Psicodélico: Artigo sobre Don Juan e Castaneda

terça-feira, 8 de maio de 2007

Artigo sobre Don Juan e Castaneda





Artigo sobre Don Juan e Castaneda publicado em livro de 1978. Autor: Luiz Carlos Maciel. Livro: A morte Organizada. Global Editora e Distribuidora Ltda.



O presente artigo, embora limitado pela data em que foi publicado, é um interessante relato da repercussão da obra de Castaneda por um dos maiores estudiosos brasileiros da contra-cultura. Resolvi colocá-lo aqui nessa página com o intuito de fornecer um material não recente sobre nosso autor. O objetivo é comparar a terceira parte da obra, a da recapitulação (Presente da Águia em diante) com os primeiros quatro livros .



DON JUAN


Em 1968, um jovem antropólogo, formado pela Universidade da Califórnia, chamado Carlos Castaneda, publicou um livro, Os Ensinamentos de Don Juan, Um Caminho Iaqui para o Conhecimento, em que narrava o seu aprendizado com um feiticeiro, índio de Sonora, México, na fronteira com os Estados Unidos. Castaneda encontrara Don Juan - era este o nome do bruxo, da tribo dos Iaquis - quando fazia uma pesquisa de campo para uma tese de doutoramento sobre o uso de ervas em culturas primitivas. Don Juan era um yerbero, índio dedicado ao conhecimento das propriedades das plantas, e depois de um ano de amizade com o antropólogo, revelou que também era um brujo que utilizava o peiote, o cogumelo mágico mexicano e a figueira -do -inferno (Datura stramonium), todas elas plantas alucinógenas, como vias de acesso para o conhecimento e poderes mágicos.

Os Ensinamentos fizeram grande sucesso entre os jovens da contracultura americana, embora fossem olhados com desconfiança nos círculos acadêmicos. Além de Castaneda, não se tem notícia que qualquer outra pessoa da cultura branca tivesse entrado em contato com Don Juan. Castaneda, porém, publicou mais dois livros: Uma Realidade Separada, em 1971 e Viagem a Ixtlan, em 1972 que revelavam, de maneira mais ampla e profunda, a sabedoria do velho índio.

O sucesso aumentou e os livros se tornaram best-sellers: só os Ensinamentos estão vendendo uma média de 16 mil exemplares por semana e a revista Time fez do autor e discípulo Castaneda e de seu mestre índio o assunto de um artigo de capa.

Tudo aconteceu porque, conforme Castaneda conta no primeiro livro, ele foi escolhido para o aprendizado por Mescalito, uma entidade que habita o peiote e revela quando a planta é ingerida, e que Don Juan considera um "grande instrutor" dos homens capaz de ensiná-los a "maneira adequada de viver".

Os Ensinamentos mostram a fase inicial de preparação de um feiticeiro. Com calma, habilidade e humor, Don Juan dedica-se à tarefa de destruir no discípulo os condicionamentos que engendram e sustentam sua crença - segundo o bruxo, sua ilusão - numa realidade objetiva e indiscutível, como todos nós estamos acostumados a aceitar. Para desmanchar essa ilusão, Don Juan leva Castaneda ao encontro de forças mágicas que um feiticeiro aprende a dominar e utilizar. Depois de vários meses de aprendizado, Castaneda percebe que sua "realidade objetiva indiscutível" começa a se desfazer. Sente medo - "O primeiro inimigo do homem de conhecimento", segundo Don Juan- abandona o aprendizado e volta aos Estados Unidos.

Anos mais tarde, quando os Ensinamentos são publicados, Castaneda volta ao México para presentear Don Juan com um exemplar que o índio recusa, explicando que "você sabe muito bem o que fazemos com papel, aqui no México"- e um segundo ciclo é iniciado. Uma Realidade Separada e Viagem a Ixtlan narram esse estágio mais avançado do aprendizado. A doutrina subjacente aos procedimentos mágicos de Don Juan, é então , formulada de uma maneira mais explícita e os pontos de contato com os caminhos de libertação do Oriente, especialmente o Budismo, ficam cada vez mais evidente. Don Juan. em suma, mostra a Castaneda que a realidade em si é vazia e que, portanto a pretensa realidade física, objetiva, indiscutível - que todos nós aceitamos em função de condicionamentos mentais - é mentalmente engendrada por nós. Um feiticeiro pode manipular à vontade essa realidade, desde que empregue os procedimentos corretos. Como nos Ensinamentos, Don Juan continua a explicar esses procedimentos mas seu principal objetivo, conforme ele mesmo declara, é ensinar os discípulos a VER - isto é, perceber as coisas como elas são, livres do condicionamentos - e assim, tornar-se um "homem de conhecimento".

Tornar-se um homem de conhecimento, entretanto, não é uma tarefa fácil, pois implica em vencer um grande obstáculo: a própria personalidade individual do discípulo que é, no fundo, o próprio cerne da realidade que deve ser desmanchada. Com paciência mas firmeza, Don Juan recrimina a auto-indulgência de Castaneda, sua tendência a refugiar-se no abandono emocional e na racionalização constante, e o incita a viver como um "guerreiro". Para viver como um guerreiro, é preciso libertar-se da própria vida passada que, através da memória e imaginação -isto é, do pensamento- sustenta a identidade; é preciso deixar que sua morte se sente "ao lado dele, em sua esteira" e o aconselhe; é preciso ver que "nada tem importância" e que, na verdade, não se possui nada a não ser a "vida a ser vivida". Com palavras incrivelmente simples e diretas, Don Juan volta a ensinar a velha verdade que são os pensamentos que sustentam o chamado mundo objetivo e que, se interrompemos o processo do pensamento, o mundo imediatamente deixará de ser o que é ou parece ser.

"Você pensa demais"; você se julga muito importante e por isso acha que todos os seus atos devem ser importantes"; "você só sabe fazer perguntas" - com advertências como essas, Don Juan procura indicar de maneira clara e imediata, para Castaneda, a natureza do grande obstáculo. Seu esforço é para romper com as teias de maya. como dizem os hindús, isto é, desfazer a rede de conceitos, articulações mentais e interpretações que, sobrepostas à experiência imediata, aqui e agora, obscurecem e distorcem a visão humana. VER, portanto, exige uma ascese especial de desprendimento radical de todas as coisas, a que o feiticeiro procura induzir o discípulo, através de uma disciplina voluntária que levou a revista Time a classificar a doutrina de Don Juan como um "estoicismo existencial". As experiências que Castaneda atravessa para perceber, através de uma vivência concreta, que o mundo é inteiramente mágico, são bastante duras.

No curso dos livros, Castaneda se vê as voltas com feiticeiras que querem roubar sua alma, bruxos que executam as mais diversas magias diante de seus olhos, insetos gigantescos que são "os guardiões do outro mundo", além de experimentar os mais diversos estados de consciência através do uso das já citadas plantas alucinógenas.

Don Juan, entretanto, não mostra apenas o duro caminho que deve ser trilhado pelo guerreiro e como superar os obstáculos que surgem a cada momento, criados pela sede de permanência egoísta. Ele também procura sugerir o estado do homem que é capaz de VER, o homem do aqui e agora, agindo por agir, sem objetivos para a sua ação e sem remorsos ou vaidade pelo que fez. um homem de conhecimento, diz Don Juan, não tem nome, nem família, nem país, nem dignidade - isto é, não tem nada que possa sustentar um centro falso, o ego, que cristalize as suas experiências. Como pode, então, um homem de conhecimento viver entre outros que, ao contrário dele, são incapazes de VER? Isso é possível, diz ele, graças à sua "loucura controlada".

Essa categoria do "caminho iaqui para o conhecimento" é uma das formulações de Don Juan mais claras, agudas e úteis para aqueles que estiverem dispostos a seguir um caminho de libertação. A imensa maioria das pessoas, explica o feiticeiro, estão loucas porque consideram o que fazem, os seus engendramentos mentais, suas teias ilusórias, mais importante e mesmo mais reais do que a própria realidade pura e simples, imediata e sensível, evanescente e em constante renovação. Essas construções mentais - "o que as pessoas fazem" diz Don Juan - São defesas contra forças desconhecidas que nos cercam - "escudos". diz o bruxo -e tem a função de nos dar a sensação de segurança num mundo em constante mutação. Acreditar que elas são reais, entretanto, é insanidade. O homem de conhecimento sabe disso, e em conseqüência, controla sua loucura. Graças a essa loucura controlada, ele se comporta como os outros homens - e aqueles incapazes de VER são também incapazes de perceber qualquer coisa diferente nele.

Conforme os seus ensinamentos, a própria existência física, objetiva, de Don juan é um mistério. Perdido entre os índios iaqui de Sonora, é apenas um velho obscuro que só revela seus poderes e sua sabedoria a discípulos escolhidos, dos quais apenas Castaneda é conhecido em nossa civilização. Castaneda o descreve como um homem musculoso, ágil, esperto e bem humorado, apesar de sua idade avançada. E o próprio Castaneda segue, agora, as pegadas do mestre. Parou de dar conferências, nega-se a posar para os fotógrafos que o procuram e começa a encarar seu próprio passado com a mesma liberdade e elasticidade com que a imaginação comum costuma encarar o futuro.

Afirma-se que é peruano, enquanto ele conta que nasceu no Brasil - em São Paulo para ser mais exato; afirma-se, com base em documentos, que tem 48 anos de idade, enquanto ele declara ter só 38. Seguindo um conselho do mestre, Castaneda parece ainda estar "desfazendo seu mundo, pouco" enquanto termina o quarto último volume da séria sobre Don Juan, Histórias de Poder. Como pesquisa antropológica, seu trabalho revela, mais uma vez, com clareza, que culturas que consideramos "primitivas" ou "atrasadas possuem, na verdade, uma sabedoria bem superior à de nossa própria cultura e uma relação com a realidade muito mais natural e eficiente do que a nossa barata "feitiçaria" científica e tecnológica. Mas é provável que, quando Mescalito escolheu Castaneda para o aprendizado, ele visasse efeitos mais amplos do que o acúmulo de novos conhecimentos acadêmicos, eruditos e estéreis. A popularidade que os livros estão alcançando é sintomática. E talvez justifique o entusiasmo dos que já vêem nas palavras de Don Juan, "um novo Evangelho" capaz de finalmente trazer uma "boa nova" à nossa agonizante cultura.

Don Juan, no traço de Gilbert Shelton

POR LUIZ CARLOS MACIEL

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