Psicodélico: ESTADO VEGETATIVO - Arthur "Planta" Veríssimo

terça-feira, 18 de agosto de 2009

ESTADO VEGETATIVO - Arthur "Planta" Veríssimo

Isolado durante uma semana em uma palafita mágica no coração do Peru, nosso repórter experimental sintoniza através da Ayahuasca uma misteriosa conexão entre a Amazônia e a Índia.
Dez anos atrás, me embrenhei na alta floresta amazônica peruana, no Estado de San Martín, para conhecer a sede do Centro de Reabilitação de Toxicômanos e de Pesquisa de Medicina Tradicional, conhecido como Takiwasi. Na época, fui muito bem recebido pelo fundador, o médico e curandeiro francês Jacques Mabit. Tive a chance de ficar alguns dias. O trabalho efetuado no local mescla o saber milenar da cura com as plantas a modernas pesquisas científicas. Participei de algumas experiências e fiquei instigado a realizar o tratamento mais eficaz e profundo, chamado de “dieta”.
A idéia é ficar de seis dias até meses em completo isolamento na floresta. Quem se habilita? O cidadão passa por uma supervisão com o xamã, que o orienta a tomar doses diárias de uma determinada planta de poder (mágica). O paciente isola-se em um “tambo”, espécie de cabana em que há um kit exíguo de objetos pessoais. Sabão, pasta de dentes, TV, computador, perfumes, edredom, doces e igua­rias nem pensar. Isolado mesmo. Óbvio que tudo supervisionado pelo xamã e seus assistentes, que diariamente levam à cabana a comidinha sem sal nem açúcar de cada dia.
Durante uma década o Takiwasi reverberou na minha claudicante memória. No início de 2007, o amigo e médico Ichiro Takahashi, no universo xamanista há anos, me contou de um centro próximo à cidade de Pucallpa onde o enigmático curandeiro Juan Flores desenvolve o trabalho da dieta enfiado dentro de um vulcão em pleno coração da floresta. Era o chamado da selva. Tracei um plano para afinal passar por essa experiência. Um verdadeiro rito de passagem, bem longe da cultura materialista e pasteurizada que domina nossas vidas como uma gosma pegajosa. Acertei as datas e me lancei em busca da pedra filosofal.
Totens de fumaça
Ichiro já conhecia o maestro Juan Flores de outras dietas. Quando entramos na sede de Mayantuyaku, descansamos nossos corpos embalando em redes instaladas na oca principal. Cenário indes­critível, ambiente acolhedor: labaredas de vapor espalham-se por toda a cercania, onde a água borbulha a 100 graus – águas termais nas entranhas da selva, exuberantes totens de fumaça chacoalhavam as árvores de mais de 20 metros... estávamos literalmente dentro de um vulcão encantado na floresta amazônica. Os olhos tridimensionais de meu compadre Ichiro me guiavam, enquanto Juan Flores cami­nhava solenemente ao largo pelo rio. Vestindo os trajes da tradição indígena, o xamã Asháninka se aproximou e nos deu boas-vindas com reverência.
Suavemente, Juan Flores nos orientou sobre nossa dieta. Há centenas de plantas de poder que o xamã conhece. Nos trabalhos são utilizadas frutas, flores, raízes e cascas de árvores. Com seu olhar penetrante, ele nos destinou a dieta da sagrada árvore ayauma, mais conhecida como sala tree. Em quéchua, ayauma significa o Espírito Sem Cabeça. Em jejum pela manhã, tomaríamos uma dose da infusão da casca da árvore, depois outra dose na parte da tarde. Essa árvore cresce próxima a locais onde há água abundante. Do tamanho de um coco, a fruta também é conhecida como cannonball tree (bala de canhão), e seu nome científico é Couropita guianensis; alcança 20 metros de altura. Nativa na floresta amazônica, Malásia, Sri Lanka, Índia e Nepal, a tradição diz que tem o poder de cura e de feitiçaria. Mais tarde atentei a um detalhe muito especial sobre essa planta... acompanhe.
Segundo o xamã, a ordem é permanecer em completa abstinência sexual de 15 a 30 dias depois da dieta, cuja função é limpar profundamente o organismo de substâncias nocivas e entorpecentes, além de estimular visões e dedicar espaço, sem tempo preestabelecido ou preocupações, para introspecção e retomada de contato direto com as forças da natureza. Nossa primeira tarefa em Mayantuyaku seria relaxar e preparar o corpo para a manhã seguinte.
Logo cedo, o assistente do curandeiro nos ofereceu um copo do sumo da yawar panga, uma planta emética (que provoca vômitos) e catártica: a idéia é ativar os centros energéticos. Uma lenta tortura se operou nas minhas entranhas: enquanto ia colocando uma imensidão de impurezas para fora e desbloqueando violentamente meu metabolismo, ectoplasmas borbulhavam pelo ambiente. Então, perdi por completo o controle do que aconteceu com meu aparelho e caí em absoluto abandono. Assumo hoje que não sabia com o que lidava... Depois de algumas horas, renasci pleno de energia, já preparado para me isolar na floresta.
O tempo escorria lentamente. Percorria a beirada do rio onde imensas labaredas de vapor exalavam das águas termais. Os mosquitos, os pássaros e o vento uivando me lançavam em uma transmutação cinematográfica em que se misturavam Apocalipse Now e Predador. À medida que subíamos o rio, a água ficava mais fresca. Quarenta minutos depois, encontrei minha futura casa encaixada no morro onde deveria me encafuar por seis dias. Ali a água estava deliciosamente fria. Ichiro instalou-se na outra extremidade, em um tambo similar, a 100 metros de distância. Um pássaro emitiu um guincho fortíssimo, e de repente me senti observado por todos os lados. Sim, era um intruso ali. Minha morada era uma palafita aberta, sustentada sobre quatro paus, encimada por um te­lhado de palha seca, com um piso de cascas de árvores comprimidas. Tudo muito rústico: a única sofisticação era um colchão fino com lençol e um mosquiteiro amarelo.
Isolamento
Entrei no útero do mosquiteiro por volta das seis da tarde. Me sentia em alerta geral. Levei uma pequena biblioteca, um caderno de anotações, canetas e lanternas. No primeiro dia permaneci madrugada adentro lendo e fazendo miríades de notas. Segui criteriosamente a dieta prescrita por Juan Flores. A força da beberagem da ayauma incandescia meu espírito e hiperventilava minha consciência... Medinhos e pensamentos turbulentos se dissipavam... Gradualmente ia me adaptando à natureza... Sentia insetos, mosquitos, aranhas e formigas devorando docemente meu corpo... Mas, com o corte abrupto do sal e do açúcar da comida diária, meu cheiro e suor adocicado diminuíram. Os primeiros finais de tarde foram um deus-nos-acuda: falanges de pernilongos grudavam em minhas roupas, cabelo e pescoço – todo o resto estava coberto por roupas e uma grossa camada de repelente. Dentro do útero amarelo, milhares de partículas entravam e saíam do mosquiteiro. O coaxar dos sapos dominava o final da tarde. Escutei um estranho rugido no anoitecer do terceiro dia. Fiquei miudinho, antenado com minhas lanternas.

Era um contínuo aprendizado de meditação e observação. Nada era artificial, não havia TV, internet, cinema, restaurante, balada. Mas era difícil dormir na floresta. Tinha coceiras do couro capilar às cutículas dos dedos. Aproveitava para meditar... Senti-me conduzido para fora da placenta do mosquiteiro cor de laranja, onde tudo era verde, marrom, roxo... Admirava o brilho diáfano azulado-ouro das imensas borboletas, flutuava na meditação por todo o vale vulcânico, observava a ação dos madeireiros e da extração de petróleo... Eu era fora e dentro. Voava e penetrava em universos desconhecidos... Visitei o mundo subaquático onde o grande mestre Sumirana me recebeu com Yakumama (o espírito da serpente de água) e um farnel de especiarias. Muraya, o curandeiro, foi o anfitrião em minha descida ao sinistro mundo infraterreno. Voltei à terra sentindo o intenso odor dos sedimentos da floresta. Abri os olhos e súbito minha consciência notou o tagarelar incessante das reclamações da minha mente estimulada pela instabilidade do meu ego. Imerso no oceano verde, deixei fluir... o bla-bla-blá mental se dissolvia e um néctar se derramava pelas copas das árvores.

Esse estado místico faz parte do dia-a-dia selvagem... vacilou, você pode cair num abismo, ser pi­cado por uma cobra ou virar banquete de insetos... eu literalmente desencanei de voltar à cidade... Pratiquei yoga asthanga, pranayanas, caminhadas... quando vi, já estava no quinto dia de isolamento. Por todos os lados encontrava pistas para o meu florescimento que os espíritos tutelares e a sagrada natureza colocavam com sinais, sombras, cantos, movimentos e ruídos. As múltiplas formas da selva penetravam minha consciência, revelando uma lógica desconhecida. Confusas impressões da minha existência na Babilônia transformaram-se em adubo. Captava o sabor das plantas, o perfume das flores, o frescor e calor das águas. Era como se toda a vida da floresta circulasse pelas minhas tripas.

Questionava-me. Qual a finalidade? Por que vim parar aqui? Reportagem? Experiência vital? As dúvidas pululavam por todos os poros enquanto eu vivia intensamente o cotidiano dos indígenas, suportando todas as condições contraditórias da vida urbana e seus comodismos ainda entranhados em mim. Para superar tédio, preguiça e outros males contemporâneos, observava que não era a alma que sofria de ócio, e sim a maldita mente entorpecida de egos carcomidos que haviam sido implantados dentro de mim pela sociedade. Arranquei as máscaras, viseiras, fantasias e identidades postiças que impregnavam minha essência. A maior dificuldade que tinha de superar na floresta não era o aborrecimento de me sentir mal, e sim de me sentir culpado por não fazer nada.

Os habitantes da selva não se inquietam no ócio. A floresta nos faz entender que nada do que é vomitado pelos veículos de comunicação é indispensável, pois os totens culturais estão a milhares de quilômetros. A vidinha que gira em torno da moda, do último restaurante, de vernissages e salões de beleza não tem nenhum valor ali. A floresta ensina que expectativas de sucesso, imortalidade e grana são ilusões. Depois de seis dias em estado de planta, estava pronto para a grande experiência de tomar a ayahuasca.

Um drinque no paraíso
De volta para a sede de Mayantuyaku, aguardei o dia inteiro em silêncio. O ritual seria realizado às nove da noite. As plantas são divididas em três categorias: purgativas (yawar panga, tabaco), curativas (mucura, unha-de-gato) e mestras (ayahuasca, ayahuma, toe, chiric sanango, wairacaspi lupuna, bobinzana etc.). A ayahuasca (Banisteriopsis caapi) é um cipó que os médicos vegetalistas definem como a planta mestra por excelência. Combinada com a chacrona (Psychotria viridis), compõe o supra-sumo que é a ayahuasca.

O xamã caminhava pela penumbra, aproximou-se e sentou-se ao meu lado. Sua silhueta emitia concentração e compaixão. Iniciou o ritual “soplando” seus objetos de poder e a ayahuasca. O ato de soplar é uma prática estranha: o curandeiro sorve tragadas fortes do tabaco (carpacho) da floresta e emite fumaçadas com seus ícaros (cantos sagrados) cerimoniais. O propósito da soplada é limpar o ambiente dos espíritos nefastos e fortalecer a concentração chamando ao trabalho os espíritos tutelares, consagrando a ayahuasca e invocando a proteção dos deuses e animais que ali transitam. Recebi o copo com a substância e percebi no breu que o líquido tem a cor e até a espuma de uma xícara de café. Ao primeiro gole, senti o gosto profundamente amargo do líquido, uma mistura de material vegetal fermentado.
O tempo passava... Ichiro, Juan Flores e seus assistentes equilibravam a sessão cantando e tocando pequenos instrumentos... depois de uma hora, a planta começou a dialogar e ensinar. Alguns vomitavam... Fui ficando mais quieto, relaxado, completamente envolvido com a música, um canto penetrante cujo volume foi crescendo... Juan Flores balançava um feixe de ga­lhos com folhas, criando vibrações de forças invisíveis. O rugido do vômito dos participantes combinado a lamentos, espasmos estomacais e gemidos ganhava uma bizarra qualidade musical... Para os recheados de toxinas ou doentes, o processo é desagradável, prolongado. A Planta prolonga o sofrimento de alguns, obrigando-os a tomar consciência da sua situação. Finalmente saí do processo de purgação e fui arrastado a mirações de sabedoria...
Percebi os espíritos da floresta, viajei do mundo subatômico ao macrocosmo... Conectei o guardião da planta ayauma, o rei dos espíritos da selva, o eminente Sumiruna, e sob a forma de uma imensa anaconda ouvi seu silvo, limpando como um tsunami meu corpo e meu espírito... Juan Flores se aproximou me ofertando um copo de água fresca. Mais de sete horas de viagens fascinantes depois, a onda energética dissipava-se... Depois dessa fortíssima experiência, refleti que podemos escolher explorar essas dimensões estranhas ou esperar que a destruição da Terra torne irrelevante qualquer pesquisa: ou nos distanciamos ou buscamos a essência.
Voltando a São Paulo, mergulhei em uma pesquisa profunda via internet e descobri que a poderosa ayauma (sala tree), além de árvore tradicional no universo xamânico amazônico, é planta sagrada no Nepal, terra de Sidharta Gautama, o Buda. Nos textos budistas, a árvore é mencionada por sua clarividência. Em um antigo livro de gravuras narrando a vida de Buda vi uma imagem do pequeno príncipe Sidharta com sua mãe, Mahamaya, caminhando sobre flores no jardim do palácio de Lumbini: precisamente as flores da ayauma. Amazônia, Índia... tudo está conectado.
Ayahuasca visions
No calor infernal da extremamente úmida Pucallpa as pistas dessa conexão já eram traçadas antes mesmo de eu me embrenhar na floresta. O Estado de Ucayali é colado ao Acre, bem perto de Xapuri, cidade onde minha adorável mãe nasceu. Volta às minhas origens e essência no DNA da floresta.Durante os dois longos dias flanei pela cidade e, com Ichiro, aproveitei para fazer uma visita ao fascinante pintor Pablo Amaringo. Seus quadros são a quintessência das visões provocadas pela ayahuasca e suas experiências como xamã. O traba­lho de Amaringo é conhecido mundialmente pelos connaisseurs da contracultura. Século passado, o etnobotânico e guru psicodélico Terence McKenna, seu irmão Denis e o antropólogo Luis Eduardo Luna divulgaram a obra de Amaringo.


A casa do mestre Amaringo fica ao lado da escola de pintura Usko Ayar, onde Pablo ministra aulas para crianças e adultos. Conversamos horas sobre o universo vegetalista e ganhei o estonteante livro Ayahuasca Visions, em que Amaringo e Luna esclarecem os mistérios das pinturas visionárias.
Naqueles dias pré-isolamento, as pinturas se misturaram à minha ansiedade. Plantas mágicas, dieta, isolamento, criaturas da floresta e do mundo subaquático permeavam sonhos inexplicáveis cheios de insetos, dieta, feitiçaria, serpentes e animais obscuros, e encharcava os lençóis com um suor verde, esquisito.
A conexão com as plantas da floresta é reveladora. Tira máscaras, deixa as águas menos turvas, traz à realidade. Hoje todo mundo quer participar de algum curso acelerado de esoterismo, yoga, magia e filosofia, esperando que o guru forneça atalhos para o graal da sabedoria. A pasteurizada civilização moderna nos obriga a virar uma engrenagem minúscula desse grande corpo materialista, senão o castelinho de areia desmorona. Na maioria das vezes as enfermidades só aparecem para a gente reconhecer que nossa vitalidade não é o que aparenta. Com as plantas, aprendemos: o ideal é sentir-se bem em qualquer lugar...
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