(*) Comunidade Segura entrevistou Ethan Nadelmann, especialista em política de drogas e diretor-executivo da Drug Policy Alliance, organização crítica do proibicionismo nos EUA. Nadelmann veio ao Brasil para o lançamento da pesquisa do Ministério da Justiça sobre o impacto da lei de drogas na população carcerária brasileira, como um importante representante do novo pensamento em política de drogas no seu país.
O fato de o consumo de drogas continuar a crescer é prova de que a política proibicionista fracassou”, disse Nadelmann. “A população precisa se conscientizar de que a atual política causa mais danos que o uso das drogas em si, e que agora precisamos de controles sobre o uso das drogas”, completa.
Segundo o especialista, o clima já é de mudança no seu país: dois governadores - da Califórnia e de Nova York - já falam em abrir o debate e um senador da Virginia apresentou um projeto de lei para reavaliar o impacto da atual política sobre o sistema carcerário do país.
A legalização, a seu ver, é a solução para acabar com o mercado negro de drogas, bloquear o acesso dos traficantes a vastas fortunas, além de desfazer nos dependentes químicos a ilusão de que o usuário de drogas é um rebelde.
Nadelmann acredita, ainda, que, juntamente com o crescente uso de drogas ilícitas, a utilização de substâncias psicoativas da indústria farmacêutica já é um fato consumado. É hora de uma tomada de posição. Apesar de implicar em um processo possivelmente lento e confuso, “uma reforma da política de drogas é inevitável”, disse Nadelman.
O senhor é a favor da legalização de todas as drogas ou apenas algumas? Como seria o processo de legalização?
Eu acho que não existe alternativa ao processo gradual. Nos EUA, quando acabamos com a proibição ao álcool, foi bem dramático. A respeito da questão de quais drogas legalizar, eu sou a favor da legalização de algumas, mas não todas as drogas. Tampouco recomendo que todas as drogas sejam tratadas como o álcool e o tabaco. É possível tornar legalmente disponíveis algumas drogas que hoje são ilegais, mas de maneira muito mais restrita. Os dependentes químicos receberiam drogas apenas através de clínicas.
Ou seja, há formas de se reduzir o mercado negro e transferir o mercado da ilegalidade para a legalidade. Mas eu também não recomendo que o crack, a cocaína e as drogas em geral sejam vendidas como o álcool e os cigarros.
A descriminalização do uso de drogas ilícitas não levaria a um aumento do uso de drogas?
Não porque a descriminalização se resume essencialmente a acabar com as penas criminais por simples uso ou posse. Por outro lado, ao torná-las legalmente disponíveis, é possível que exista um risco de aumentar o número de pessoas que usam drogas. Mas é importante entender que a legalização resultaria em mais pessoas usando drogas, mas menos pessoas sofrendo danos por causa delas.
Poderia explicar?
Se, por exemplo, se eu tivesse que escolher entre uma sociedade em que um milhão de pessoas são viciadas em heroína ilegal, comprando suas drogas no mercado negro, sustentando a indústria do crime, sendo contaminadas com HIV ou hepatite C por causa de seringas não-esterilizadas, sujeitas a overdose, e talvez roubando para sustentar seus hábitos. Ou, por outro lado, um mundo em que dois milhões ou até mesmo três milhões de pessoas usem heroína, mas de uma fonte que esteriliza as agulhas, sem o risco de contrair ou difundir o vírus do HIV ou a hepatite C, sem o risco de ter uma overdose – porque os usuários conhecem as drogas que compram, sem pagar o preço dos mercados negros, e sem sustentar criminosos, diria que mais usuários legais de drogas pode ser mais vantajoso para a população que um grupo menor de usuários ilegais.
Como é que a descriminalização afetaria os mais jovens?
Acredito que o jovens já têm um acesso muito fácil a drogas como a maconha. Não imagino que a legalização leve a um aumento no uso de maconha entre os jovens. Pode ser que aumente o uso entre as pessoas mais velhas, mas não entre os jovens.
O uso de drogas caiu em Portugal desde 2001 graças à descriminalização do uso e a investimentos em políticas preventivas. O senhor acredita que essa é uma solução?
Portugal é um ótimo modelo. E é bom, porque, por muitos anos, falamos na maioria das vezes sobre os Países Baixos e a Suíça como modelos. É bom ver que Portugal tem se destacado na liderança na descriminalização da posse para uso pessoal de todas as drogas, sob uma abordagem de saúde pública.
E por que houve essa queda no uso de drogas em Portugal?
Essa queda relatada do uso e abuso de drogas em Portugal me lembra do que aconteceu nos Países Baixos. Os holandeses afirmam que, quando descriminalizaram a maconha, conseguiram tornar a maconha sem graça, chata. Ela perdeu sua atração.
Do mesmo modo, se olharmos para a Suíça, por exemplo, onde muitos dependentes obtêm sua heroína legalmente nas clínicas, vemos que lá o mercado negro de heroína perde seu dinamismo, não é mais a droga dos rebeldes. Se você pode ir a uma clínica para consegui-la, então para que usar drogas nas ruas? É um lado da descriminalização… Da mesma forma que reduz as penas e, às vezes, torna as drogas fáceis de se obter, também reduz o apelo da ilegalidade – reduz a sedução de “fruto proibido” da droga.
Se a legalização oferece melhoras na qualidade da droga, quais seriam as conseqüências?
Para muitos dependentes da heroína, quando finalmente têm a oportunidade de obter a droga legalmente – como na Suíça, nos Países Baixos, na Alemanha, e no Canadá – é a primeira vez que se olham no espelho e se perguntam “por que estou fazendo isso?”. É quando muitos deles percebem que o vicio para eles é não tanto a droga, mas o estilo de vida como transgressão – isso se torna uma razão para sair da cama de manhã, dá sentido a vida… Quando eles podem ter sua heroína de graça ou a baixo custo de uma fonte legal, é como se eles perguntassem a si mesmos: “o que é que eu estava pensando? Por que eu estava fazendo isso?”.
E o mesmo se aplica a maconha?
Bem, a maconha é um pouco diferente, porque a maconha é…
Menos proibida?
Sim, e grande parte das pessoas não constroem seu estilo de vida ao redor da maconha. Para muitas pessoas, a maconha é mais semelhante ao álcool, é algo que se usa para relaxar, ocasionalmente… E do mesmo modo em que há os dependentes, como há pessoas dependentes do álcool, e embora esse vício possa ser um problema sério, ele não leva à morte, não está associado à violência. Claro que não é bom ser viciado, mas a maconha é uma das drogas menos perigosas do ponto de vista da dependência.
O senhor recomenda a legalização do comércio de drogas? Qual é a lógica de se descriminalizar o uso de drogas, mas não o comércio?
Seria bom ir diretamente da proibição à regulamentação, mas o processo político não permite isso. Inevitavelmente, este vai ser um processo gradual, e cheio de contradições. A evolução da reforma da política de drogas exige primeiro, que descriminalizemos e legalizemos a posse para uso pessoal. O que gera um conflito com a proibição criminal sobre a venda. É uma tensão necessária para se progredir politicamente. Não há alternativa a não ser atravessar a fase absurda em que a posse é descriminalizada, enquanto a venda continua a ser criminalizada.
E como seria o processo de legalização da venda?
Eu defendo a regulamentação das drogas. Precisamos de uma regulamentação sensata e pragmática. Acredito que precisamos taxar e controlar as drogas que são ilegais hoje, a maioria delas. Isso significa limitar sua disponibilidade, exigir licença de quem vende. Deve ser permitido o cultivo de pequenas quantidades de maconha para uso pessoal do mesmo modo que é lícito guardar bebidas alcoólicas em casa. Mas, no caso de venda a terceiros, seria preciso uma licença, supervisão e garantia de qualidade.
E as taxas?
É bem interessante: há algumas semanas, em Oakley, Califórnia, o público aprovou um referendo para introduzir impostos sobre maconha para uso medicinal. E o referendo foi apresentado pelas pessoas que vendem essa maconha. É um exemplo bastante raro de pessoas lutando pelo direito de pagar impostos. Quem luta pelo direito de pagar impostos? No caso deles, é um elemento de legitimização.
O senhor acha que um processo de legalização seria demorado ?
Bem, eu gostaria que tudo fosse baseado na ciência e na discussão racional… Infelizmente, como em qualquer evolução política, vai ser complicado com muito vai-e-vem. Assim como qualquer movimento por liberdade e justiça, à medida que ele cresce, as pessoas divergem, porque isso faz parte da natureza humana.
A discussão atual sobre questões como o tipo de manifestações públicas, “deve haver uma marcha da maconha? Deve haver protesto público?”, ou de linguagem “devemos usar a palavra ‘legalizar’ ou não, apenas descriminalizar?“ Vai sempre gerar debate… Isso vai se encaminhar para o processo político, com toda a negociação do processo legislativo. Então o processo de reforma vai ser lento, vai ser confuso, mas é inevitável.
Inevitável significa daqui a quantos anos?
É impossível dizer. Se voltássemos no tempo até 1800 e perguntássemos quando a escravidão iria ser abolida, alguns responderiam “nunca” e outros, “em cinco anos”. E, de fato, levou poucos anos em alguns países, e, em outros, três ou quatro gerações. Então não sabemos. Temos uma certeza: a proliferação de drogas psicoativas, em sua maioria, drogas farmacêuticas, é inevitável.
Então o crescente uso de drogas não se limita às substâncias ilícitas?
O uso e o abuso de drogas vão levar cada vez mais às drogas farmacêuticas. Isso vale tanto para as drogas que são prescritas legalmente pelos médicos quanto para as drogas desviadas ilegalmente por pacientes e farmacêuticos. Mas esse é o futuro. De forma que não vamos ter alternativa a não ser descobrir como conviver com isso, como reduzir os danos. E esse é um problema para o qual as leis criminais são particularmente mal articuladas.
A única alternativa vai ser contar cada vez mais com uma regulamentação sensata, consumidores mais conscientes. E essa abordagem vai levar diretamente a estratégias para drogas como a heroína, a maconha, a cocaína e entre outras.
A legalização ajudaria a reduzir a violência em cidades afetadas pelo tráfico?
A legalização ajudaria de maneira significativa, porque seria possível obter drogas nas clínicas, farmácias e lojas. Ninguém iria a uma favela para comprar suas drogas ilegalmente. O mercado ilegal desapareceria com o tempo.
O senhor recomenda a legalização para o Brasil?
Sim, é essa a direção a seguir. É importante encontrar diversas maneiras de permitir às pessoas que querem – ou são dependentes e por isso precisam – obter suas drogas de fontes legais. Isso não significa que você deve equiparar essas substâncias ao álcool ou tabaco, mas que precisamos ser criativos ao competir com e minar o mercado negro.
E o que fazer com os traficantes?
No início dos anos 30, quando o debate sobre a proibição do álcool estava acontecendo havia essa preocupação com os traficantes de álcool, Al Capone, e os outros. E você sabe o que aconteceu? Muitas pessoas que faziam bebidas alcoólicas ilegalmente, em seus quintais, simplesmente pararam suas atividades com a legalização.
Um segundo grupo estava ligado às oportunidades que surgem com o mercado negro. Estavam envolvidos no crime por causa do lucro fácil. Alguns deles tentaram migrar para outros crimes, mas nada era tão lucrativo e tão fácil quanto o álcool, (e o tráfico de drogas). O resultado foi que muitos perderam o interesse e abandonaram as atividades… Por fim havia aqueles criminosos “comprometidos” e, com a legalização, tentaram se envolver na distribuição legal. Eles extorquiam dinheiro de donos de bar e distribuidores.
Por isso imagino que alguns dos narcotraficantes optariam por esse caminho. Tentariam se envolver no ramo legal, ou, talvez, em outros crimes, que eles já praticam de qualquer jeito. Mas eu acho que não há nada que dê tanto dinheiro ilegal, nada que tenha um mercado negro tão dinâmico. Não há nada tão fácil de acessar como o mercado ilegal de drogas. Então, se não houver mais esse mercado, pois as drogas se tornariam legais, acarretaria em uma perda de bilhões de dólares no Brasil, dezenas de bilhões de dólares nos EUA, e centenas de bilhões de dólares no mundo. Fortunas que deixariam de sustentar o mercado negro.
A legalização nos EUA está ganhando força?
Bem, a legalização da maconha está agora se tornando uma possibilidade real. Como eu mencionei, o governador Schwarzenegger, da Califórnia, disse que precisamos de um debate. O governador Patterson, em Nova York, disse a mesma coisa. Há um senador de Virginia, James Webb, que é bem conservador e introduziu um projeto de lei para criar uma comissão para pesquisar como a guerra às drogas afeta o problema da superpopulação das prisões. Quando lhe perguntaram sobre a legalização, ele respondeu que “todas as opções devem estar sobre a mesa”.
Os EUA estão no início de um debate muito mais sério e centralizado sobre a legalização da maconha. Com relação às outras drogas os debates devem enfocar medidas de redução de danos, clínicas para obtenção de heroína, por exemplo.
Se o uso de drogas está aumentando na América Latina, como convencer a sociedade a legalizar ou mesmo a descriminalizar o consumo?
Primeiramente, se o consumo de drogas cresce, é uma prova adicional de que a proibição fracassou. Se funcionasse, o consumo estaria caindo, e ele não está. Em segundo lugar, o público precisa entender que há dois problemas: um é a questão do abuso de drogas, e outro é diz respeito à política de proibição. Quando a mídia começar a associar a proibição e a criminalização como parte do problema, o público vai entender melhor. E é aí que o público vai entender que o uso de drogas varia, mas o mais importante é gerenciar isso do melhor jeito possível para reduzir os problemas das drogas e reduzir os problemas das nossas políticas de drogas.
O público precisa entender como funciona a política de drogas?
Como eu disse, para a maioria das pessoas que usa maconha, a maior ameaça para suas vidas e sua saúde não vem do uso da maconha, mas das leis que regem o uso da maconha. Para muitas pessoas envolvidas com a cocaína - que pode ser uma droga muito mais perigosa -, os danos da ilegalidade são ainda maiores que os danos do uso da droga.
Outra coisa a se pensar é que se a cocaína se tornar legal, o seu uso iria se diversificar… Há o chá de coca que contém cocaína, não é um problema. Coca-cola costumava conter cocaína, e não era um problema. Havia um vinho chamado Vin Mariani na França que continha cocaína. Esse não é o problema. Se fosse legalizada, é possível que ela seja usada de outros modos.
Em alguns lugares, as pessoas beberiam chá de coca, ou mascariam chiclete de coca durante a tarde. E talvez até vá competir com o café expresso. Não é como se todo mundo fosse começar a usar a cocaína aspirada ou injetável. A maioria das pessoas não quer injetar drogas, não quer fumar crack, legal ou ilegalmente, e não quer colocar pó pelos seus narizes. A maior parte das pessoas prefere consumir drogas de modos que sejam menos destrutivos para suas vidas.
Tradução: Pedro Vicente
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