, sob a cerúlea abóbada celeste. Já não me lembro de quais tenham realmente sido suas palavras; mas seu porte, seu ar e sua atitude pareciam proclamar: "Sou tão bom quanto essas montanhas do inferno!". E, de fato, sob certos aspectos, ele lhes era infinitamente superior; mas — e ele bem o sabia — não o era pela forma segundo a qual seu personagem predileto, no reino da ficção, gostava de ser.
Feliz ou infelizmente (dependendo do significado que se der à palavra) todos nós exageramos ao viver o papel de nosso personagem favorito. E o fato quase infinitamente improvável de se tratar de Cézanne, de pouco lhe valia. Pois o renomado pintor, com seu pequeno conduto para a Onisciência a burlar a ação da válvula redutora formada pelo cérebro e o filtro do ego, era também, e tão-somente, um duende de grandes suíças e olhar inamistoso.
Para descansar, voltei às pregas de minhas calças.
— E assim que precisamos ver as coisas — tornei a repetir. E bem que poderia ter acrescentado: "Isto é o tipo de coisa que precisa ser vista". Coisas sem pretensões, satisfeitas com serem apenas elas mesmas, conformadas com suas peculiaridades, não agindo de per si, não tentando, loucamente, isolar-se do Dharma-Corpóreo, em diabólico desafio à graça de Deus.
— O que mais se aproximaria disso — disse eu — seria um Vermeer.
Sim, um Vermeer. Pois esse misterioso artista foi triplamente bem aquinhoado — com a visão que identifica o Dharma-Corpóreo com a sebe ao fundo do jardim; com o talento para reproduzir, com a máxima fidelidade, essa visão, dentro das limitações impostas pela capacidade humana; com a prudência para se ater, em suas pinturas, aos aspectos da realidade mais suscetíveis de serem reproduzidos. Pois, embora Vermeer representasse seres humanos, sempre foi um pintor de naturezas-mortas. Cézanne, que dizia a seus modelos femininos que se esforçassem por parecer-se com maçãs, buscava pintar seus retratos dentro do mesmo espírito. Mas suas raparigas com ar-de-maçã associam-se mais às idéias de Platão que ao Dharma-Corpóreo na sebe. Elas são a Eternidade e o Infinito, não em areia ou por flores, mas pelas abstrações de alguma espécie de alta geometria. Vermeer jamais pediu a seus modelos que buscassem parecer-se com maçãs. Ao contrário, insistia em que fossem o mais femininas possível mas sempre abstendo-se de se comportarem com infantilidade. Poderiam sentar-se ou ficar de pé, mas não deveriam apresentar-se com risos zombeteiros ou com arrogância, jamais deveriam rezar ou suspirar por amores ausentes, tagarelar, olhar com inveja os filhos de outras mulheres, namorar, amar, odiar ou trabalhar. Se fizessem quaisquer dessas coisas iriam, indubitavelmente, mostrar-se mais intensamente elas mesmas; mas deixariam, por essa mesma razão, de apresentar sua sublime e essencial Despersonalização. É de Blake a opinião de que as portas da percepção de Vermeer estavam apenas parcialmente limpas. Um único painel atingira uma transparência quase perfeita; o resto da porta continuava enlameado. A Despersonalização essencial pode ser perfeitamente percebida em coisas e em criaturas vivas, no divisor entre o bem e o mal. No homem, só podemos vislumbrá-la quando ele está em repouso, com a mente desanuviada, o corpo estático. Nessas circunstâncias, Vermeer pôde ver a Peculiaridade em toda a sua celestial beleza — pôde vê-la e, até certo ponto, representá-la em sutil e suntuosa natureza-morta. Vermeer é, indubitavelmente, o maior pintor de seres humanos no estilo natureza-morta. Mas houve também outros contemporâneos de Vermeer na França, tais como os irmãos Lê Nain. Eles pretendiam, creio eu, dedicar-se à pintura descritiva; mas, o que em verdade produziram, foi uma série de retratos, tipo natureza-morta, nos quais sua aguda percepção do infinito valor de todas as coisas está presente, não como nos de Vermeer, por um sutil enriquecimento das cores e texturas, mas por uma intensificação das luzes, uma obsessiva distinção das formas, dentro de uma tonalidade austera e quase que monocromática. De nossos dias é Vuillard, o pintor inexcedível, com suas esplêndidas e inesquecíveis pinturas do Dharma-Corpóreo sob a forma de um quarto de dormir burguês; do Absoluto consumindo-se em chamas no seio da família de um comerciante à hora do chá, em um jardim suburbano.
Ce qui fait que 1'ancien handagiste reme
Lê comptoir dont lê faste alléchait lês passants
C'est son jardin d'Auteuil, ou veufs de tout encens,
Lês Zinnias ont l'air d'être
en tôle vemie*
*[O que faz com que o antigo lojista despreze/ O faustoso balcão que atraía os
fregueses/ É seu jardim de Auteuil onde, à lisonja imunes,/As zínias lembram flores de
lata envernizada.]
Para Laurent Taillade, o espetáculo era simplesmente obsceno. Mas, se o antigo comerciante de material ortopédico se houvesse sentado suficientemente imóvel, Vuillard teria visto nele, tão-somente, o Dharma-Corpóreo; teria pintado, entre as zínias, o tanque dos peixinhos dourados, a torre mourisca e as lanternas chinesas da vila — um recanto do Éden ao romper do outono.
E, entretanto, minha pergunta continuava sem resposta. Como conciliar essa percepção aguçada com uma justa preocupação pelas relações humanas, com os deveres e as tarefas inadiáveis, para não mencionar a caridade e a piedade atuantes? A velha disputa entre ativos e contemplativos estava sendo renovada — e renovada, creio eu, com uma violência sem precedentes. Pois, até aquela manhã, eu só conhecera a contemplação sob suas formas mais humildes e encontradiças — a divagação do pensamento; a arrebatada abstração na poesia, na pintura ou na música; a paciente espera pela inspiração, sem a qual mesmo o mais prosaico escritor não pode pretender realizar coisa alguma; como vislumbres acidentais da natureza "de algo muito mais profundamente interligado", no dizer de Wordsworth; como o silêncio sistemático que leva, por vezes, à noção de um "obscuro saber". Mas, desta feita, conheci a contemplação em sua pujança. Em sua pujança, sim, mas não em toda a sua plenitude. Pois, quando esta é atingida, a estrada que leva a Maria inclui a de Marta[3] e eleva a contemplação, por assim dizer, a seu mais alto poder. A mescalina nos abre o acesso a Maria, mas fecha a porta que leva a Marta. Ela nos permite chegar à contemplação, mas a uma contemplação que é incompatível com a ação e até mesmo com a vontade de agir, com a própria idéia de ação. Nos intervalos entre suas revelações, quem toma mescalina é capaz de sentir que, embora de certo modo tudo tenha a sublimidade que devera ter, por outro lado há nisso qualquer coisa de errado. Seu problema é, essencialmente, o mesmo com que se defronta o eremita, o arfoat[4] e, em outro plano, o paisagista e o pintor de retratos inanimados. A mescalina jamais poderá resolver tal problema; servirá apenas para situá-lo, em termos obscuros, para aqueles aos quais ele jamais se apresentou. Sua solução plena e definitiva só poderá ser encontrada por quem esteja preparado para reforçar a verdadeira Weltanschauung[5] por meio do comportamento adequado e de uma vigilância constante, natural e apropriada. Ao eremita se opõe o contemplativo-ativo, o santo, o homem que, na frase de Eckhart, está pronto a descer do sétimo céu para levar de beber a seu irmão doente. Ao arhat, refugiando-se do mundo exterior em um Nirvana inteiramente transcendental, opõe-se o Bodhisattva[7], para quem a Peculiaridade e o mundo das contingências são uma mesma coisa, e para cuja piedade sem limites, a cada uma dessas contingências correspondem outras tantas portunidades, não só para meditações transfi-guradoras, como também para praticar a caridade mais objetiva. E, no universo da arte, a Vermeer e aos outros pintores de retratos inanimados, aos mestres do paisagismo chinês e japonês, a Constable e a Turner, a Sisley, Seurat e Cézanne, opõe-se a arte integral de Rembrandt. Esses são nomes célebres, inacessíveis eminências. Pelo que me toca, nessa memorável jornada de maio pude tão-somente ser grato a uma experiência que me revelou, mais claramente do que eu jamais pudera discernir, a verdadeira natureza do desafio e o cunho inteiramente emancipador da resposta.
Seja-me permitido acrescentar, antes de abandonar este assunto, que não há forma de contemplação, mesmo a mais passiva, que não possua seu conteúdo ético. No mínimo a metade de toda a moral é negativa, e consiste em evitar o erro. O pai-nosso contém menos de cinqüenta palavras, e seis delas são dedicadas a pedir a Deus que não nos deixe cair em tentação. O contemplativo-passivo deixa de fazer muitas coisas que teria de realizar; mas para se dispor a uma tal atitude, ele precisa abster-se de praticar uma série de ações que não deveriam ser levadas a efeito. O mal, acentuou Pascal, seria muito diminuído se os homens aprendessem a permanecer serenamente em seus aposentos. Mas o contemplativo cuja percepção haja sido esclarecida não precisará permanecer encerrado em seus aposentos. Poderá sair para seus afazeres, tão perfeitamente satisfeito em contemplar e em ser uma parte da divina Ordem das Coisas, que nunca ver-se-á tentado a entregar-se ao que Traherme chamou de "impuros Artifícios do mundo". Quando nos sentimos como se fôssemos os únicos herdeiros do universo, quando "o mar corre em nossas veias [...] e as estrelas são nossas jóias", quando todas as coisas parecem infinitas e sagradas, que motivos poderemos ter para a cobiça ou a soberba, para a fome de poder ou para as formas mais doentias de prazer? Os contemplativos não são propensos a se tornarem jogadores, alcoviteiros ou ébrios; como regra, não pregam a intolerância nem promovem guerras; não são levados ao roubo, à fraude ou à opressão dos fracos. E, a essas grandes virtudes negativas, podemos ainda acrescentar outra que, embora difícil de definir, não só é importante como também positiva. O arhat e o contemplativo sereno podem não praticar a contemplação em sua plenitude, mas mesmo assim nos poderão proporcionar informações esclarecedoras sobre outra e transcendente região da mente. E, se praticarem-na com elevação, tornar-se-ão os condutos através dos quais poderá advir uma certa influência benéfica, dessa região ignota, para um mundo de personalidades atormentadas, em constante agonia por falta desse auxílio.
Enquanto isso, eu me voltara, a pedido de meu interlocutor, do retrato de Cézanne para o que se passava em minha mente ao cerrar os olhos. E o que pude então observar foi curiosamente decepcionante: meu campo de visão estava repleto de estruturas de cores vivas, em constante mutação, que pareciam feitas de plástico ou de folha esmaltada.
— Vulgar — comentei. — Ordinário. Como os objetos de uma loja americana.
Todas essas quinquilharias existiam em um universo acanhado, atulhado.
— E como se alguém estivesse, debaixo do convés, em um navio — exclamei. — Uma loja americana flutuante.
E, à medida que eu a observava, tornou-se bem patente que essa loja americana flutuante estava, de certa forma, relacionada com as pretensões humanas. Esse interior sufocante de loja barata embarcada era meu próprio ego; esses vistosos mobiles vulgares, de lata e de matéria plástica, eram minhas contribuições pessoais para o universo.
Achei a lição salutar, embora não deixasse de ser constrangedor que ela me tivesse sido ministrada nesse momento e sob tal forma. De modo geral, quem toma mescalina descobre um mundo interior tão claramente definido, tão axiomaticamente infinito e sagrado quanto aquele mundo exterior transfigurado que eu havia visto de olhos abertos. A princípio, minha própria experiência fora diferente. A mescalina me proporcionara, temporariamente, o poder de ter visões de olhos cerrados; mas não pudera — ou, ao menos naquela ocasião, não o fez — revelar-me uma visão interior remotamente comparável às minhas flores, à cadeira ou às calças de flanela "lá de fora". O que ela me permitira perceber, interiormente, não fora o Dharma-Corpóreo por intermédio de imagens, e sim minha própria mente; não um padrão de Peculiaridade, mas um conjunto de símbolos — em outras palavras, um substituto caseiro dessa Peculiaridade.
Os indivíduos de imaginação fértil são, em sua maioria, transformados em visionários pela mescalina. Alguns deles — e seu número talvez seja bem maior do que geralmente se admite — não necessitam de transformação; são permanentemente visionários.
A espécie mental a que Blake pertencia acha-se razoavelmente bem distribuída, mesmo nas sociedades urbano-industriais da atualidade. A singularidade do artista-poeta não consiste no fato de, para citar seu Descriptive Catalogue, haver ele realmente visto "aquelas maravilhosas entidades que a Sagrada Escritura denominava Querubins". Não reside em que "estes maravilhosos entes, surgidos em minhas visões, tivessem, alguns deles, cem pés de altura [...] todos repletos de mitológico e recôndito significado". Está apenas em sua habilidade para traduzir, por palavras ou (com um pouco menos de êxito) com traços e cores, ao menos certos aspectos de uma experiência algo incomum. O visionário desprovido de talento pode se aperceber de uma realidade interior não menos assombrosa, bela e valiosa que o mundo observado por Blake; mas faltar-Ihe-á por completo habilidade para exprimir, por meio de símbolos plásticos ou literários, aquilo que viu.
Conclui-se perfeitamente, à luz dos documentos e rituais religiosos, bem como dos monumentos da poesia e das artes plásticas que chegaram até nós, que, na maioria das épocas e dos lugares, os homens têm atribuído maior importância a suas visões interiores que às coisas objetivas que conhecem. Têm julgado que o que vêem, quando de olhos cerrados, possui maior importância espiritual que o visto à luz do dia. Qual a razão para isso? A familiaridade gera indiferença, e o problema da sobrevivência é de uma premência que vai da tediosa rotina à tortura. É para o mundo exterior que abrimos os olhos todas as manhãs, é nele que, de bom ou de mau grado, temos de procurar viver. No mundo interior não há trabalho nem monotonia. Visitamo-lo apenas em sonhos e devaneios, e sua singularidade é tal que nunca encontramos o mesmo mundo em duas ocasiões sucessivas. Que há, pois, de espantoso em preferirem os seres humanos, via de regra, olhar para dentro de si mesmos, em sua busca do sublime? Isso, de fato, sucede como regra geral, mas não necessariamente: não somente em sua religião, como também em sua arte, os taoístas e os budistas Zen procuravam ir além de suas visões, ao encontro e através do Vazio, até as "dez mil coisas" da realidade objetiva. Graças a sua doutrina da Palavra tornada carne, poderiam os cristãos, desde o início, adotar uma atitude semelhante com relação ao universo que os circundava. Mas, em razão da doutrina do Pecado Original, viram-se em grande dificuldade para fazê-lo. Há apenas trezentos anos, uma expressão de completa fuga ao mundo, e mesmo de sua condenação, era não só ortodoxa como compreensível: "Nada há na Natureza que mereça a nossa admiração, a não ser a encarnação de Cristo". No século XVII, essa frase de Lallemant parecia ter sentido. Hoje, encontramos nela a aura da demência.
Na China, a ascensão do paisagismo à categoria de arte importante ocorreu há um milênio; no Japão, há uns seis séculos; na Europa, há uns trezentos anos. A identificação da Divindade com a sebe foi obra desses mestres zen, que consorciaram o naturalismo taoísta com o transcendentalismo budista. Foi, pois, apenas no Extremo Oriente que os paisagistas, conscientemente, encararam sua arte como obra religiosa. No Ocidente, a pintura religiosa consistia em representar personagens sacros e ilustrar textos sagrados. Os paisagistas tinham-se na conta de secularistas. Hoje reconhecemos em Seurat um dos supremos mestres do que pode ser denominado o paisagismo místico. E, não obstante, esse homem que era capaz, mais do que outro qualquer, de representar o Impar em sua pluralidade, ficou indignado quando alguém lhe elogiou a poesia de suas obras. "Limito-me a aplicar o Sistema", protestou ele.
Em outras palavras, ele se considerava um praticante do pointillisme[7] e nada mais. Passagem semelhante conta-se de Constable: Blake, já no fim de sua vida, conheceu-o em Hampstead e examinou alguns de seus esboços. A despeito de seu desprezo pela arte naturalista, o velho visionário soube dar-lhe o devido valor, embora pensasse tratar-se de obra de Rubens. — "Isto não é desenho", exclamou ele, "isto é inspiração!" Ao que Constable lhe teria retrucado, de modo bem característico: "Fi-lo para que fosse desenho". Ambos estavam certos. Aquilo era desenho, preciso e fiel, mas ao mesmo tempo era inspiração — inspiração no mínimo tão elevada quanto a de Blake. Os pinheiros na Urze foram realmente identificados com a Divindade. O esboço era uma reprodução, necessariamente imperfeita, mas assim mesmo profundamente impressionante, do que uma percepção sem peias revelara aos olhos abertos de um grande pintor. De uma contemplação segundo os moldes de Wordsworth e Whitman, identificando a Divindade com a sebe, e das visões introspectivas, tais como as de Blake, das "maravilhosas entidades", os poetas contemporâneos recuaram para uma investigação do que é pessoal, como oposto ao mais do que pessoal, subconsciente, e para uma reprodução, em termos altamente abstratos, não dos fatos reais, objetivos, mas de meras noções científicas e teológicas. Coisa algo semelhante ocorreu no campo da pintura. Nela verificamos uma fuga generalizada da paisagem — forma predominante dessa arte no século XIX. Essa fuga não se deu para aquele sublime Princípio interior — ao qual se achavam ligadas, em sua maioria, as escolas tradicionais do passado —, para aquele Mundo Modelo, onde os homens têm sempre ao seu dispor estas duas matérias-primas: mito e religião. Não; o que houve foi uma fuga para o Princípio exterior, para o subconsciente individual, para um mundo intelectual mais esquálido e ainda mais estreitamente fechado que o da personalidade consciente. Essas quinquilharias de lata e de plástico, de cores berrantes, onde eu as havia visto antes? Em qualquer galeria de arte onde se exibam as últimas criações da arte não-representativa.
Naquele momento, alguém acabava de ligar um fonógrafo e de pôr um disco no prato. Ouvi com prazer a música; mas nada há que se equipare à visão apocalíptica que tive das flores e de minhas calças. Poderia um músico, prodigamente aquinhoado pela Natureza, ouvir as revelações que, para mim, foram exclusivamente visuais? Seria interessante fazer essa experiência. Entretanto, embora não transfigurada, embora mantendo a qualidade e a intensidade normais, a música contribuiu, e não pouco, para a compreensão do que se passara comigo e dos problemas mais amplos que esses acontecimentos suscitaram.
A música instrumental, por estranho que pareça, deixou-me bastante indiferente. O Concerto para piano em dó-menor, de Mozart, foi interrompido após o primeiro movimento e substituído por um disco de madrigais de Gesualdo.
— Essas vozes — disse eu com prazer —, essas vozes são uma espécie de ponte que nos permite regressar ao mundo dos homens.
E como ponte continuaram, mesmo quando cantando as composições mais povoadas de variações cromáticas dentre as obras do príncipe louco. A música prosseguiu através das frases irregulares ; dos madrigais, jamais batendo na mesma tecla em dois compassos l consecutivos. Em Gesualdo — aquele personagem fantástico de um melodrama de Webster — a desintegração psicológica exagerara, levara aos limites extremos uma tendência inerente à música modal, em contraposição à inteiramente tonai. Daí suas obras darem a impressão de terem sido escritas pelo último Schoenberg.
— E no entanto — senti-me forçado a dizer, enquanto ouvia esses estranhos produtos de uma psicose da Contra-Reforma atuando sobre um estilo de arte do fim da Era Medieval —, e, no entanto, pouco importa que ela seja toda em pedaços. O conjunto é caótico, mas cada fragmento, de per si, é ordenado, é a representação de uma Ordem Superior. Essa Ordem Superior sobrepuja a própria desintegração. Sente-se a unidade até nos fragmentos. Talvez ela seja mais sensível do que em uma obra inteiramente coerente. Ao menos, não seremos levados a um sentimento de falsa segurança por qualquer impulso meramente humano e artificial. Temos de confiar em nossa percepção direta, de natureza fundamental. Portanto, até certo ponto, a desintegração pode ter suas vantagens. Mas é fora de dúvida que ela é perigosa; terrivelmente perigosa. Suponhamos que não mais possamos voltar, fugir ao caos...
Dos madrigais de Gesualdo pulamos, num salto de três séculos, para Alban Berg e sua "Suite Lírica".
— Isto — avisei antecipadamente — será o inferno.
Mas, quando a música começou, verifiquei que me enganara. Na verdade, a melodia parecia até alegre. Vindo do fundo do meu subconsciente, o enlevo se multiplicava pelos outros tantos tons da orquestra; contudo, o que realmente me impressionou foi a incongruência essencial entre uma desintegração psicológica talvez ainda mais completa que a de Gesualdo e os prodigiosos recursos, tanto em talento como em técnica, empregados em sua expressão.
— Não parece que ele está triste consigo mesmo? — comentei com zombeteiro desagrado. E logo depois: — Katzenmusik!, douta Katzenmusik![8] — Finalmente, após mais uns poucos minutos de tortura: — Quem se
importa com quais sejam seus sentimentos? Por que não pode ele dedicar-se a qualquer outra coisa?
Como crítica de uma obra indubitavelmente notável, ela era injusta e parcial, mas não creio que fosse despropositada. Cito-a, não só pelo valor que possa ter, como também por ter sido assim que, em um estado de pura contemplação, reagi ante a "Suite Lírica".
Natureza das coisas, e tais conhecimentos podem servir para preparar a mente que os aceita para ilações imediatas sobre essa mesma natureza. Mas isso é tudo. Por expressivos que sejam, os símbolos jamais se podem converter nas coisas que representam.
Seria interessante, sob esse aspecto, realizar um estudo das obras de arte que prenderam a atenção dos grandes apreciadores da Peculiaridade. Que tipo de pintura teria Eckhart admirado? Quais quadros e esculturas contribuíram para a experiência religiosa de San Juan de Ia Cruz, de Hakuin, de Huineng ou de William Law? Essas indagações estão além de minhas possibilidades de resposta, mas tenho a convicção de que a maioria dos grandes amantes da Peculiaridade pouco se preocupou com a arte — alguns, recusando-se pura e simplesmente a levá-la em conta; outros, contentando-se com trabalhos que olhos de crítico classificariam como obras de segunda, ou mesmo de décima classe. (Para uma pessoa, cuja mente transfigurada e transfiguradora é capaz de descobrir o Tudo em cada isto, a classificação de uma pintura como sendo de primeira ou de décima categoria, ainda tratando-se de pintura religiosa, será coisa que lhe há de provocar a mais soberana indiferença.) A arte, creio eu, interessa apenas a principiantes, ou então a essas obstinadas mediocridades que decidiram satisfazer-se com a contrafação da Peculiaridade, com símbolos em lugar daquilo que estes significam, com o cardápio elegantemente apresentado em vez da própria refeição.
Devolvi Van Gogh à prateleira e apanhei o volume seguinte. Era um livro sobre Botticelli. Folheei-o. O nascimento de Vênus, que nunca figurou entre minhas telas prediletas; Vênus e Marte, aquela beleza tão apaixonadamente denunciada pelo pobre Ruskin, no ardor de sua enfadonha tragédia sexual; maravilhosamente rica e intricada, seguiu-se a Calúnia de Apeles. Por fim, deparei com um quadro menos conhecido e não muito bom — Judite. Minha atenção foi despertada e eu me quedei embevecido, não pela pálida e neurótica heroína ou por sua serva; não ante a hirsuta cabeça da vítima ou pela paisagem primaveril que formava o fundo do quadro, mas ante a purpúrea seda do corpete pregueado e das longas saias que o vento ondulava.
Aquilo era algo que eu já havia visto, e naquela mesma manhã, entre as flores e os móveis quando, por acaso, olhei para baixo e minha vista se extasiara ao fixar minhas próprias pernas cruzadas. Essas dobras de minhas calças — que labirinto de infinita complexidade simbólica! E a textura da flanela cinzenta — quão rica, profunda e misteriosamente suntuosa era ela! E lá estava isso tudo, de novo, no quadro de Botticelli!
Os seres humanos civilizados usam roupas e, pois, não pode haver quadro, seja ele retrato, narrativa mitológica ou histórica, onde não haja representação de dobras de tecido. Mas, embora podendo caber-lhe o mérito da origem, jamais poderemos atribuir ao hábito do vestuário o exuberante tratamento que a roupagem vem merecendo como tema principal em todas as artes plásticas. É evidente que os artistas sempre lhe conferiram um valor intrínseco (ou, quiçá mais propriamente, sempre se aperceberam do valor que ela representava para eles). Quem pinta ou esculpe roupagens está pintando ou esculpindo formas que, em última instância, não possuem simbolismo intrínseco — formas não condicionadas que os artistas, mesmo os mais fervorosos adeptos do naturalismo, deixam entregues a si mesmas. No comum das Madonas ou dos Apóstolos, os elementos estritamente humanos, inteiramente simbólicos, constituem cerca de dez por cento da obra. O restante é formado por um sem-número de variações coloridas do inexaurível tema de linhos e lãs amarfanhados. E esses nove décimos não-simbólicos de uma Madona ou um Apóstolo podem ser tão importantes, qualitativamente, quanto o são em quantidade. Não raro, são eles que dão o tom do conjunto da obra de arte, que estabelecem a nota mestra dentro da qual o tema está sendo executado, que exprimem a disposição de espírito, o temperamento, a atitude do artista diante da vida. A serenidade estóica se revela por superfícies suaves, pelas amplas dobras das roupagens de Piero. Esmagado entre realidade e vontade, entre cinismo e idealismo, Bernini ajusta a verossimilhança quase caricatural das faces que modela com vastas abstrações de pano que são a corporificação, em pedra ou bronze, dos eternos lugares-comuns da retórica — o heroísmo, a santidade, a sublimidade a que a humanidade perpetuamente aspira, quase sempre em vão. E há ainda as saias e os mantos perturbadoramente viscerais de El Greco; as dobras vivas, retorcidas quais chamas, em que Cosimo Tura envolvia seus personagens. No primeiro, a espiritualidade tradicional se dilui em anônimo anelo fisiológico; debate-se, no segundo, um sentimento torturado ante a reserva e a hostilidade características deste mundo. Examinemos, agora, as obras de Watteau; seus homens e suas mulheres empenham-se em lutas, aprontam-se para bailes, embarcam, em relvas de veludo e sob vetustas árvores, para a Citera dos sonhos de todos os amantes; a imensa melancolia que os envolve, bem como a pungente sensibilidade de seu criador, encontram expressão, não nas ações, atitudes ou semblantes dos personagens, mas no relevo e na textura de suas saias de tafetá, de seus mantos e gibões de cetim. Não há nelas nem uma polegada sequer de superfícies suaves; tudo é um emaranhado de sedas em incontáveis e minúsculas pregas e rugas em incessante modulação — reflexo de uma incerteza interior reproduzida com a perfeita segurança de uma mão de mestre — de tom para tom, de uma cor indefinível para outra. Na vida, "o homem põe e Deus dispõe". Nas artes plásticas, quem propõe é o assunto; mas quem dispõe é, em última instância, o temperamento do artista, e em primeira — ao menos em retratos, pintura histórica e descritiva — as roupagens e tapeçarias criadas pelo pincel ou pelo buril. Esses dois elementos podem fazer com que uma festa galante nos faça vir lágrimas aos olhos; que uma crucificação tenha uma tal serenidade que nos alegre a alma; que uma cena de suplício seja quase que intoleravelmente lúbrica; que o retrato de um prodígio de insensatez feminina (penso, neste instante, no incomparável Mme. Moitessier, de Ingres) possa exprimir a mais austera, a mais inflexível intelectualidade.
Mas isto não é tudo. As roupagens, percebo-o agora, são muito mais que simples artifícios para a introdução de formas desprovidas de simbolismo nas pinturas e esculturas naturalistas. O que nós outros só vemos sob a influência da mescalina pode, a qualquer tempo, ser visto pelo artista, graças a sua constituição congênita. Sua percepção não está limitada ao que é biológica ou socialmente útil. Algo do saber inerente à Onisciência flui através da válvula redutora do cérebro e do ego e atinge sua consciência. Isso lhe dá um conhecimento do valor intrínseco de tudo o que existe. Tanto para o artista como para quem ingere mescalina, o tecido é um hieróglifo vivo que representa, de certo modo singularmente expressivo, os insondáveis mistérios da existência. Ainda mais que a cadeira, embora talvez menos que aquelas flores absolutamente preternaturais, as dobras de minhas calças de flanela cinzenta estavam impregnadas de existência. Não sei dizer a que deviam elas sua privilegiada situação. Seria porque as formas assumidas pelas dobras dos tecidos são tão esquisitas e dramáticas que atraem nosso olhar e, assim, produzem esse milagre de pura existência sobre a atenção? Quem poderá dize-lo? Mas importa menos a razão para a experiência do que esta em si mesma. De olhos fitos nas saias de Judite, no maior drugstore do mundo, fiquei sabendo que Botticelli — e não somente ele como também muitos outros — havia contemplado as roupagens e tapeçarias com os mesmos olhos transfigurados e transfiguradores que eu possuía naquela manhã. Eles haviam visto o Istigkeit, a Totalidade e o Infinito das dobras de um tecido e haviam empregado ao máximo seu talento para representá-las na tela ou no mármore. É evidente que não poderiam, de forma alguma, triunfar, pois o esplendor e a maravilha da existência pura pertencem a uma ordem superior ao poder de expressão, mesmo da arte mais sublime. Mas, nas saias de Judite, pude ver claramente aquilo que, fosse eu um pintor de gênio, teria feito com minhas velhas calças de flanela cinzenta. Não seria muito — sabe-o o céu — em comparação com a realidade, mas bastaria para deliciar gerações e gerações de amantes da arte, para fazê-los compreender, um pouco que fosse, o verdadeiro valor daquilo que, em nossa patética imbecilidade, chamamos simples coisas e desprezamos em troca da televisão.
— É assim que precisamos ver — fiquei dizendo enquanto olhava para minhas calças ou relanceava os olhos pelos livros recamados de jóias nas estantes e pelos pés de minha cadeira infinitamente mais que vangoghiana. — É assim que precisamos ver as coisas — tal como elas são! — E ainda havia reparos a fazer. Pois se alguém visse sempre as coisas sob esse aspecto, jamais desejaria fazer algo diferente. Haveria apenas de olhar, de ser tão-somente a sublime Desindividualização da flor, do livro, da cadeira, das calças. Isso bastaria. Mas, nesse caso, e as outras pessoas? E as relações humanas? No registro da conversação daquela manhã, encontrei, a cada passo, a repetição da pergunta: "Que me diz das relações humanas?". Como poderia alguém conciliar essa infinita bênção de ver as coisas, tal como elas devem ser vistas, com os deveres temporais de agir como se deve agir e sentir como é mister que se sinta? — É preciso que sejamos capazes — respondi eu — de considerar estas calças infinitamente importantes, e os seres humanos ainda mais infinitamente importantes. — É preciso! mas na prática isso me pareceu impossível. Essa participação no manifesto esplendor das coisas não deixava lugar, por assim dizer, para as preocupações comuns, necessárias, com a vida humana e, acima de tudo, para as preocupações com os indivíduos. Pois as pessoas possuem individualidade e (ao menos sob um aspecto) naquele momento eu não era eu mesmo, a um só tempo percebendo e sendo a Desindividualização das coisas ao meu redor. Para essa Desindividualização recém-nascida, o comportamento, a aparência, o próprio raciocínio do indivíduo que ela momentaneamente deixara de ser, assim como os dos outros indivíduos — seus companheiros de até então —, se não lhe eram desagradáveis (pois a aversão não figurava entre as categorias em termos das quais eu raciocinava), estavam, no entanto, bastante longe de suas cogitações. Compelido pelo pesquisador a analisar e relatar o que estava fazendo (e como desejaria ser deixado a sós com a Eternidade em uma flor, com o Infinito em quatro pés de cadeira e com o Absoluto nas pregas de urnas calças de flanela!), verifiquei que estava, deliberadamente, evitando os olhares daqueles que me faziam companhia naquela sala; que, intencionalmente, procurava não tomar conhecimento de sua presença. E, no entanto, um deles era minha esposa, e o outro, um homem que eu considerava e de quem muito gostava. Mas ambos pertenciam a um mundo do qual, naquela ocasião, a mescalina me havia tirado — o mundo dos personalismos, da dimensão tempo, dos julgamentos morais e das considerações utilitárias; o mundo — e era esse aspecto da vida humana que, acima de tudo, mais desejava esquecer — o mundo da auto-afirmação, da convicção, da supervalorização da palavra e das noções idolatra-mente cultuadas.
Nesse ponto da experiência passaram-me às mãos uma grande produção em cores do conhecidíssimo auto-retrato de Cézanne, o busto de um homem cuja cabeça estava coberta por um grande chapéu de palha; rosado, de lábios corados, ostentando opulentas suíças negras e dono de olhos escuros e inamistosos. É uma obra excelente; mas não era como obra de arte que eu a encarava, naquele instante. Pois a cabeça imediatamente adquiriu relevo e ganhou vida sob a forma de um homenzinho que lembrava um duende, olhando através de uma janela que era a página diante de mim. Comecei a rir. E, quando me perguntaram a razão, disse, e continuei repetindo:
— Que pretensão! Quem pensa ele que é? — Essa exclamação, eu não a endereçava a Cézanne, em particular, mas a toda a espécie humana. Quem pensavam eles todos que eram?
— Isso me faz lembrar Arnold Bennett nos Dolomitas — disse eu, repentinamente, recordando uma cena que um instantâneo feliz imortalizara, cerca de quatro ou cinco anos antes de sua morte, quando tateava através de uma trilha gelada em Cortina d'Ampezzo. Ao seu redor, a neve virgem; ao fundo, a atração irresistível dos rubros despenhadeiros. E lá estava o caro, afável e infeliz Arnold Bennett, exagerando, conscientemente, o papel de seu personagem favorito, corporificando-o ele mesmo. Lá vinha ele, vagarosamente, sob o brilhante sol dos Apeninos, os polegares metidos na cava do colete amarelo que se avolumava, um pouco mais abaixo, na curva graciosa de uma janela estilo Regência — a cabeça jogada para trás, como que tentando vencer uma crise de gagueira, sob a cerúlea abóbada celeste. Já não me lembro de quais tenham realmente sido suas palavras; mas seu porte, seu ar e sua atitude pareciam proclamar: "Sou tão bom quanto essas montanhas do inferno!". E, de fato, sob certos aspectos, ele lhes era infinitamente superior; mas — e ele bem o sabia — não o era pela forma segundo a qual seu personagem predileto, no reino da ficção, gostava de ser.
Feliz ou infelizmente (dependendo do significado que se der à palavra) todos nós exageramos ao viver o papel de nosso personagem favorito. E o fato quase infinitamente improvável de se tratar de Cézanne, de pouco lhe valia. Pois o renomado pintor, com seu pequeno conduto para a Onisciência a burlar a ação da válvula redutora formada pelo cérebro e o filtro do ego, era também, e tão-somente, um duende de grandes suíças e olhar inamistoso.
Para descansar, voltei às pregas de minhas calças.
— E assim que precisamos ver as coisas — tornei a repetir. E bem que poderia ter acrescentado: "Isto é o tipo de coisa que precisa ser vista". Coisas sem pretensões, satisfeitas com serem apenas elas mesmas, conformadas com suas peculiaridades, não agindo de per si, não tentando, loucamente, isolar-se do Dharma-Corpóreo, em diabólico desafio à graça de Deus.
— O que mais se aproximaria disso — disse eu — seria um Vermeer.
Sim, um Vermeer. Pois esse misterioso artista foi triplamente bem aquinhoado — com a visão que identifica o Dharma-Corpóreo com a sebe ao fundo do jardim; com o talento para reproduzir, com a máxima fidelidade, essa visão, dentro das limitações impostas pela capacidade humana; com a prudência para se ater, em suas pinturas, aos aspectos da realidade mais suscetíveis de serem reproduzidos. Pois, embora Vermeer representasse seres humanos, sempre foi um pintor de naturezas-mortas. Cézanne, que dizia a seus modelos femininos que se esforçassem por parecer-se com maçãs, buscava pintar seus retratos dentro do mesmo espírito. Mas suas raparigas com ar-de-maçã associam-se mais às idéias de Platão que ao Dharma-Corpóreo na sebe. Elas são a Eternidade e o Infinito, não em areia ou por flores, mas pelas abstrações de alguma espécie de alta geometria. Vermeer jamais pediu a seus modelos que buscassem parecer-se com maçãs. Ao contrário, insistia em que fossem o mais femininas possível mas sempre abstendo-se de se comportarem com infantilidade. Poderiam sentar-se ou ficar de pé, mas não deveriam apresentar-se com risos zombeteiros ou com arrogância, jamais deveriam rezar ou suspirar por amores ausentes, tagarelar, olhar com inveja os filhos de outras mulheres, namorar, amar, odiar ou trabalhar. Se fizessem quaisquer dessas coisas iriam, indubitavelmente, mostrar-se mais intensamente elas mesmas; mas deixariam, por essa mesma razão, de apresentar sua sublime e essencial Despersonalização. É de Blake a opinião de que as portas da percepção de Vermeer estavam apenas parcialmente limpas. Um único painel atingira uma transparência quase perfeita; o resto da porta continuava enlameado. A Despersonalização essencial pode ser perfeitamente percebida em coisas e em criaturas vivas, no divisor entre o bem e o mal. No homem, só podemos vislumbrá-la quando ele está em repouso, com a mente desanuviada, o corpo estático. Nessas circunstâncias, Vermeer pôde ver a Peculiaridade em toda a sua celestial beleza — pôde vê-la e, até certo ponto, representá-la em sutil e suntuosa natureza-morta. Vermeer é, indubitavelmente, o maior pintor de seres humanos no estilo natureza-morta. Mas houve também outros contemporâneos de Vermeer na França, tais como os irmãos Lê Nain. Eles pretendiam, creio eu, dedicar-se à pintura descritiva; mas, o que em verdade produziram, foi uma série de retratos, tipo natureza-morta, nos quais sua aguda percepção do infinito valor de todas as coisas está presente, não como nos de Vermeer, por um sutil enriquecimento das cores e texturas, mas por uma intensificação das luzes, uma obsessiva distinção das formas, dentro de uma tonalidade austera e quase que monocromática. De nossos dias é Vuillard, o pintor inexcedível, com suas esplêndidas e inesquecíveis pinturas do Dharma-Corpóreo sob a forma de um quarto de dormir burguês; do Absoluto consumindo-se em chamas no seio da família de um comerciante à hora do chá, em um jardim suburbano.
Ce qui fait que 1'ancien handagiste reme
Lê comptoir dont lê faste alléchait lês passants
C'est son jardin d'Auteuil, ou veufs de tout encens,
Lês Zinnias ont l'air d'être
en tôle vemie*
*[O que faz com que o antigo lojista despreze/ O faustoso balcão que atraía os
fregueses/ É seu jardim de Auteuil onde, à lisonja imunes,/As zínias lembram flores de
lata envernizada.]
Para Laurent Taillade, o espetáculo era simplesmente obsceno. Mas, se o antigo comerciante de material ortopédico se houvesse sentado suficientemente imóvel, Vuillard teria visto nele, tão-somente, o Dharma-Corpóreo; teria pintado, entre as zínias, o tanque dos peixinhos dourados, a torre mourisca e as lanternas chinesas da vila — um recanto do Éden ao romper do outono.
E, entretanto, minha pergunta continuava sem resposta. Como conciliar essa percepção aguçada com uma justa preocupação pelas relações humanas, com os deveres e as tarefas inadiáveis, para não mencionar a caridade e a piedade atuantes? A velha disputa entre ativos e contemplativos estava sendo renovada — e renovada, creio eu, com uma violência sem precedentes. Pois, até aquela manhã, eu só conhecera a contemplação sob suas formas mais humildes e encontradiças — a divagação do pensamento; a arrebatada abstração na poesia, na pintura ou na música; a paciente espera pela inspiração, sem a qual mesmo o mais prosaico escritor não pode pretender realizar coisa alguma; como vislumbres acidentais da natureza "de algo muito mais profundamente interligado", no dizer de Wordsworth; como o silêncio sistemático que leva, por vezes, à noção de um "obscuro saber". Mas, desta feita, conheci a contemplação em sua pujança. Em sua pujança, sim, mas não em toda a sua plenitude. Pois, quando esta é atingida, a estrada que leva a Maria inclui a de Marta[3] e eleva a contemplação, por assim dizer, a seu mais alto poder. A mescalina nos abre o acesso a Maria, mas fecha a porta que leva a Marta. Ela nos permite chegar à contemplação, mas a uma contemplação que é incompatível com a ação e até mesmo com a vontade de agir, com a própria idéia de ação. Nos intervalos entre suas revelações, quem toma mescalina é capaz de sentir que, embora de certo modo tudo tenha a sublimidade que devera ter, por outro lado há nisso qualquer coisa de errado. Seu problema é, essencialmente, o mesmo com que se defronta o eremita, o arfoat[4] e, em outro plano, o paisagista e o pintor de retratos inanimados. A mescalina jamais poderá resolver tal problema; servirá apenas para situá-lo, em termos obscuros, para aqueles aos quais ele jamais se apresentou. Sua solução plena e definitiva só poderá ser encontrada por quem esteja preparado para reforçar a verdadeira Weltanschauung[5] por meio do comportamento adequado e de uma vigilância constante, natural e apropriada. Ao eremita se opõe o contemplativo-ativo, o santo, o homem que, na frase de Eckhart, está pronto a descer do sétimo céu para levar de beber a seu irmão doente. Ao arhat, refugiando-se do mundo exterior em um Nirvana inteiramente transcendental, opõe-se o Bodhisattva[7], para quem a Peculiaridade e o mundo das contingências são uma mesma coisa, e para cuja piedade sem limites, a cada uma dessas contingências correspondem outras tantas portunidades, não só para meditações transfi-guradoras, como também para praticar a caridade mais objetiva. E, no universo da arte, a Vermeer e aos outros pintores de retratos inanimados, aos mestres do paisagismo chinês e japonês, a Constable e a Turner, a Sisley, Seurat e Cézanne, opõe-se a arte integral de Rembrandt. Esses são nomes célebres, inacessíveis eminências. Pelo que me toca, nessa memorável jornada de maio pude tão-somente ser grato a uma experiência que me revelou, mais claramente do que eu jamais pudera discernir, a verdadeira natureza do desafio e o cunho inteiramente emancipador da resposta.
Seja-me permitido acrescentar, antes de abandonar este assunto, que não há forma de contemplação, mesmo a mais passiva, que não possua seu conteúdo ético. No mínimo a metade de toda a moral é negativa, e consiste em evitar o erro. O pai-nosso contém menos de cinqüenta palavras, e seis delas são dedicadas a pedir a Deus que não nos deixe cair em tentação. O contemplativo-passivo deixa de fazer muitas coisas que teria de realizar; mas para se dispor a uma tal atitude, ele precisa abster-se de praticar uma série de ações que não deveriam ser levadas a efeito. O mal, acentuou Pascal, seria muito diminuído se os homens aprendessem a permanecer serenamente em seus aposentos. Mas o contemplativo cuja percepção haja sido esclarecida não precisará permanecer encerrado em seus aposentos. Poderá sair para seus afazeres, tão perfeitamente satisfeito em contemplar e em ser uma parte da divina Ordem das Coisas, que nunca ver-se-á tentado a entregar-se ao que Traherme chamou de "impuros Artifícios do mundo". Quando nos sentimos como se fôssemos os únicos herdeiros do universo, quando "o mar corre em nossas veias [...] e as estrelas são nossas jóias", quando todas as coisas parecem infinitas e sagradas, que motivos poderemos ter para a cobiça ou a soberba, para a fome de poder ou para as formas mais doentias de prazer? Os contemplativos não são propensos a se tornarem jogadores, alcoviteiros ou ébrios; como regra, não pregam a intolerância nem promovem guerras; não são levados ao roubo, à fraude ou à opressão dos fracos. E, a essas grandes virtudes negativas, podemos ainda acrescentar outra que, embora difícil de definir, não só é importante como também positiva. O arhat e o contemplativo sereno podem não praticar a contemplação em sua plenitude, mas mesmo assim nos poderão proporcionar informações esclarecedoras sobre outra e transcendente região da mente. E, se praticarem-na com elevação, tornar-se-ão os condutos através dos quais poderá advir uma certa influência benéfica, dessa região ignota, para um mundo de personalidades atormentadas, em constante agonia por falta desse auxílio.
Enquanto isso, eu me voltara, a pedido de meu interlocutor, do retrato de Cézanne para o que se passava em minha mente ao cerrar os olhos. E o que pude então observar foi curiosamente decepcionante: meu campo de visão estava repleto de estruturas de cores vivas, em constante mutação, que pareciam feitas de plástico ou de folha esmaltada.
— Vulgar — comentei. — Ordinário. Como os objetos de uma loja americana.
Todas essas quinquilharias existiam em um universo acanhado, atulhado.
— E como se alguém estivesse, debaixo do convés, em um navio — exclamei. — Uma loja americana flutuante.
E, à medida que eu a observava, tornou-se bem patente que essa loja americana flutuante estava, de certa forma, relacionada com as pretensões humanas. Esse interior sufocante de loja barata embarcada era meu próprio ego; esses vistosos mobiles vulgares, de lata e de matéria plástica, eram minhas contribuições pessoais para o universo.
Achei a lição salutar, embora não deixasse de ser constrangedor que ela me tivesse sido ministrada nesse momento e sob tal forma. De modo geral, quem toma mescalina descobre um mundo interior tão claramente definido, tão axiomaticamente infinito e sagrado quanto aquele mundo exterior transfigurado que eu havia visto de olhos abertos. A princípio, minha própria experiência fora diferente. A mescalina me proporcionara, temporariamente, o poder de ter visões de olhos cerrados; mas não pudera — ou, ao menos naquela ocasião, não o fez — revelar-me uma visão interior remotamente comparável às minhas flores, à cadeira ou às calças de flanela "lá de fora". O que ela me permitira perceber, interiormente, não fora o Dharma-Corpóreo por intermédio de imagens, e sim minha própria mente; não um padrão de Peculiaridade, mas um conjunto de símbolos — em outras palavras, um substituto caseiro dessa Peculiaridade.
Os indivíduos de imaginação fértil são, em sua maioria, transformados em visionários pela mescalina. Alguns deles — e seu número talvez seja bem maior do que geralmente se admite — não necessitam de transformação; são permanentemente visionários.
A espécie mental a que Blake pertencia acha-se razoavelmente bem distribuída, mesmo nas sociedades urbano-industriais da atualidade. A singularidade do artista-poeta não consiste no fato de, para citar seu Descriptive Catalogue, haver ele realmente visto "aquelas maravilhosas entidades que a Sagrada Escritura denominava Querubins". Não reside em que "estes maravilhosos entes, surgidos em minhas visões, tivessem, alguns deles, cem pés de altura [...] todos repletos de mitológico e recôndito significado". Está apenas em sua habilidade para traduzir, por palavras ou (com um pouco menos de êxito) com traços e cores, ao menos certos aspectos de uma experiência algo incomum. O visionário desprovido de talento pode se aperceber de uma realidade interior não menos assombrosa, bela e valiosa que o mundo observado por Blake; mas faltar-Ihe-á por completo habilidade para exprimir, por meio de símbolos plásticos ou literários, aquilo que viu.
Conclui-se perfeitamente, à luz dos documentos e rituais religiosos, bem como dos monumentos da poesia e das artes plásticas que chegaram até nós, que, na maioria das épocas e dos lugares, os homens têm atribuído maior importância a suas visões interiores que às coisas objetivas que conhecem. Têm julgado que o que vêem, quando de olhos cerrados, possui maior importância espiritual que o visto à luz do dia. Qual a razão para isso? A familiaridade gera indiferença, e o problema da sobrevivência é de uma premência que vai da tediosa rotina à tortura. É para o mundo exterior que abrimos os olhos todas as manhãs, é nele que, de bom ou de mau grado, temos de procurar viver. No mundo interior não há trabalho nem monotonia. Visitamo-lo apenas em sonhos e devaneios, e sua singularidade é tal que nunca encontramos o mesmo mundo em duas ocasiões sucessivas. Que há, pois, de espantoso em preferirem os seres humanos, via de regra, olhar para dentro de si mesmos, em sua busca do sublime? Isso, de fato, sucede como regra geral, mas não necessariamente: não somente em sua religião, como também em sua arte, os taoístas e os budistas Zen procuravam ir além de suas visões, ao encontro e através do Vazio, até as "dez mil coisas" da realidade objetiva. Graças a sua doutrina da Palavra tornada carne, poderiam os cristãos, desde o início, adotar uma atitude semelhante com relação ao universo que os circundava. Mas, em razão da doutrina do Pecado Original, viram-se em grande dificuldade para fazê-lo. Há apenas trezentos anos, uma expressão de completa fuga ao mundo, e mesmo de sua condenação, era não só ortodoxa como compreensível: "Nada há na Natureza que mereça a nossa admiração, a não ser a encarnação de Cristo". No século XVII, essa frase de Lallemant parecia ter sentido. Hoje, encontramos nela a aura da demência.
Na China, a ascensão do paisagismo à categoria de arte importante ocorreu há um milênio; no Japão, há uns seis séculos; na Europa, há uns trezentos anos. A identificação da Divindade com a sebe foi obra desses mestres zen, que consorciaram o naturalismo taoísta com o transcendentalismo budista. Foi, pois, apenas no Extremo Oriente que os paisagistas, conscientemente, encararam sua arte como obra religiosa. No Ocidente, a pintura religiosa consistia em representar personagens sacros e ilustrar textos sagrados. Os paisagistas tinham-se na conta de secularistas. Hoje reconhecemos em Seurat um dos supremos mestres do que pode ser denominado o paisagismo místico. E, não obstante, esse homem que era capaz, mais do que outro qualquer, de representar o Impar em sua pluralidade, ficou indignado quando alguém lhe elogiou a poesia de suas obras. "Limito-me a aplicar o Sistema", protestou ele.
Em outras palavras, ele se considerava um praticante do pointillisme[7] e nada mais. Passagem semelhante conta-se de Constable: Blake, já no fim de sua vida, conheceu-o em Hampstead e examinou alguns de seus esboços. A despeito de seu desprezo pela arte naturalista, o velho visionário soube dar-lhe o devido valor, embora pensasse tratar-se de obra de Rubens. — "Isto não é desenho", exclamou ele, "isto é inspiração!" Ao que Constable lhe teria retrucado, de modo bem característico: "Fi-lo para que fosse desenho". Ambos estavam certos. Aquilo era desenho, preciso e fiel, mas ao mesmo tempo era inspiração — inspiração no mínimo tão elevada quanto a de Blake. Os pinheiros na Urze foram realmente identificados com a Divindade. O esboço era uma reprodução, necessariamente imperfeita, mas assim mesmo profundamente impressionante, do que uma percepção sem peias revelara aos olhos abertos de um grande pintor. De uma contemplação segundo os moldes de Wordsworth e Whitman, identificando a Divindade com a sebe, e das visões introspectivas, tais como as de Blake, das "maravilhosas entidades", os poetas contemporâneos recuaram para uma investigação do que é pessoal, como oposto ao mais do que pessoal, subconsciente, e para uma reprodução, em termos altamente abstratos, não dos fatos reais, objetivos, mas de meras noções científicas e teológicas. Coisa algo semelhante ocorreu no campo da pintura. Nela verificamos uma fuga generalizada da paisagem — forma predominante dessa arte no século XIX. Essa fuga não se deu para aquele sublime Princípio interior — ao qual se achavam ligadas, em sua maioria, as escolas tradicionais do passado —, para aquele Mundo Modelo, onde os homens têm sempre ao seu dispor estas duas matérias-primas: mito e religião. Não; o que houve foi uma fuga para o Princípio exterior, para o subconsciente individual, para um mundo intelectual mais esquálido e ainda mais estreitamente fechado que o da personalidade consciente. Essas quinquilharias de lata e de plástico, de cores berrantes, onde eu as havia visto antes? Em qualquer galeria de arte onde se exibam as últimas criações da arte não-representativa.
Naquele momento, alguém acabava de ligar um fonógrafo e de pôr um disco no prato. Ouvi com prazer a música; mas nada há que se equipare à visão apocalíptica que tive das flores e de minhas calças. Poderia um músico, prodigamente aquinhoado pela Natureza, ouvir as revelações que, para mim, foram exclusivamente visuais? Seria interessante fazer essa experiência. Entretanto, embora não transfigurada, embora mantendo a qualidade e a intensidade normais, a música contribuiu, e não pouco, para a compreensão do que se passara comigo e dos problemas mais amplos que esses acontecimentos suscitaram.
A música instrumental, por estranho que pareça, deixou-me bastante indiferente. O Concerto para piano em dó-menor, de Mozart, foi interrompido após o primeiro movimento e substituído por um disco de madrigais de Gesualdo.
— Essas vozes — disse eu com prazer —, essas vozes são uma espécie de ponte que nos permite regressar ao mundo dos homens.
E como ponte continuaram, mesmo quando cantando as composições mais povoadas de variações cromáticas dentre as obras do príncipe louco. A música prosseguiu através das frases irregulares ; dos madrigais, jamais batendo na mesma tecla em dois compassos l consecutivos. Em Gesualdo — aquele personagem fantástico de um melodrama de Webster — a desintegração psicológica exagerara, levara aos limites extremos uma tendência inerente à música modal, em contraposição à inteiramente tonai. Daí suas obras darem a impressão de terem sido escritas pelo último Schoenberg.
— E no entanto — senti-me forçado a dizer, enquanto ouvia esses estranhos produtos de uma psicose da Contra-Reforma atuando sobre um estilo de arte do fim da Era Medieval —, e, no entanto, pouco importa que ela seja toda em pedaços. O conjunto é caótico, mas cada fragmento, de per si, é ordenado, é a representação de uma Ordem Superior. Essa Ordem Superior sobrepuja a própria desintegração. Sente-se a unidade até nos fragmentos. Talvez ela seja mais sensível do que em uma obra inteiramente coerente. Ao menos, não seremos levados a um sentimento de falsa segurança por qualquer impulso meramente humano e artificial. Temos de confiar em nossa percepção direta, de natureza fundamental. Portanto, até certo ponto, a desintegração pode ter suas vantagens. Mas é fora de dúvida que ela é perigosa; terrivelmente perigosa. Suponhamos que não mais possamos voltar, fugir ao caos...
Dos madrigais de Gesualdo pulamos, num salto de três séculos, para Alban Berg e sua "Suite Lírica".
— Isto — avisei antecipadamente — será o inferno.
Mas, quando a música começou, verifiquei que me enganara. Na verdade, a melodia parecia até alegre. Vindo do fundo do meu subconsciente, o enlevo se multiplicava pelos outros tantos tons da orquestra; contudo, o que realmente me impressionou foi a incongruência essencial entre uma desintegração psicológica talvez ainda mais completa que a de Gesualdo e os prodigiosos recursos, tanto em talento como em técnica, empregados em sua expressão.
— Não parece que ele está triste consigo mesmo? — comentei com zombeteiro desagrado. E logo depois: — Katzenmusik!, douta Katzenmusik![8] — Finalmente, após mais uns poucos minutos de tortura: — Quem se
importa com quais sejam seus sentimentos? Por que não pode ele dedicar-se a qualquer outra coisa?
Como crítica de uma obra indubitavelmente notável, ela era injusta e parcial, mas não creio que fosse despropositada. Cito-a, não só pelo valor que possa ter, como também por ter sido assim que, em um estado de pura contemplação, reagi ante a "Suite Lírica".
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3. Marta e Maria, irmãs de Lázaro, citadas no Novo Testamento, Evangelho de São Lucas. Nas alegorias cristãs, Marta simboliza a vida ativa; Maria, a contemplativa.
4. Arfoat - monge budista que atingiu a luz; santo budista.
5. Weltanschauung ("visão do mundo") é uma concepção filosófica do universo como decorrência do rumo dos acontecimentos no mundo como um todo.
6. Bodhisattva - santo budista; aquele que, seguindo as pegadas do Buda, deverá, em encarnação futura, tornar-se também um Buda.
7. Técnica de pintura da escola neo-impressionista, fundada por Seurat, na qual as tintas são aplicadas sobre fundo branco, em pequenos pontos, seguindo um rigoroso sistema.
8. Literalmente, "música de gatos"; expressão alemã empregada para definir uma música desagradável.
4. Arfoat - monge budista que atingiu a luz; santo budista.
5. Weltanschauung ("visão do mundo") é uma concepção filosófica do universo como decorrência do rumo dos acontecimentos no mundo como um todo.
6. Bodhisattva - santo budista; aquele que, seguindo as pegadas do Buda, deverá, em encarnação futura, tornar-se também um Buda.
7. Técnica de pintura da escola neo-impressionista, fundada por Seurat, na qual as tintas são aplicadas sobre fundo branco, em pequenos pontos, seguindo um rigoroso sistema.
8. Literalmente, "música de gatos"; expressão alemã empregada para definir uma música desagradável.
3. O Jardim que Adão Viu Quando Abriu os Olhos
Quando acabou sua execução, sugeriu-me o pesquisador que passeássemos pelo jardim. Gostei da idéia e, embora meu corpo parecesse ter-se separado quase por completo de minha mente (ou, para ser mais preciso, embora minha perceptibilidade do transfigurado mundo exterior já não mais se fizesse acompanhar da de meu próprio organismo), do ponto de vista fisiológico verifiquei ser capaz de levantar-me, abrir a porta e sair para o jardim com um mínimo de hesitação. Era, na verdade, estranho sentir que eu não era a mesma coisa que esses braços e pernas lá de fora; que esse tronco, esse pescoço, essa cabeça mesma. Era estranho; mas em breve acostumamo-nos a isso. E, seja como for, o corpo parecia perfeitamente apto a tomar conta de si próprio. Na verdade, é ele quem sempre toma conta de si. Tudo o que o ego consciente pode fazer é formular desejos, que são então transmitidos ao corpo por forças que ele controla muito pouco e absolutamente não compreende. Quando faz algo mais — por exemplo, quando se esforça em demasia, quando se aborrece ou se torna apreensivo sobre o futuro —, reduz a eficiência dessas forças e pode mesmo fazer com que o debilitado corpo adoeça. Em meu estado, no momento, a perceptibilidade não era encaminhada a um ego; estava, por assim dizer, entregue a si mesma. Isso significava que a inteligência fisiológica que controla o organismo também estava entregue a si mesma. Nessa ocasião, aquele importuno neurótico que, nas horas de vigília, se esforça por "dirigir o espetáculo" estava, felizmente, fora de ação. Transpondo a porta, saí para uma espécie de pérgula, em parte coberta por uma roseira, em parte por ripas de uns dois centímetros de largo, a intervalos de um centímetro umas das outras. O sol brilhava, e a sombra das ripas formava um zebrado claro-escuro no chão da varanda, no assento e no encosto de uma cadeira de jardim que se achava próxima à casa. Aquela cadeira! Poderei algum dia esquecê-la? As alternâncias de sombra e luz formavam, sobre a lona de seu estofo, listras de um anil intenso, porém luzente, sucedidas por outras de uma incandescência tão intensamente brilhante que era difícil acreditar não fossem produzidas por chamas azuis. Por um tempo, que me pareceu intensamente longo, fitei-a sem saber, sem mesmo desejar saber que é que tinha diante de mim. Em outra ocasião qualquer teria visto apenas uma cadeira com barras alternadas de luz e sombra. Mas, no momento, a percepção sensorial dominara a idéia. Eu estava tão absorto na contemplação, tão estupefato pelo que via, que não pude ter consciência de nada mais. Mobiliário, ripas, luz do sol, sombra — tudo isso não passava de nomes e noções; de meras verbalizações para o aproveitamento científico ou utilitário dos resultados. O resultado era essa sucessão de portas de fornalha azul-celeste, separadas por insondáveis abismos de genciana. Aquilo era indizivelmente maravilhoso; de uma sublimidade que tocava as raias do terrífico. E então, repentinamente, tive uma vaga noção do que seja sentir-se louco. A esquizofrenia tem seus paraísos, de par com seus infernos e purgatórios. Lembro-me do que um velho amigo, de há muito falecido, contou-me sobre a doença da esposa. Um dia, nos primeiros estágios da enfermidade, quando ela ainda desfrutava intervalos de lucidez, tinha ido visitá-la no hospital e dar-lhe notícias dos filhos. Ela o ouviu por algum tempo e então, de súbito, interrompeu-o: como poderia ele perder tempo com um casal de crianças ausentes quando tudo o que verdadeiramente importava, ali e naquele instante, era a indizível beleza dos desenhos que ele criava, em seu casaco marrom de xadrez, a cada movimento de braços? Infeliz! Esse paraíso de percepção ilimitada, de contemplação pura, parcial, não iria durar. Os intervalos felizes tornaram-se mais raros, mais breves, até que, finalmente, desapareceram de vez; só restou o horror...
Muitos dos que ingerem mescalina experimentam apenas as sensações celestiais da esquizofrenia. A droga só leva o purgatório ou o inferno àqueles que tenham tido um acesso recente de icterícia ou que sofram de depressões periódicas ou ansiedade crônica. Se, como acontece com outras drogas de poder incomparavelmente menor, a mescalina fosse reconhecidamente tóxica, sua ingestão seria suficiente para provocar ansiedade. Mas o indivíduo razoavelmente saudável sabe antecipadamente que, para si, esse alcalóide será completamente inócuo e que seus efeitos terão cessado após oito ou dez horas, sem deixar sensações desagradáveis nem, conseqüentemente, ânsias por novas doses. Fortalecido por essa convicção, ele pode entregar-se à experiência sem temores — em outras palavras, sem qualquer predisposição para converter um ensaio de uma singularidade sem precedentes, inumano, em algo de aterrador, de verdadeiramente diabólico.
Diante de uma cadeira que parecia um Juízo Final — ou, para ser mais preciso, ante um Juízo Final que, depois de longo tempo e com considerável dificuldade, pude reconhecer como sendo uma cadeira —, eu me senti, de uma hora para outra, no limiar do pânico. Aquilo, percebi repentinamente, estava indo muito longe. Longe demais, muito embora marchasse para uma beleza sempre maior, para um sentido cada vez mais profundo. O temor, analisando-o retrospectivamente, foi o de me ver esmagado, desintegrado sob uma pressão de realidade muito superior à que uma mente, acostumada a viver a maior parte do tempo em um confortável mundo de símbolos, talvez pudesse suportar. Na literatura da experiência religiosa, abundam referências aos sofrimentos e terrores que esmagam os que se defrontam, com demasiada rapidez, face a face com qualquer manifestação do Mysterium Tremendum. Em linguagem teológica, esse temor é função da incompatibilidade entre o egotismo do homem e a pureza divina; entre a mesquinhez auto-agravada do homem e o Deus infinito. Segundo Boheme e William Law, podemos dizer que a Divina Luz, em toda a sua intensidade, só pode ser percebida pelas almas pecadoras sob a forma de chamas do purgatório. Doutrina praticamente idêntica é a exposta no Livro tibetano dos mortos, pelo qual a alma que se desprega foge atormentada da Serena Luz do Vazio, e até mesmo das Luzes menos intensas, indo lançar-se, precipitadamente, na confortadora escuridão da personalidade, reencarnando-se em um recém-nascido, transformando-se até em animal, em um infeliz fantasma ou indo ter ao inferno. Há de preferir qualquer coisa ao ígneo refulgir da implacável Realidade — qualquer coisa!
O esquizofrênico é uma alma, não só impura, como também desesperadamente desgostosa com sua situação. Seu tormento consiste na incapacidade de proteger-se contra a realidade, seja ela interior ou exterior (como faz normalmente o indivíduo são) refugiando-se no universo do senso comum, por nós mesmos construído — esse mundo estritamente humano das noções úteis, dos simbolos compartilhados pelos demais, das convenções socialmente aceitáveis. O esquizofrênico é qual homem sob a influência contínua da mescalina e, pois, incapaz de deixar de experimentar uma realidade que ele não pode suportar por lhe faltar pureza; que não pode interpretar por ser ela o mais inflexível dos fatos fundamentais e que, por jamais permitir-lhe encarar o mundo com olhos simplesmente humanos, força-o a interpretar suas incessantes singularidades, sua candente intensidade de valores, como a manifestação da maldade humana ou até cósmica, levando-o às mais desesperadas contramedidas que vão da violência assassina, de um lado da escala, até a catatonia — ou suicídio psicológico —, do outro. E, uma vez iniciada a descida pela rampa infernal, ninguém poderá mais deter-se. Isso, no momento, era por demais evidente para mim.
— Quem enveredar pelo caminho errado — disse eu em resposta às perguntas de meu inquiridor — encontrará, em tudo o que acontecer, uma prova da conspiração que se articula contra si. Tudo servirá de confirmação. A própria respiração estará fazendo parte do sinistro plano.
— Com que então você acha que sabe onde se aloja a loucura? Minha resposta foi um convicto e profundo "Sim".
— E não poderia controlá-la?
— Não; não poderia fazê-lo. Quem começa com medo e ódio, como principais premissas, terá de ir até o fim.
— Você seria capaz — perguntou-me minha esposa — de fixar sua atenção naquilo que o Livro tibetano dos mortos chama de Serena Luz?
Fiquei em dúvida.
— Seria ela capaz de manter o mal afastado, caso você pudesse encará-la? — insistiu ela. — Ou será que você não poderia fitá-la?
Pensei por algum tempo para poder responder e, por fim, disse:
— Talvez; talvez o conseguisse. Mas só se houvesse lá alguém que pudesse esclarecer-me a respeito da Serena Luz. Não é possível fazer-se isso a sós. Daí a razão, creio eu, para o ritual tibetano — assentar-se alguém ao nosso lado, durante todo o tempo, para dizer o que vai ocorrendo.
Depois de escutar a gravação dessa parte da experiência, apanhei meu exemplar da tradução do Livro tibetano dos mortos por Evans-Wentz e o abri ao acaso: "Ó tu, que nasceste nobre! Não permitas que tua mente seja distraída". Esse era o problema: permanecer sem distrair-se. Sem se distrair ante a recordação de pecados passados; ante a evocação de prazeres, a amarga lembrança de antigos erros e humilhações; ante todos os temores, ódios e ansiedades que, de ordinário, eclipsam a Luz. O que esses monges budistas faziam com os mortos e os agonizantes não poderia ser feito com os insanos pelo psiquiatra moderno? Que haja uma voz para lhes assegurar, durante as horas de vigília — e até mesmo enquanto dormem —, que, a despeito de todo o terror, de toda a perplexidade e confusão, a Realidade fundamental permanece imutável e é idêntica, em sua substância, à luz interior, mesmo à da alma mais cruelmente atormentada. Por meio de artifícios tais como gravadores, relógios de controle de circuitos, sistemas de alto-falantes, inclusive distribuídos pelos travesseiros, seria facílimo fazer com que os internados, mesmo em casas de saúde pobres em pessoal, fossem constantemente doutrinados sobre esse fato primordial. Talvez algumas dessas almas desgarradas pudessem ser assim auxiliadas na obtenção de um certo controle sobre o universo onde foram condenados a viver e que, a um só tempo maravilhoso e aterrador, é, no entanto, permanentemente inumano, sempre totalmente incompreensível.
Algum tempo depois fui afastado do inquietante esplendor de minha cadeira de jardim. Caindo em parábolas verdes do alto de uma sebe, a folhagem da hera luzia com um brilho vítreo que lembrava o jade. Logo após, um arbusto em flor surgiu repentinamente em meu campo visual. Suas flores rubras tinham tanta vida que pareciam a ponto de falar, voltadas para cima, para o azul do céu. Tal como a cadeira sob o caramanchão, elas chamavam demais minha atenção. Desviei o olhar para as folhas e descobri um caprichoso intricado das mais delicadas luzes e sombras no verde, a pulsar misteriosamente.
Roses:
The flowers are easy to paint,
The leaves difficult. *
*[Rosas:/ É fácil pintar-lhes as flores,/ Difíceis são as folhas.]
O haiku de Shiki (que cito na tradução de F. H. Blyth) exprime, de modo indireto, exatamente o que então senti — a excessiva, a por demais evidente beleza das flores, contrastando com o milagre mais sutil de sua folhagem.
Saímos para a rua. Um grande automóvel azul-claro estava estacionado junto à calçada. Ao vê-lo, fui repentinamente tomado de enorme alegria. Que prazer, que absurda satisfação comigo mesmo provinha daquelas superfícies abauladas do mais luzente esmalte! O homem o criara à sua própria imagem (ou melhor, segundo a imagem de seu personagem favorito no mundo de ficção). Ri até as lágrimas rolarem-me pelas faces.
Muitos dos que ingerem mescalina experimentam apenas as sensações celestiais da esquizofrenia. A droga só leva o purgatório ou o inferno àqueles que tenham tido um acesso recente de icterícia ou que sofram de depressões periódicas ou ansiedade crônica. Se, como acontece com outras drogas de poder incomparavelmente menor, a mescalina fosse reconhecidamente tóxica, sua ingestão seria suficiente para provocar ansiedade. Mas o indivíduo razoavelmente saudável sabe antecipadamente que, para si, esse alcalóide será completamente inócuo e que seus efeitos terão cessado após oito ou dez horas, sem deixar sensações desagradáveis nem, conseqüentemente, ânsias por novas doses. Fortalecido por essa convicção, ele pode entregar-se à experiência sem temores — em outras palavras, sem qualquer predisposição para converter um ensaio de uma singularidade sem precedentes, inumano, em algo de aterrador, de verdadeiramente diabólico.
Diante de uma cadeira que parecia um Juízo Final — ou, para ser mais preciso, ante um Juízo Final que, depois de longo tempo e com considerável dificuldade, pude reconhecer como sendo uma cadeira —, eu me senti, de uma hora para outra, no limiar do pânico. Aquilo, percebi repentinamente, estava indo muito longe. Longe demais, muito embora marchasse para uma beleza sempre maior, para um sentido cada vez mais profundo. O temor, analisando-o retrospectivamente, foi o de me ver esmagado, desintegrado sob uma pressão de realidade muito superior à que uma mente, acostumada a viver a maior parte do tempo em um confortável mundo de símbolos, talvez pudesse suportar. Na literatura da experiência religiosa, abundam referências aos sofrimentos e terrores que esmagam os que se defrontam, com demasiada rapidez, face a face com qualquer manifestação do Mysterium Tremendum. Em linguagem teológica, esse temor é função da incompatibilidade entre o egotismo do homem e a pureza divina; entre a mesquinhez auto-agravada do homem e o Deus infinito. Segundo Boheme e William Law, podemos dizer que a Divina Luz, em toda a sua intensidade, só pode ser percebida pelas almas pecadoras sob a forma de chamas do purgatório. Doutrina praticamente idêntica é a exposta no Livro tibetano dos mortos, pelo qual a alma que se desprega foge atormentada da Serena Luz do Vazio, e até mesmo das Luzes menos intensas, indo lançar-se, precipitadamente, na confortadora escuridão da personalidade, reencarnando-se em um recém-nascido, transformando-se até em animal, em um infeliz fantasma ou indo ter ao inferno. Há de preferir qualquer coisa ao ígneo refulgir da implacável Realidade — qualquer coisa!
O esquizofrênico é uma alma, não só impura, como também desesperadamente desgostosa com sua situação. Seu tormento consiste na incapacidade de proteger-se contra a realidade, seja ela interior ou exterior (como faz normalmente o indivíduo são) refugiando-se no universo do senso comum, por nós mesmos construído — esse mundo estritamente humano das noções úteis, dos simbolos compartilhados pelos demais, das convenções socialmente aceitáveis. O esquizofrênico é qual homem sob a influência contínua da mescalina e, pois, incapaz de deixar de experimentar uma realidade que ele não pode suportar por lhe faltar pureza; que não pode interpretar por ser ela o mais inflexível dos fatos fundamentais e que, por jamais permitir-lhe encarar o mundo com olhos simplesmente humanos, força-o a interpretar suas incessantes singularidades, sua candente intensidade de valores, como a manifestação da maldade humana ou até cósmica, levando-o às mais desesperadas contramedidas que vão da violência assassina, de um lado da escala, até a catatonia — ou suicídio psicológico —, do outro. E, uma vez iniciada a descida pela rampa infernal, ninguém poderá mais deter-se. Isso, no momento, era por demais evidente para mim.
— Quem enveredar pelo caminho errado — disse eu em resposta às perguntas de meu inquiridor — encontrará, em tudo o que acontecer, uma prova da conspiração que se articula contra si. Tudo servirá de confirmação. A própria respiração estará fazendo parte do sinistro plano.
— Com que então você acha que sabe onde se aloja a loucura? Minha resposta foi um convicto e profundo "Sim".
— E não poderia controlá-la?
— Não; não poderia fazê-lo. Quem começa com medo e ódio, como principais premissas, terá de ir até o fim.
— Você seria capaz — perguntou-me minha esposa — de fixar sua atenção naquilo que o Livro tibetano dos mortos chama de Serena Luz?
Fiquei em dúvida.
— Seria ela capaz de manter o mal afastado, caso você pudesse encará-la? — insistiu ela. — Ou será que você não poderia fitá-la?
Pensei por algum tempo para poder responder e, por fim, disse:
— Talvez; talvez o conseguisse. Mas só se houvesse lá alguém que pudesse esclarecer-me a respeito da Serena Luz. Não é possível fazer-se isso a sós. Daí a razão, creio eu, para o ritual tibetano — assentar-se alguém ao nosso lado, durante todo o tempo, para dizer o que vai ocorrendo.
Depois de escutar a gravação dessa parte da experiência, apanhei meu exemplar da tradução do Livro tibetano dos mortos por Evans-Wentz e o abri ao acaso: "Ó tu, que nasceste nobre! Não permitas que tua mente seja distraída". Esse era o problema: permanecer sem distrair-se. Sem se distrair ante a recordação de pecados passados; ante a evocação de prazeres, a amarga lembrança de antigos erros e humilhações; ante todos os temores, ódios e ansiedades que, de ordinário, eclipsam a Luz. O que esses monges budistas faziam com os mortos e os agonizantes não poderia ser feito com os insanos pelo psiquiatra moderno? Que haja uma voz para lhes assegurar, durante as horas de vigília — e até mesmo enquanto dormem —, que, a despeito de todo o terror, de toda a perplexidade e confusão, a Realidade fundamental permanece imutável e é idêntica, em sua substância, à luz interior, mesmo à da alma mais cruelmente atormentada. Por meio de artifícios tais como gravadores, relógios de controle de circuitos, sistemas de alto-falantes, inclusive distribuídos pelos travesseiros, seria facílimo fazer com que os internados, mesmo em casas de saúde pobres em pessoal, fossem constantemente doutrinados sobre esse fato primordial. Talvez algumas dessas almas desgarradas pudessem ser assim auxiliadas na obtenção de um certo controle sobre o universo onde foram condenados a viver e que, a um só tempo maravilhoso e aterrador, é, no entanto, permanentemente inumano, sempre totalmente incompreensível.
Algum tempo depois fui afastado do inquietante esplendor de minha cadeira de jardim. Caindo em parábolas verdes do alto de uma sebe, a folhagem da hera luzia com um brilho vítreo que lembrava o jade. Logo após, um arbusto em flor surgiu repentinamente em meu campo visual. Suas flores rubras tinham tanta vida que pareciam a ponto de falar, voltadas para cima, para o azul do céu. Tal como a cadeira sob o caramanchão, elas chamavam demais minha atenção. Desviei o olhar para as folhas e descobri um caprichoso intricado das mais delicadas luzes e sombras no verde, a pulsar misteriosamente.
Roses:
The flowers are easy to paint,
The leaves difficult. *
*[Rosas:/ É fácil pintar-lhes as flores,/ Difíceis são as folhas.]
O haiku de Shiki (que cito na tradução de F. H. Blyth) exprime, de modo indireto, exatamente o que então senti — a excessiva, a por demais evidente beleza das flores, contrastando com o milagre mais sutil de sua folhagem.
Saímos para a rua. Um grande automóvel azul-claro estava estacionado junto à calçada. Ao vê-lo, fui repentinamente tomado de enorme alegria. Que prazer, que absurda satisfação comigo mesmo provinha daquelas superfícies abauladas do mais luzente esmalte! O homem o criara à sua própria imagem (ou melhor, segundo a imagem de seu personagem favorito no mundo de ficção). Ri até as lágrimas rolarem-me pelas faces.
4. O Mar Vermelho de Tráfego
Voltamos para casa. A mesa estava posta. Alguém, que ainda não estava identificado com meu ego, comeu com um apetite devorador. De longe, e sem revelar muito interesse, eu o observava.
Depois de comer, entramos no carro e saímos para um passeio. Os efeitos da mescalina já estavam se dissipando; mas as flores dos jardins ainda vibravam no limiar do sobrenatural, as pimenteiras e alfarrobeiras, ao longo das alamedas laterais, ainda pertenciam, visivelmente, a um bosque sagrado. O Éden alternava com Dodona[10], Yggdrasil[11], com a Rosa mística. Eis que, abruptamente, paramos em uma interseção, esperando nossa vez de cruzar o Sunset Boulevard. Diante de nós, passavam os automóveis em uma torrente uniforme — milhares deles, todos brilhantes e polidos qual sonho de um anunciante, cada um deles mais ridículo que o precedente. Mais uma vez caí num riso convulsivo. Por fim, o Mar Vermelho do tráfego ficou para trás e passamos a percorrer novo oásis de árvores, gramados e rosas.
Em poucos minutos chegamos a um ponto culminante das elevações que dominam a cidade, e pudemos observá-la a espalhar-se abaixo de nós. Foi com desapontamento que constatei parecer-se ela, no momento, exatamente com a cidade que eu vira dali em outras ocasiões. Para mim, a transfiguração era inversamente proporcional à distância — quanto mais perto, mais sublimemente diferentes me pareciam as coisas. Não havia quase diferença em relação a esse vasto e confuso panorama.
Prosseguimos e, enquanto permanecemos nas elevações, fomos descortinando, uns após outros, panoramas distantes que, por essa mesma razão, não se apresentavam diferentes dos do nível normal de percepção, o qual está bem abaixo do ponto de transfiguração. O encantamento recomeçou quando descemos em direção a um bairro novo, deslizando por entre duas fileiras de casas. E, a despeito do notório mau gosto da arquitetura, houve repetição daquelas diversidades transcendentais, reflexos do paraíso entrevisto naquela manhã. Chaminés de tijolos e complicados telhados verdes brilhavam à luz do sol qual fragmentos da Nova Jerusalém. E, de súbito, vi aquilo mesmo que Guardi vira e (com que incomparável virtuosidade!) com tanta freqüência soubera transportar para suas telas — uma parede de estuque atravessada por um risco de sombra; nua, porém incrivelmente bela; vazia, mas prenhe de todo o significado e todo o mistério da existência. Dentro de uma fração de segundo, mais uma vez a Revelação se esvaiu. O carro prosseguira em sua marcha e o tempo havia posto a descoberto outra manifestação da eterna Peculiaridade. "Dentro da semelhança existe diferença. Mas não é absolutamente intenção de Buda algum que a diferença seja diversa da semelhança. Desejam eles que haja tanto totalidade como diferenciação." Assim, por exemplo, esta moita de gerânios brancos e rubros é inteiramente diferente daquela parede de estuque que ficou a uns cem metros para trás. Mas o existir de ambas é idêntico, é a mesma e eterna essência de sua transitoriedade. Uma hora mais tarde, com mais quinze quilômetros de percurso e a visita ao maior drugstore do mundo lá bem para trás, voltamos para casa, já tendo eu tornado àquele estado reconfortante, embora profundamente insatisfatório, conhecido como "estar em seu juízo perfeito".
Depois de comer, entramos no carro e saímos para um passeio. Os efeitos da mescalina já estavam se dissipando; mas as flores dos jardins ainda vibravam no limiar do sobrenatural, as pimenteiras e alfarrobeiras, ao longo das alamedas laterais, ainda pertenciam, visivelmente, a um bosque sagrado. O Éden alternava com Dodona[10], Yggdrasil[11], com a Rosa mística. Eis que, abruptamente, paramos em uma interseção, esperando nossa vez de cruzar o Sunset Boulevard. Diante de nós, passavam os automóveis em uma torrente uniforme — milhares deles, todos brilhantes e polidos qual sonho de um anunciante, cada um deles mais ridículo que o precedente. Mais uma vez caí num riso convulsivo. Por fim, o Mar Vermelho do tráfego ficou para trás e passamos a percorrer novo oásis de árvores, gramados e rosas.
Em poucos minutos chegamos a um ponto culminante das elevações que dominam a cidade, e pudemos observá-la a espalhar-se abaixo de nós. Foi com desapontamento que constatei parecer-se ela, no momento, exatamente com a cidade que eu vira dali em outras ocasiões. Para mim, a transfiguração era inversamente proporcional à distância — quanto mais perto, mais sublimemente diferentes me pareciam as coisas. Não havia quase diferença em relação a esse vasto e confuso panorama.
Prosseguimos e, enquanto permanecemos nas elevações, fomos descortinando, uns após outros, panoramas distantes que, por essa mesma razão, não se apresentavam diferentes dos do nível normal de percepção, o qual está bem abaixo do ponto de transfiguração. O encantamento recomeçou quando descemos em direção a um bairro novo, deslizando por entre duas fileiras de casas. E, a despeito do notório mau gosto da arquitetura, houve repetição daquelas diversidades transcendentais, reflexos do paraíso entrevisto naquela manhã. Chaminés de tijolos e complicados telhados verdes brilhavam à luz do sol qual fragmentos da Nova Jerusalém. E, de súbito, vi aquilo mesmo que Guardi vira e (com que incomparável virtuosidade!) com tanta freqüência soubera transportar para suas telas — uma parede de estuque atravessada por um risco de sombra; nua, porém incrivelmente bela; vazia, mas prenhe de todo o significado e todo o mistério da existência. Dentro de uma fração de segundo, mais uma vez a Revelação se esvaiu. O carro prosseguira em sua marcha e o tempo havia posto a descoberto outra manifestação da eterna Peculiaridade. "Dentro da semelhança existe diferença. Mas não é absolutamente intenção de Buda algum que a diferença seja diversa da semelhança. Desejam eles que haja tanto totalidade como diferenciação." Assim, por exemplo, esta moita de gerânios brancos e rubros é inteiramente diferente daquela parede de estuque que ficou a uns cem metros para trás. Mas o existir de ambas é idêntico, é a mesma e eterna essência de sua transitoriedade. Uma hora mais tarde, com mais quinze quilômetros de percurso e a visita ao maior drugstore do mundo lá bem para trás, voltamos para casa, já tendo eu tornado àquele estado reconfortante, embora profundamente insatisfatório, conhecido como "estar em seu juízo perfeito".
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10 Dodona - templo de um famoso oráculo de Zeus no Épiro. O Zeus de Dodona era materializado por um carvalho sagrado, cujo murmúrio da folhagem era interpretado pelo sacerdote.
11 Yggdrasil - freixo gigante da mitologia escandinava, que simboliza o Universo.
11 Yggdrasil - freixo gigante da mitologia escandinava, que simboliza o Universo.
5. Conclusão - Comunhão com o Deus Vegetal
Parece extremamente improvável que a humanidade, de um modo geral, algum dia seja capaz de passar sem paraísos artificiais. A maioria dos homens e mulheres leva uma vida tão sofredora em seus pontos baixos e tão monótona em suas eminências, tão pobre e limitada, que os desejos de fuga, os anseios para superar-se, ainda por uns breves momentos, estão e têm estado sempre entre os principais apetites da alma. A arte e a religião, os carnavais e as saturnais, a dança e a apreciação da oratória, tudo isso tem servido, na frase de H. G. Wells, de Portas na muralha. E ha vida individual, para uso cotidiano, sempre houve drogas inebriantes. Todos os sedativos e narcóticos vegetais, todos os eufóricos derivados de plantas, todos os entorpecentes que se extraem de frutos ou raízes, todos, sem exceção, são conhecidos e vêm sendo sistematicamente empregados pelos seres humanos, desde épocas imemoriais. E a esses modificadores naturais da percepção, a ciência moderna adicionou sua cota de produtos sintéticos — o cloral, a benzedrina, os brometos e os barbituratos.
A maior parte dessas substâncias não pode ser atualmente adquirida, a não ser mediante prescrição médica ou então ilegalmente e com graves riscos. O Ocidente só permite o uso irrestrito do fumo e do álcool. Todas as outras Portas químicas na muralha são rotuladas como estupefacientes e seus consumidores ilegais são viciados.
Gastamos, hoje em dia, muito mais em cigarros e bebidas que em educação. E nada há de surpreendente nesse fato. O impulso para fugir a nós mesmos e ao que nos rodeia está presente em cada um de nós, quase todo o tempo. O estímulo para fazer algo pelas crianças só é forte nos pais, e, mesmo neles, tão-somente durante os poucos anos de vida escolar de seus filhos. Do mesmo modo, não nos surpreende a atitude geral com relação ao fumo e à bebida.
A despeito das legiões sempre crescentes de alcoólatras inveterados, das centenas de milhares de pessoas que são anualmente mutiladas ou mortas por motoristas embriagados, os humoristas populares ainda armam situações jocosas girando em torno do álcool e dos que a ele se entregam. E, a despeito das provas ligando os cigarros ao câncer do pulmão, praticamente todo o mundo encara o hábito de fumar como algo quase tão normal e natural quanto comer. Do ponto de vista do racionalista utilitário, isto pode parecer estranho, mas, para o versado em história, não seria de esperar outra coisa. Jamais a inabalável convicção na existência do Inferno conseguiu evitar que os cristãos fizessem aquilo que lhes sugeria a ambição, a luxúria ou a cobiça. O câncer pulmonar, os acidentes de tráfego e os milhões de criaturas miseráveis e criadoras de miséria em razão do alcoolismo são realidades ainda mais positivas que o Inferno no tempo de Dante. Mas tudo isso é remoto e secundário, se comparado com a realidade vivida e presente de uma ânsia por serenidade ou liberdade, por um cigarro ou uma taça.
Nossa era, entre outras coisas, é a idade do automóvel e da vertigem da velocidade. O álcool é incompatível com a segurança nas estradas; e sua produção, bem como a do tabaco, condena praticamente à esterilidade muitos milhões de hectares dos mais férteis solos. Os problemas criados pelo álcool e pelo tabaco não podem ser — e isto não admite contestação — resolvidos pela proibição. O impulso universal e permanente para a autotranscendência não pode ser dominado pelo simples fechar das solicitadas Portas na muralha. A única política razoável seria abrir outras portas melhores, na esperança de induzir os seres humanos a trocar seus velhos maus hábitos por práticas novas e menos prejudiciais. Algumas dessas novas portas seriam de natureza social e tecnológica, outras religiosas ou psicológicas, e outras mais seriam dietéticas, atléticas e educacionais. Mas é inevitável que perdure, apesar de tudo, a necessidade de freqüentes excursões químicas para longe da intolerável personalidade e dos repulsivos arredores de cada um. Precisar-se-ia, pois, de uma nova droga que aliviasse e consolasse nossos semelhantes que sofrem, sem lhes causar dano maior, após um período prolongado de tempo, do que o bem que ela lhes pudesse proporcionar de imediato. Tal droga teria de ser eficaz em doses diminutas, e sintetizável. A ausência dessas características faria com que sua produção, tal qual a do vinho, da cerveja, das bebidas fortes e do tabaco, fosse interferir com a produção dos alimentos e das fibras essenciais. Teria de ser menos tóxica que o ópio ou a cocaína, menos propensa a produzir conseqüências sociais indesejáveis que o álcool ou os barbituratos, menos prejudicial ao coração e aos pulmões que o alcatrão e a nicotina dos cigarros. E, por suas características positivas, deveria produzir modificações mais interessantes na percepção, mais intrinsecamente proveitosas que a mera ação sedativa ou a propensão aos sonhos e às impressões de onipotência ou o escape às inibições.
A mescalina é quase que completamente inócua para a maioria das pessoas. Ao contrário do álcool, ela não conduz o paciente a esse tipo de ações descomedidas das quais resultam alterações, crimes violentos e acidentes de tráfego. Um indivíduo sob a influência da mescalina vive sossegadamente para si mesmo. Além do mais, o que então o absorve é uma experiência das mais esclarecedoras e que dele não exige, em troca (e isto é certamente importante), quaisquer sensações posteriores de angústia. Pouco sabemos acerca das conseqüências remotas do uso sistemático da mescalina. Os índios que mascam pedaços de peiote não parecem ser física ou moralmente degradados pelo hábito. No entanto, as provas de que dispomos são ainda poucas e falhas [12].
Embora indiscutivelmente superior à cocaína, ao ópio, ao álcool e ao fumo, a mescalina ainda não é a droga ideal. De par com a maioria de indivíduos que encontram a satisfação na ingestão do alcalóide, há uma minoria a quem a droga só proporciona o inferno ou o purgatório. Além disso, para um produto que iria ser entregue, como o álcool, ao consumo indiscriminado, seus efeitos perduram por um prazo exageradamente longo. Mas a química e a fisiologia são, hoje em dia, capazes de realizar praticamente qualquer coisa. Se os psicologistas e sociologistas chegarem a definir qual seja o ideal, pode-se confiar nos neurologistas e farmacologistas para descobrir os meios de atingi-lo ou, no mínimo, aproximar-se dele muito mais (mesmo porque, pela própria natureza das coisas, talvez jamais se consiga conceber inteiramente qual seja esse ideal) do que foi possível com o vinho do passado ou com o uísque, a maconha e os barbituratos do presente.
O impulso para superar a personalidade autoconsciente é, como já o disse, um anseio capital da alma. Quando, seja por que razão, os seres humanos vêem baldados os seus esforços para superarem a si mesmos pelo culto, pelas boas ações e pela atividade intelectual, tornam-se propensos a recorrer às drogas substitutas da religião — o álcool e as "pílulas inocentes" no moderno Ocidente, o álcool e o ópio no Oriente, o haxixe no mundo maometano, o álcool e a maconha na América Central, o álcool e a coca nos Andes, o álcool e os barbituratos nas regiões mais adiantadas da América do Sul. Em Poisons sacrés, ivresses divines [Venenos sagrados, êxtases divinos], Philippe de Félice escreveu exaustivamente, e com riqueza de documentação, sobre os laços imemoriais que ligam a religião à ingestão de drogas. A seguir, ora resumindo, ora transcrevendo, apresento suas conclusões:
O emprego, para fins religiosos, de substâncias tóxicas, é "extraordinariamente difundido [...] As práticas estudadas neste volume podem ser observadas em qualquer região da Terra, tanto entre os povos primitivos como no seio daqueles que já atingiram um elevado índice de civilização. Não estamos, pois, lidando com fatos excepcionais que poderiam ser, com razão, postos à margem; mas com um fenômeno geral e, dentro da mais ampla acepção da palavra, humano; com um tipo de fenômeno que não pode ser desprezado por quem quer que busque descobrir que é a religião e quais as necessidades profundas a que ela tem de satisfazer".
Teoricamente, cada um de nós deveria ser capaz de encontrar a autotranscendência a partir de uma forma de religião pura ou aplicada. Mas, na prática, parece ser sumamente improvável que esse anseio pelo apogeu seja algum dia realizável. Há (e é fora de dúvida que sempre houve) homens e mulheres virtuosos e pios, para quem, infelizmente, apenas a piedade não basta. O falecido G. K. Chesterton, que escrevia com lirismo idêntico tanto sobre a bebida quanto sobre a fé, pode servir de eloqüente exemplo desse grupo.
As igrejas modernas, excluídas umas poucas seitas protestantes, toleram o álcool; no entanto, mesmo as mais tolerantes jamais procuraram converter a bebida ao cristianismo — isto é, sacramentar seu uso. O pio alcoólatra vê-se forçado a manter, em com-partimentos estanques, sua religião e seu substituto para ela. E talvez isso seja inevitável. A bebida não pode ser incluída na liturgia, a não ser nas religiões que não dêem valor ao decoro. O culto de Baco ou da divindade celta da cerveja eram festins ruidosos e dissolutos. Os ritos cristãos são incompatíveis com a embriaguez, ainda que de cunho religioso. Isso não prejudica os fabricantes de bebidas, mas é muito mau para o cristianismo. Um sem-número de pessoas deseja experimentar a autotranscendência, e gostaria de encontrá-la no tempo. Mas "as ovelhas famintas voltam-se para o céu e não são atendidas". Tomam parte nos ritos, escutam os sermões, repetem as orações; mas sua sede não se aplaca. Desapontadas, voltam-se para a garrafa. Ao menos por certo tempo, e de certa forma, encontram o que querem. A igreja pode continuar a ser freqüentada; mas já não será mais do que o Banco Musical do Erewhon [13] de Butler. Deus pode continuar a ser reconhecido como tal, mas a Ele só será concedida divindade no campo verbalístico, apenas em sentido estritamente figurado. O verdadeiro objeto de culto é a garrafa, e a única experiência religiosa é aquele estado de desregramen-to e belicosa euforia que se segue à ingestão do terceiro aperitivo.
Vemos, pois, que o cristianismo e o álcool não se misturam nem poderiam fazê-lo. Já não há tanta incompatibilidade com relação à mescalina. Isso tem sido demonstrado por várias tribos de índios, desde o Texas até o Estado de Wisconsin. Entre essas tribos, encontram-se algumas filiadas à Igreja Americana Nativa, seita cujo principal rito é uma espécie de Ágape Cristão Primitivo ou Festa do Amor, em que fatias de peiote substituem o pão e o vinho do sacramento. Esses índios americanos encaram o cacto como preciosa dádiva de Deus aos índios e consideram seus efeitos manifestação do divino Espírito.
O professor J. S. Slotkin — um dos pouquíssimos homens brancos que, até hoje, participaram dos ritos de uma congregação peiotista — relata, falando de seus companheiros de ritual, que eles "em absoluto ficam narcotizados ou embriagados [...] Jamais perdem o ritmo ou balbuciam, como aconteceria com indivíduos inebriados pelo álcool ou por estupefacientes [...] São todos calmos, corteses e respeitam-se uns aos outros. Jamais estive em qualquer templo de homens brancos onde pudesse encontrar tanto respeito e religiosidade". Poderíamos perguntar: "Que estariam esses devotos e bem-comportados peiotistas sentindo?". Claro que não há de ser o brando sentimento de virtude que embala o comum dos freqüentadores do ofício dominical, durante noventa minutos de solidão. Nem mesmo esses fervorosos sentimentos, inspirados pelos pensamentos no Criador, no Redentor, no Juiz e no Espírito Santo, que animam os piedosos. Para esses membros da Igreja Americana Nativa, a experiência religiosa é algo de mais direto e esclarecedor, de mais espontâneo, e tem muito menos de produto imperfeito da mente superficial e restrita. Por vezes (ainda segundo as observações colhidas pelo dr. Slotkin) têm visões que podem ser até do Próprio Cristo. De outras, escutam a voz do Grande Espírito. Ainda em outras se apercebem da presença de Deus, bem como de suas falhas pessoais, as quais terão de ser corrigidas para que possa ser cumprida Sua vontade. As conseqüências práticas dessa abertura química das Portas para o Outro Mundo parecem ser excelentes. O dr. Slotkin testemunha que os peiotistas habituais são, em geral, mais diligentes, mais temperantes (muitos são completamente abstêmios) e mais pacíficos que os não-peiotistas. Uma árvore que apresente frutos tão bons não pode ser condenada como maléfica. Ao sacramentar o uso do peiote, os índios da Igreja Americana Nativa fizeram algo que é, a um só tempo, psicologicamente correto e historicamente respeitável. Nos primeiros séculos do cristianismo, muitos ritos e festas pagãos foram, por assim dizer, batizados e postos ao serviço da Igreja. Essas festas nada tinham de edificantes, mas aliviavam uma certa fome psicológica; e, em vez de tentar suprimi-las, os primeiros missionários tiveram o bom senso de aceitá-las pelo que de útil possuíam — permitir à alma satisfazer seus impulsos fundamentais — e incorporá-las ao código da nova religião. Em essência, idêntico foi o procedimento da Igreja Americana Nativa. Adotaram um costume pagão (por sinal bem mais inspirador e esclarecedor do que as sensuais orgias e mascaradas, retiradas ao paganismo europeu) e deram-lhe um significado cristão.
Embora só recentemente tenham sido introduzidos na região setentrional dos Estados Unidos, o consumo do peiote e o culto nele baseado tornaram-se importantes símbolos do direito do índio à independência espiritual. Alguns indígenas reagiram à hegemonia do branco tornando-se americanizados, enquanto outros se recolhiam a seus costumes tradicionais. Mas um terceiro grupo procurou fazer o melhor uso das duas civilizações e desses outros mundos de transcendental experiência onde a alma sabe que é livre e tem uma essência divina. Daí nasceu a Igreja Americana Nativa. Nela, dois grandes apetites da alma — o impulso para a independência e a autodeterminação, e o estímulo para a superação de si própria — fundiram-se e passaram a ser interpretados à luz de um terceiro — a necessidade de render culto, de justificar, perante o homem, as razões de Deus, de explicar o universo por meio de uma teologia coerente.
Lo, the poor Inâian, whose untutored mina Clothes him in front, but leaves him
bare behind. *
* [índio infeliz, a quem a alma falaz,/ Cobre-lhe a frente e o deixa nu por trás.]
Mas, em verdade, somos nós, os brancos ricos e altamente educados, que ostentamos a nudez de nossas costas. Cobrimos nossa paradisíaca aparência anterior com alguma filosofia — cristão, marxista, físico-freudiana —, mas nos descuramos da outra face, deixando-a à mercê de todos os ventos que possam soprar. O pobre índio, por outro lado, se tem valido do espírito para proteger-lhe a retaguarda, complementando a folha de parreira teológica com a tanga da experiência transcendental.
Não sou tão tolo a ponto de relacionar o que acontece sob o efeito da mescalina ou de qualquer outra droga, existente ou que possa vir a existir, com a compreensão do fim e do derradeiro objetivo da vida humana: a Luz, a Beatífica Visão. Tudo o que estou sugerindo pode ser assim resumido: a experiência com a mescalina é o que os teólogos católicos chamam de "uma graça gratuita", não necessariamente para a salvação, mas potencialmente valiosa e que, se realizada, será prazerosamente aceita. Ver-se livre da rotina e da percepção ordinária, ser-lhe permitido contemplar, por umas poucas horas em que a noção de tempo se esvai, os mundos exterior e interior, não como eles se mostram ao animal dominado pela idéia de sobrevivência ou ao ser humano obcecado por termos e idéias, mas tais como são percebidos pela Onisciência — direta e incondicionalmente —, eis uma experiência de inestimável valor para qualquer indivíduo, especialmente para o intelectual, pois este é, por definição, o homem para quem, na frase de Goethe, "a palavra é essencialmente proveitosa". Ele é o homem para quem "o que percebemos pela visão nos é estranho e, pois, não nos deve impressionar profundamente". Não obstante, embora fosse ele mesmo um intelectual e um dos supremos mestres da linguagem, Goethe nem sempre concordou com sua própria conceituação da palavra. "Falamos demais" — escreveu ele em sua madureza. "Deveríamos falar menos e desenhar mais. Eu, pessoalmente, gostaria de renunciar por completo à fala e, imitando a Natureza organizada, comunicar por esboços tudo o que tivesse a dizer. Aquela figueira, esta pequena serpente, o casulo aguardando serenamente o futuro no umbral de minha janela, tudo isso são importantes signos. Quem fosse capaz de decifrar corretamente seu significado poderia pôr inteiramente de lado tanto a palavra escrita quanto a falada. Quanto mais penso nisso, mais encontro futilidade, mediocridade e até mesmo (sou levado a dize-lo) fatuidade na palavra. Contrastando com isso, como nos assombram a gravidade e o silêncio da Natureza quando com ela deparamos face a face, concentrados diante de uma colina estéril ou da desolação de um outeiro que a erosão desgastou."
Jamais poderemos passar sem a palavra e os outros sistemas de símbolos, pois foi graças a eles, e somente por eles, que nos elevamos acima das bestas, atingindo o nível de seres humanos. Mas poderemos facilmente nos tornar tanto vítimas como beneficiários desses sistemas. Precisamos aprender como manejar eficientemente as palavras mas, ao mesmo tempo, devemos preservar e, se necessário, intensificar nossa capacidade de olhar o mundo diretamente, e não através da lente semi-opaca das idéias, que distorce cada fato, diluindo-o no lugar-comum das denominações genéricas ou das abstrações explanatórias.
Literária ou científica, liberal ou especializada, toda a nossa educação é predominantemente verbalista e, pois, não consegue atingir plenamente seus objetivos. Em vez de transformar crianças em adultos completamente desenvolvidos, ela produz estudantes de ciências naturais que não têm a menor noção do papel primordial da Natureza como elemento fundamental da experiência; entrega ao mundo estudantes de humanidades que nada sabem sobre a humanidade, seja ela a sua ou a de quem mais for.
Os psicologistas adeptos do gestaltismo, tais como Samuel Renshaw, conceberam métodos para ampliar a gama e aumentar a acuidade das percepções humanas; mas aplicá-los-ão nossos educadores? Não.
Mestres de todos os campos das atividades psicofísicas — da observação ao tênis, do equilibrismo à reza — descobriram, pelo método das tentativas, as condições ideais de execução, dentro de seus setores peculiares. Mas teria alguma grande Fundação algum dia financiado um trabalho destinado a coordenar essas descobertas empíricas para encontrar as bases gerais, teóricas e práticas, do aumento do poder criador? Novamente, tanto quanto me é dado conhecer, terei de responder negativamente.
Adivinhos e charlatães de todas as espécies ensinam um sem-número de métodos para aquisição de alegria, saúde, paz de espírito.
E, para muitos de seus clientes, a maioria desses métodos é realmente eficaz. Mas acaso vemos psicologistas, filósofos e sacerdotes respeitáveis descerem corajosamente a essas estranhas cavernas, por vezes infectas, no fundo das quais a pobre Verdade vê-se, tão amiúde, forçada a sentar-se? Mais uma vez, a resposta é "Não".
E, agora, examinemos o histórico da pesquisa sobre a mescalina. Há setenta anos, homens de inegável capacidade descreveram as transcendentais experiências por que passaram aqueles que, gozando boa saúde, em pleno uso de suas faculdades mentais, e sob condições adequadas, ingeriram a droga. Quantos filósofos, quantos teólogos, quantos educadores tiveram a curiosidade de abrir esta Porta na muralha? A resposta é: "Praticamente nenhum". Em um mundo onde a educação é transmitida principalmente por meio da palavra, às pessoas de grande instrução torna-se quase impossível dar séria atenção a quaisquer outras coisas que não sejam palavras ou idéias. Há sempre dinheiro a gastar, teses a serem defendidas, douta e insensata pesquisa a se orientar para aquilo que, na opinião dos eruditos, é o problema fundamental. "Que é que induziu quem a dizer tal coisa e em tal ocasião?" Mesmo nesta era da tecnologia, as humanidades verbalistas são dignificadas. Os conhecimentos objetivos que nos permitem tomar contato direto com determinados fatos de nossa existência são quase que completamente desprezados. Um catálogo; uma bibliografia; as obras completas, palavra por palavra, de um poetastro de terceira classe; um estupendo índice que represente a última palavra em índices — enfim, qualquer projeto de proporções grandiosas obterá fatalmente aprovação e apoio financeiro. Mas, quando se trata de querer saber como cada um de nós, nossos filhos e netos, poderemos nos tornar mais perceptíveis, mais intensamente cônscios da realidade interior e exterior, mais acessíveis ao Espírito, menos aptos a adoecer vítimas de nossos próprios erros psicológicos e mais capazes de controlar nosso sistema nervoso autônomo — quando, pois, se trata de qualquer forma de educação objetiva mais importante (e, portanto, mais provável de alcançar aplicação prática) que a ginástica sueca, não haverá pessoa respeitável, em qualquer universidade ou igreja de renome, que faça qualquer coisa em seu benefício. Os verbalistas desconfiam dos não-verba-listas; os racionalistas temem os fatos concretos, não racionais; os intelectuais acham que "o que percebemos pela visão (ou por qualquer outra forma) nos é estranho e, pois, não nos deve impressionar profundamente". Além do mais, a educação, no campo dos conhecimentos objetivos, não se adapta a nenhum dos esquemas existentes. Não é religião, neurologia, ginástica, educação moral e cívica, nem tampouco psicologia experimental. Assim sendo, esse assunto simplesmente não existe, para fins acadêmicos e eclesiásticos, e bem pode ser completamente ignorado ou então relegado, com um sorriso condescendente, àqueles a quem os fariseus da ortodoxia verbalista chamam maníacos, impostores, charlatães e desprezíveis amadores.
"Sempre achei" — escreveu Blake com um certo amargor — "que os anjos possuem a vaidade de se considerarem os únicos sábios. E isso eles o fazem com uma insolência confiante que brota de um raciocínio sistemático."
Raciocínio sistemático é algo sem o qual nós, seja como espécie ou como indivíduo, não podemos passar. Mas creio que tampouco poderemos prescindir da percepção direta — e quanto menos sistemática melhor — dos mundos interior e exterior que nos serviram de berço, para que possamos preservar a sanidade mental. Essa realidade objetiva possui um sentido infinito que ultrapassa toda a compreensão e, no entanto, permite ser direta e, de certa forma, totalmente percebida. É uma transcendência característica de outra ordem que não a humana, embora nos possa ser presente como uma imanência palpável, como experiência de que houvéssemos participado. Ser esclarecido é ser sempre cônscio da realidade plena em sua diversidade intrínseca — ter ciência disso, sem deixar de velar por sua sobrevivência como animal, de pensar e sentir como ser humano, de recorrer, sempre que necessário, ao raciocínio sistemático. Nosso objetivo é provar que sempre estivemos onde deveríamos estar. Infelizmente, tornamos a missão excessivamente difícil para nós mesmos Mas, nesse meio-tempo, surgiram "graças gratuitas" sob a forma de realizações parciais e fugazes. Sob um sistema de educação mais realístico, menos verbalista que o nosso, deveria ser permitido a cada Anjo (na acepção que Blake dava a essa palavra), à guisa de repouso sabático — e, se necessário, dever-se-ia incitá-lo ou mesmo compeli-lo —, realizar um passeio, vez por outra, valendo-se de Portas químicas na muralha, no mundo da experiência transcendental. Se isso os apavorasse, seria lamentável, mas ainda assim talvez lhes fosse salutar. E melhor ainda seria se ela lhes proporcionasse, por uns breves momentos, que haveriam de parecer eternos, uma radiosa inspiração. Mas, em ambos os casos, o Anjo haveria de perder um pouco da confiante insolência nascida do raciocínio sistemático e da certeza de haver lido todos os livros.
Santo Tomás de Aquino, já próximo ao fim de sua vida, conheceu a Contemplação Inspirada. Daí em diante, não mais prosseguiu no livro que iniciara. Comparado com isto, tudo mais que ele havia lido, e sobre o qual discutira e escrevera — Aristóteles e as Sentenças, as Questões, as Proposições, as magestosas Summas* —, valia tanto quanto o joio ou a palha. Para a maioria dos intelectuais, tal greve de braços cruzados seria desaconselhável ou mesmo moralmente errada. Mas o Angélico doutor havia praticado mais o raciocínio sistemático que uma dúzia de Anjos comuns reunidos, e já se achava próximo a seu fim. Conquistara o direito, nesses últimos meses de vida terrena, de trocar mera palha ou joio simbólico pelo pão da Verdade real e substancial. Anjos de categoria inferior, e com melhores perspectivas de longevidade, voltariam à palha. Mas o homem que vem de cruzar de novo a Porta na muralha jamais será igual ao que partira para essa viagem. Será, daí por diante, mais sábio, embora menos arraigado em suas convicções, mais feliz, ainda que menos satisfeito consigo mesmo, mais humilde em concordar com a própria ignorância, embora esteja em melhores condições para compreender a afinidade entre as palavras e as coisas, entre o raciocínio sistemático e o insondável mistério que ele procura, sempre em vão, compreender.
A maior parte dessas substâncias não pode ser atualmente adquirida, a não ser mediante prescrição médica ou então ilegalmente e com graves riscos. O Ocidente só permite o uso irrestrito do fumo e do álcool. Todas as outras Portas químicas na muralha são rotuladas como estupefacientes e seus consumidores ilegais são viciados.
Gastamos, hoje em dia, muito mais em cigarros e bebidas que em educação. E nada há de surpreendente nesse fato. O impulso para fugir a nós mesmos e ao que nos rodeia está presente em cada um de nós, quase todo o tempo. O estímulo para fazer algo pelas crianças só é forte nos pais, e, mesmo neles, tão-somente durante os poucos anos de vida escolar de seus filhos. Do mesmo modo, não nos surpreende a atitude geral com relação ao fumo e à bebida.
A despeito das legiões sempre crescentes de alcoólatras inveterados, das centenas de milhares de pessoas que são anualmente mutiladas ou mortas por motoristas embriagados, os humoristas populares ainda armam situações jocosas girando em torno do álcool e dos que a ele se entregam. E, a despeito das provas ligando os cigarros ao câncer do pulmão, praticamente todo o mundo encara o hábito de fumar como algo quase tão normal e natural quanto comer. Do ponto de vista do racionalista utilitário, isto pode parecer estranho, mas, para o versado em história, não seria de esperar outra coisa. Jamais a inabalável convicção na existência do Inferno conseguiu evitar que os cristãos fizessem aquilo que lhes sugeria a ambição, a luxúria ou a cobiça. O câncer pulmonar, os acidentes de tráfego e os milhões de criaturas miseráveis e criadoras de miséria em razão do alcoolismo são realidades ainda mais positivas que o Inferno no tempo de Dante. Mas tudo isso é remoto e secundário, se comparado com a realidade vivida e presente de uma ânsia por serenidade ou liberdade, por um cigarro ou uma taça.
Nossa era, entre outras coisas, é a idade do automóvel e da vertigem da velocidade. O álcool é incompatível com a segurança nas estradas; e sua produção, bem como a do tabaco, condena praticamente à esterilidade muitos milhões de hectares dos mais férteis solos. Os problemas criados pelo álcool e pelo tabaco não podem ser — e isto não admite contestação — resolvidos pela proibição. O impulso universal e permanente para a autotranscendência não pode ser dominado pelo simples fechar das solicitadas Portas na muralha. A única política razoável seria abrir outras portas melhores, na esperança de induzir os seres humanos a trocar seus velhos maus hábitos por práticas novas e menos prejudiciais. Algumas dessas novas portas seriam de natureza social e tecnológica, outras religiosas ou psicológicas, e outras mais seriam dietéticas, atléticas e educacionais. Mas é inevitável que perdure, apesar de tudo, a necessidade de freqüentes excursões químicas para longe da intolerável personalidade e dos repulsivos arredores de cada um. Precisar-se-ia, pois, de uma nova droga que aliviasse e consolasse nossos semelhantes que sofrem, sem lhes causar dano maior, após um período prolongado de tempo, do que o bem que ela lhes pudesse proporcionar de imediato. Tal droga teria de ser eficaz em doses diminutas, e sintetizável. A ausência dessas características faria com que sua produção, tal qual a do vinho, da cerveja, das bebidas fortes e do tabaco, fosse interferir com a produção dos alimentos e das fibras essenciais. Teria de ser menos tóxica que o ópio ou a cocaína, menos propensa a produzir conseqüências sociais indesejáveis que o álcool ou os barbituratos, menos prejudicial ao coração e aos pulmões que o alcatrão e a nicotina dos cigarros. E, por suas características positivas, deveria produzir modificações mais interessantes na percepção, mais intrinsecamente proveitosas que a mera ação sedativa ou a propensão aos sonhos e às impressões de onipotência ou o escape às inibições.
A mescalina é quase que completamente inócua para a maioria das pessoas. Ao contrário do álcool, ela não conduz o paciente a esse tipo de ações descomedidas das quais resultam alterações, crimes violentos e acidentes de tráfego. Um indivíduo sob a influência da mescalina vive sossegadamente para si mesmo. Além do mais, o que então o absorve é uma experiência das mais esclarecedoras e que dele não exige, em troca (e isto é certamente importante), quaisquer sensações posteriores de angústia. Pouco sabemos acerca das conseqüências remotas do uso sistemático da mescalina. Os índios que mascam pedaços de peiote não parecem ser física ou moralmente degradados pelo hábito. No entanto, as provas de que dispomos são ainda poucas e falhas [12].
Embora indiscutivelmente superior à cocaína, ao ópio, ao álcool e ao fumo, a mescalina ainda não é a droga ideal. De par com a maioria de indivíduos que encontram a satisfação na ingestão do alcalóide, há uma minoria a quem a droga só proporciona o inferno ou o purgatório. Além disso, para um produto que iria ser entregue, como o álcool, ao consumo indiscriminado, seus efeitos perduram por um prazo exageradamente longo. Mas a química e a fisiologia são, hoje em dia, capazes de realizar praticamente qualquer coisa. Se os psicologistas e sociologistas chegarem a definir qual seja o ideal, pode-se confiar nos neurologistas e farmacologistas para descobrir os meios de atingi-lo ou, no mínimo, aproximar-se dele muito mais (mesmo porque, pela própria natureza das coisas, talvez jamais se consiga conceber inteiramente qual seja esse ideal) do que foi possível com o vinho do passado ou com o uísque, a maconha e os barbituratos do presente.
O impulso para superar a personalidade autoconsciente é, como já o disse, um anseio capital da alma. Quando, seja por que razão, os seres humanos vêem baldados os seus esforços para superarem a si mesmos pelo culto, pelas boas ações e pela atividade intelectual, tornam-se propensos a recorrer às drogas substitutas da religião — o álcool e as "pílulas inocentes" no moderno Ocidente, o álcool e o ópio no Oriente, o haxixe no mundo maometano, o álcool e a maconha na América Central, o álcool e a coca nos Andes, o álcool e os barbituratos nas regiões mais adiantadas da América do Sul. Em Poisons sacrés, ivresses divines [Venenos sagrados, êxtases divinos], Philippe de Félice escreveu exaustivamente, e com riqueza de documentação, sobre os laços imemoriais que ligam a religião à ingestão de drogas. A seguir, ora resumindo, ora transcrevendo, apresento suas conclusões:
O emprego, para fins religiosos, de substâncias tóxicas, é "extraordinariamente difundido [...] As práticas estudadas neste volume podem ser observadas em qualquer região da Terra, tanto entre os povos primitivos como no seio daqueles que já atingiram um elevado índice de civilização. Não estamos, pois, lidando com fatos excepcionais que poderiam ser, com razão, postos à margem; mas com um fenômeno geral e, dentro da mais ampla acepção da palavra, humano; com um tipo de fenômeno que não pode ser desprezado por quem quer que busque descobrir que é a religião e quais as necessidades profundas a que ela tem de satisfazer".
Teoricamente, cada um de nós deveria ser capaz de encontrar a autotranscendência a partir de uma forma de religião pura ou aplicada. Mas, na prática, parece ser sumamente improvável que esse anseio pelo apogeu seja algum dia realizável. Há (e é fora de dúvida que sempre houve) homens e mulheres virtuosos e pios, para quem, infelizmente, apenas a piedade não basta. O falecido G. K. Chesterton, que escrevia com lirismo idêntico tanto sobre a bebida quanto sobre a fé, pode servir de eloqüente exemplo desse grupo.
As igrejas modernas, excluídas umas poucas seitas protestantes, toleram o álcool; no entanto, mesmo as mais tolerantes jamais procuraram converter a bebida ao cristianismo — isto é, sacramentar seu uso. O pio alcoólatra vê-se forçado a manter, em com-partimentos estanques, sua religião e seu substituto para ela. E talvez isso seja inevitável. A bebida não pode ser incluída na liturgia, a não ser nas religiões que não dêem valor ao decoro. O culto de Baco ou da divindade celta da cerveja eram festins ruidosos e dissolutos. Os ritos cristãos são incompatíveis com a embriaguez, ainda que de cunho religioso. Isso não prejudica os fabricantes de bebidas, mas é muito mau para o cristianismo. Um sem-número de pessoas deseja experimentar a autotranscendência, e gostaria de encontrá-la no tempo. Mas "as ovelhas famintas voltam-se para o céu e não são atendidas". Tomam parte nos ritos, escutam os sermões, repetem as orações; mas sua sede não se aplaca. Desapontadas, voltam-se para a garrafa. Ao menos por certo tempo, e de certa forma, encontram o que querem. A igreja pode continuar a ser freqüentada; mas já não será mais do que o Banco Musical do Erewhon [13] de Butler. Deus pode continuar a ser reconhecido como tal, mas a Ele só será concedida divindade no campo verbalístico, apenas em sentido estritamente figurado. O verdadeiro objeto de culto é a garrafa, e a única experiência religiosa é aquele estado de desregramen-to e belicosa euforia que se segue à ingestão do terceiro aperitivo.
Vemos, pois, que o cristianismo e o álcool não se misturam nem poderiam fazê-lo. Já não há tanta incompatibilidade com relação à mescalina. Isso tem sido demonstrado por várias tribos de índios, desde o Texas até o Estado de Wisconsin. Entre essas tribos, encontram-se algumas filiadas à Igreja Americana Nativa, seita cujo principal rito é uma espécie de Ágape Cristão Primitivo ou Festa do Amor, em que fatias de peiote substituem o pão e o vinho do sacramento. Esses índios americanos encaram o cacto como preciosa dádiva de Deus aos índios e consideram seus efeitos manifestação do divino Espírito.
O professor J. S. Slotkin — um dos pouquíssimos homens brancos que, até hoje, participaram dos ritos de uma congregação peiotista — relata, falando de seus companheiros de ritual, que eles "em absoluto ficam narcotizados ou embriagados [...] Jamais perdem o ritmo ou balbuciam, como aconteceria com indivíduos inebriados pelo álcool ou por estupefacientes [...] São todos calmos, corteses e respeitam-se uns aos outros. Jamais estive em qualquer templo de homens brancos onde pudesse encontrar tanto respeito e religiosidade". Poderíamos perguntar: "Que estariam esses devotos e bem-comportados peiotistas sentindo?". Claro que não há de ser o brando sentimento de virtude que embala o comum dos freqüentadores do ofício dominical, durante noventa minutos de solidão. Nem mesmo esses fervorosos sentimentos, inspirados pelos pensamentos no Criador, no Redentor, no Juiz e no Espírito Santo, que animam os piedosos. Para esses membros da Igreja Americana Nativa, a experiência religiosa é algo de mais direto e esclarecedor, de mais espontâneo, e tem muito menos de produto imperfeito da mente superficial e restrita. Por vezes (ainda segundo as observações colhidas pelo dr. Slotkin) têm visões que podem ser até do Próprio Cristo. De outras, escutam a voz do Grande Espírito. Ainda em outras se apercebem da presença de Deus, bem como de suas falhas pessoais, as quais terão de ser corrigidas para que possa ser cumprida Sua vontade. As conseqüências práticas dessa abertura química das Portas para o Outro Mundo parecem ser excelentes. O dr. Slotkin testemunha que os peiotistas habituais são, em geral, mais diligentes, mais temperantes (muitos são completamente abstêmios) e mais pacíficos que os não-peiotistas. Uma árvore que apresente frutos tão bons não pode ser condenada como maléfica. Ao sacramentar o uso do peiote, os índios da Igreja Americana Nativa fizeram algo que é, a um só tempo, psicologicamente correto e historicamente respeitável. Nos primeiros séculos do cristianismo, muitos ritos e festas pagãos foram, por assim dizer, batizados e postos ao serviço da Igreja. Essas festas nada tinham de edificantes, mas aliviavam uma certa fome psicológica; e, em vez de tentar suprimi-las, os primeiros missionários tiveram o bom senso de aceitá-las pelo que de útil possuíam — permitir à alma satisfazer seus impulsos fundamentais — e incorporá-las ao código da nova religião. Em essência, idêntico foi o procedimento da Igreja Americana Nativa. Adotaram um costume pagão (por sinal bem mais inspirador e esclarecedor do que as sensuais orgias e mascaradas, retiradas ao paganismo europeu) e deram-lhe um significado cristão.
Embora só recentemente tenham sido introduzidos na região setentrional dos Estados Unidos, o consumo do peiote e o culto nele baseado tornaram-se importantes símbolos do direito do índio à independência espiritual. Alguns indígenas reagiram à hegemonia do branco tornando-se americanizados, enquanto outros se recolhiam a seus costumes tradicionais. Mas um terceiro grupo procurou fazer o melhor uso das duas civilizações e desses outros mundos de transcendental experiência onde a alma sabe que é livre e tem uma essência divina. Daí nasceu a Igreja Americana Nativa. Nela, dois grandes apetites da alma — o impulso para a independência e a autodeterminação, e o estímulo para a superação de si própria — fundiram-se e passaram a ser interpretados à luz de um terceiro — a necessidade de render culto, de justificar, perante o homem, as razões de Deus, de explicar o universo por meio de uma teologia coerente.
Lo, the poor Inâian, whose untutored mina Clothes him in front, but leaves him
bare behind. *
* [índio infeliz, a quem a alma falaz,/ Cobre-lhe a frente e o deixa nu por trás.]
Mas, em verdade, somos nós, os brancos ricos e altamente educados, que ostentamos a nudez de nossas costas. Cobrimos nossa paradisíaca aparência anterior com alguma filosofia — cristão, marxista, físico-freudiana —, mas nos descuramos da outra face, deixando-a à mercê de todos os ventos que possam soprar. O pobre índio, por outro lado, se tem valido do espírito para proteger-lhe a retaguarda, complementando a folha de parreira teológica com a tanga da experiência transcendental.
Não sou tão tolo a ponto de relacionar o que acontece sob o efeito da mescalina ou de qualquer outra droga, existente ou que possa vir a existir, com a compreensão do fim e do derradeiro objetivo da vida humana: a Luz, a Beatífica Visão. Tudo o que estou sugerindo pode ser assim resumido: a experiência com a mescalina é o que os teólogos católicos chamam de "uma graça gratuita", não necessariamente para a salvação, mas potencialmente valiosa e que, se realizada, será prazerosamente aceita. Ver-se livre da rotina e da percepção ordinária, ser-lhe permitido contemplar, por umas poucas horas em que a noção de tempo se esvai, os mundos exterior e interior, não como eles se mostram ao animal dominado pela idéia de sobrevivência ou ao ser humano obcecado por termos e idéias, mas tais como são percebidos pela Onisciência — direta e incondicionalmente —, eis uma experiência de inestimável valor para qualquer indivíduo, especialmente para o intelectual, pois este é, por definição, o homem para quem, na frase de Goethe, "a palavra é essencialmente proveitosa". Ele é o homem para quem "o que percebemos pela visão nos é estranho e, pois, não nos deve impressionar profundamente". Não obstante, embora fosse ele mesmo um intelectual e um dos supremos mestres da linguagem, Goethe nem sempre concordou com sua própria conceituação da palavra. "Falamos demais" — escreveu ele em sua madureza. "Deveríamos falar menos e desenhar mais. Eu, pessoalmente, gostaria de renunciar por completo à fala e, imitando a Natureza organizada, comunicar por esboços tudo o que tivesse a dizer. Aquela figueira, esta pequena serpente, o casulo aguardando serenamente o futuro no umbral de minha janela, tudo isso são importantes signos. Quem fosse capaz de decifrar corretamente seu significado poderia pôr inteiramente de lado tanto a palavra escrita quanto a falada. Quanto mais penso nisso, mais encontro futilidade, mediocridade e até mesmo (sou levado a dize-lo) fatuidade na palavra. Contrastando com isso, como nos assombram a gravidade e o silêncio da Natureza quando com ela deparamos face a face, concentrados diante de uma colina estéril ou da desolação de um outeiro que a erosão desgastou."
Jamais poderemos passar sem a palavra e os outros sistemas de símbolos, pois foi graças a eles, e somente por eles, que nos elevamos acima das bestas, atingindo o nível de seres humanos. Mas poderemos facilmente nos tornar tanto vítimas como beneficiários desses sistemas. Precisamos aprender como manejar eficientemente as palavras mas, ao mesmo tempo, devemos preservar e, se necessário, intensificar nossa capacidade de olhar o mundo diretamente, e não através da lente semi-opaca das idéias, que distorce cada fato, diluindo-o no lugar-comum das denominações genéricas ou das abstrações explanatórias.
Literária ou científica, liberal ou especializada, toda a nossa educação é predominantemente verbalista e, pois, não consegue atingir plenamente seus objetivos. Em vez de transformar crianças em adultos completamente desenvolvidos, ela produz estudantes de ciências naturais que não têm a menor noção do papel primordial da Natureza como elemento fundamental da experiência; entrega ao mundo estudantes de humanidades que nada sabem sobre a humanidade, seja ela a sua ou a de quem mais for.
Os psicologistas adeptos do gestaltismo, tais como Samuel Renshaw, conceberam métodos para ampliar a gama e aumentar a acuidade das percepções humanas; mas aplicá-los-ão nossos educadores? Não.
Mestres de todos os campos das atividades psicofísicas — da observação ao tênis, do equilibrismo à reza — descobriram, pelo método das tentativas, as condições ideais de execução, dentro de seus setores peculiares. Mas teria alguma grande Fundação algum dia financiado um trabalho destinado a coordenar essas descobertas empíricas para encontrar as bases gerais, teóricas e práticas, do aumento do poder criador? Novamente, tanto quanto me é dado conhecer, terei de responder negativamente.
Adivinhos e charlatães de todas as espécies ensinam um sem-número de métodos para aquisição de alegria, saúde, paz de espírito.
E, para muitos de seus clientes, a maioria desses métodos é realmente eficaz. Mas acaso vemos psicologistas, filósofos e sacerdotes respeitáveis descerem corajosamente a essas estranhas cavernas, por vezes infectas, no fundo das quais a pobre Verdade vê-se, tão amiúde, forçada a sentar-se? Mais uma vez, a resposta é "Não".
E, agora, examinemos o histórico da pesquisa sobre a mescalina. Há setenta anos, homens de inegável capacidade descreveram as transcendentais experiências por que passaram aqueles que, gozando boa saúde, em pleno uso de suas faculdades mentais, e sob condições adequadas, ingeriram a droga. Quantos filósofos, quantos teólogos, quantos educadores tiveram a curiosidade de abrir esta Porta na muralha? A resposta é: "Praticamente nenhum". Em um mundo onde a educação é transmitida principalmente por meio da palavra, às pessoas de grande instrução torna-se quase impossível dar séria atenção a quaisquer outras coisas que não sejam palavras ou idéias. Há sempre dinheiro a gastar, teses a serem defendidas, douta e insensata pesquisa a se orientar para aquilo que, na opinião dos eruditos, é o problema fundamental. "Que é que induziu quem a dizer tal coisa e em tal ocasião?" Mesmo nesta era da tecnologia, as humanidades verbalistas são dignificadas. Os conhecimentos objetivos que nos permitem tomar contato direto com determinados fatos de nossa existência são quase que completamente desprezados. Um catálogo; uma bibliografia; as obras completas, palavra por palavra, de um poetastro de terceira classe; um estupendo índice que represente a última palavra em índices — enfim, qualquer projeto de proporções grandiosas obterá fatalmente aprovação e apoio financeiro. Mas, quando se trata de querer saber como cada um de nós, nossos filhos e netos, poderemos nos tornar mais perceptíveis, mais intensamente cônscios da realidade interior e exterior, mais acessíveis ao Espírito, menos aptos a adoecer vítimas de nossos próprios erros psicológicos e mais capazes de controlar nosso sistema nervoso autônomo — quando, pois, se trata de qualquer forma de educação objetiva mais importante (e, portanto, mais provável de alcançar aplicação prática) que a ginástica sueca, não haverá pessoa respeitável, em qualquer universidade ou igreja de renome, que faça qualquer coisa em seu benefício. Os verbalistas desconfiam dos não-verba-listas; os racionalistas temem os fatos concretos, não racionais; os intelectuais acham que "o que percebemos pela visão (ou por qualquer outra forma) nos é estranho e, pois, não nos deve impressionar profundamente". Além do mais, a educação, no campo dos conhecimentos objetivos, não se adapta a nenhum dos esquemas existentes. Não é religião, neurologia, ginástica, educação moral e cívica, nem tampouco psicologia experimental. Assim sendo, esse assunto simplesmente não existe, para fins acadêmicos e eclesiásticos, e bem pode ser completamente ignorado ou então relegado, com um sorriso condescendente, àqueles a quem os fariseus da ortodoxia verbalista chamam maníacos, impostores, charlatães e desprezíveis amadores.
"Sempre achei" — escreveu Blake com um certo amargor — "que os anjos possuem a vaidade de se considerarem os únicos sábios. E isso eles o fazem com uma insolência confiante que brota de um raciocínio sistemático."
Raciocínio sistemático é algo sem o qual nós, seja como espécie ou como indivíduo, não podemos passar. Mas creio que tampouco poderemos prescindir da percepção direta — e quanto menos sistemática melhor — dos mundos interior e exterior que nos serviram de berço, para que possamos preservar a sanidade mental. Essa realidade objetiva possui um sentido infinito que ultrapassa toda a compreensão e, no entanto, permite ser direta e, de certa forma, totalmente percebida. É uma transcendência característica de outra ordem que não a humana, embora nos possa ser presente como uma imanência palpável, como experiência de que houvéssemos participado. Ser esclarecido é ser sempre cônscio da realidade plena em sua diversidade intrínseca — ter ciência disso, sem deixar de velar por sua sobrevivência como animal, de pensar e sentir como ser humano, de recorrer, sempre que necessário, ao raciocínio sistemático. Nosso objetivo é provar que sempre estivemos onde deveríamos estar. Infelizmente, tornamos a missão excessivamente difícil para nós mesmos Mas, nesse meio-tempo, surgiram "graças gratuitas" sob a forma de realizações parciais e fugazes. Sob um sistema de educação mais realístico, menos verbalista que o nosso, deveria ser permitido a cada Anjo (na acepção que Blake dava a essa palavra), à guisa de repouso sabático — e, se necessário, dever-se-ia incitá-lo ou mesmo compeli-lo —, realizar um passeio, vez por outra, valendo-se de Portas químicas na muralha, no mundo da experiência transcendental. Se isso os apavorasse, seria lamentável, mas ainda assim talvez lhes fosse salutar. E melhor ainda seria se ela lhes proporcionasse, por uns breves momentos, que haveriam de parecer eternos, uma radiosa inspiração. Mas, em ambos os casos, o Anjo haveria de perder um pouco da confiante insolência nascida do raciocínio sistemático e da certeza de haver lido todos os livros.
Santo Tomás de Aquino, já próximo ao fim de sua vida, conheceu a Contemplação Inspirada. Daí em diante, não mais prosseguiu no livro que iniciara. Comparado com isto, tudo mais que ele havia lido, e sobre o qual discutira e escrevera — Aristóteles e as Sentenças, as Questões, as Proposições, as magestosas Summas* —, valia tanto quanto o joio ou a palha. Para a maioria dos intelectuais, tal greve de braços cruzados seria desaconselhável ou mesmo moralmente errada. Mas o Angélico doutor havia praticado mais o raciocínio sistemático que uma dúzia de Anjos comuns reunidos, e já se achava próximo a seu fim. Conquistara o direito, nesses últimos meses de vida terrena, de trocar mera palha ou joio simbólico pelo pão da Verdade real e substancial. Anjos de categoria inferior, e com melhores perspectivas de longevidade, voltariam à palha. Mas o homem que vem de cruzar de novo a Porta na muralha jamais será igual ao que partira para essa viagem. Será, daí por diante, mais sábio, embora menos arraigado em suas convicções, mais feliz, ainda que menos satisfeito consigo mesmo, mais humilde em concordar com a própria ignorância, embora esteja em melhores condições para compreender a afinidade entre as palavras e as coisas, entre o raciocínio sistemático e o insondável mistério que ele procura, sempre em vão, compreender.
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12 O professor J. S. Slotkin, em sua monografia Menomini peyotism (O peiotismo entre os menomini), publicada em dezembro de 1952 nos Anais da American Philosophical Society, declara que "o uso costumeiro do peiote não parece produzir qualquer aumento de tolerância ou dependência. Conheço muitas pessoas que são
peiotistas há quarenta ou cinqüenta anos. A quantidade de peiote que usam depende da maior ou menor solenidade emprestada à ocasião; via de regra, não aumentam as doses que costumavam tomar vários anos antes. Além disso, ocorrem por vezes intervalos de um mês ou mais entre ritos consecutivos, e eles passam todo esse tempo sem fazer uso do peiote e sem sentir qualquer ânsia por ele. Eu próprio, mesmo após uma série de ritos em quatro fins de semana consecutivos, nem aumentei a dose de peiote, nem senti qualquer desejo continuado por ele". Há, evidentemente, boas razões para que "o peiote jamais tenha sido legalmente declarado um narcótico ou tenha sofrido a proibição de seu uso pelo governo federal". Não obstante isso, "durante a longa história dos contatos entre índios e brancos, as autoridades brancas procuraram, repetidas vezes, proscrever seu uso, por crerem que isso violava seus costumes de civilizados. Mas todas essas tentativas foram infrutíferas". Em rodapé, o dr. Slotkin acrescenta que "é espantoso ouvir as histórias fantásticas dos efeitos do peiote e da natureza do ritual, contadas pelas autoridades brancas e índias católicas na reserva dos menomini. Nenhuma delas jamais teve a menor experiência pessoal com a planta ou com a religião, embora algumas se arvorem em autoridade no assunto e sobre ele redijam relatórios oficiais".
13 Erewhon, anagrama de nowhere ("lugar algum"), é o título abreviado de uma novela fantástica de Samuel Butler, escrita em 1872, que descreve um pais cujo povo vira-se obrigado a destruir todas as máquinas para não ser por elas destruído.
14 Summa theologica e Summa contra gentiles, de Santo Tomás de Aquino, sínteses do conhecimento humano da época.
peiotistas há quarenta ou cinqüenta anos. A quantidade de peiote que usam depende da maior ou menor solenidade emprestada à ocasião; via de regra, não aumentam as doses que costumavam tomar vários anos antes. Além disso, ocorrem por vezes intervalos de um mês ou mais entre ritos consecutivos, e eles passam todo esse tempo sem fazer uso do peiote e sem sentir qualquer ânsia por ele. Eu próprio, mesmo após uma série de ritos em quatro fins de semana consecutivos, nem aumentei a dose de peiote, nem senti qualquer desejo continuado por ele". Há, evidentemente, boas razões para que "o peiote jamais tenha sido legalmente declarado um narcótico ou tenha sofrido a proibição de seu uso pelo governo federal". Não obstante isso, "durante a longa história dos contatos entre índios e brancos, as autoridades brancas procuraram, repetidas vezes, proscrever seu uso, por crerem que isso violava seus costumes de civilizados. Mas todas essas tentativas foram infrutíferas". Em rodapé, o dr. Slotkin acrescenta que "é espantoso ouvir as histórias fantásticas dos efeitos do peiote e da natureza do ritual, contadas pelas autoridades brancas e índias católicas na reserva dos menomini. Nenhuma delas jamais teve a menor experiência pessoal com a planta ou com a religião, embora algumas se arvorem em autoridade no assunto e sobre ele redijam relatórios oficiais".
13 Erewhon, anagrama de nowhere ("lugar algum"), é o título abreviado de uma novela fantástica de Samuel Butler, escrita em 1872, que descreve um pais cujo povo vira-se obrigado a destruir todas as máquinas para não ser por elas destruído.
14 Summa theologica e Summa contra gentiles, de Santo Tomás de Aquino, sínteses do conhecimento humano da época.
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